Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 29 de agosto de 2017

O Espiritismo na Arte ~



Parte X

Quarta lição

– A música humana e as notas harmónicas
– A música celeste
– Os sons e as cores

(Novembro de 1922)

“Falaremos hoje da sonoridade, não da sonoridade pura porque não distinguimos os sons com precisão. O som resulta de uma vibração que impressiona os nossos órgãos psíquicos e produz, por consequência, um fenómeno virtual.

É preciso partir deste princípio: no espaço, o som não será a sensação de um ruído, mas a sensação que uma satisfação de bem-estar moral e espiritual produz. O prazer é mais ou menos intenso e corresponde às sensações que os instrumentos nos causam na Terra.

Vimos o ser imaterial transportado para a esfera musical, isto é, para o campo vibratório (i), animado por seres angélicos; vimos também que esse ser recebe, no seu perispírito (i), vibrações que, ao se chocarem com os seus próprios eflúvios, produzirão sensações de prazer.

Na música humana, vós tendes o como nota do diapasão (ii); não tomaremos essa nota como ponto de partida porque a sua tonalidade não corresponde à tonalidade das cores. Tomaremos o . O , aos vossos ouvidos, produz um som grave, pleno, e que exprime o regozijo, um som que representa bem o amor que devemos sentir por Deus. Esse , se fizermos uma comparação, adapta-se melhor à primeira das sensações fluídicas, que se traduz geralmente pela cor azul.

 simboliza o azul celeste, a quietude, a paz da alma proporcionada pela prece. O  é a primeira nota do acorde perfeito que deriva do azul.

mi representa a força no amor, a vontade de amar, e pode ser representado por um raio da vossa luz solar. Temos, então: mi. O  fundamental é azul; o mi, a vontade no amor, nos dará o azul celeste e o ouro.

sol, terceira nota harmónica, representa a consolidação das duas notas precedentes, ou seja, uma ligação que pontua as duas ideias precedentes emitidas, pontuação que assegura a exteriorização do sentimento dado pelo azul.

Percebemos essa nota por uma tonalidade especial, da qual eu procuro fazer-vos compreender a cor pelos vossos sentidos. Não é nem uma emanação prateada, que poderia confundir-se com o ouro, ser por ele absorvida, nem uma emanação negra, resultante de outras cores, que poderia absorver o azul. Mas é um fluido brilhante, sem cor bem definida, que pode aproximar-se da luz radiante (i) que se desprende dos mundos que vós percebeis, ou seja, cinza-azulado, cinza-prateado. O vosso Sol, visto de longe, tem esse aspecto.

A primeira tonalidade, vista por um mortal, terá esse aspecto: tónica azul. Intensidade da tónica, ouro. Pontuação ou duração: cinza-prateado, mistura de azul cercado de ouro e de cinza-prateado.

Essa primeira tonalidade representa o amor divino. As outras cores fundamentais apresentam todos os outros sentimentos, indo do amarelo-claro ao vermelho-escuro, porém essas cores são sempre acompanhadas dos seus mantos dourados e das suas vestes cinza-prateadas.

Em música humana, acorde perfeito: misol. Tornando-se o  acorde perfeito: ; com o mi, acorde perfeito: misolsi. A tónica variará de cor, passando do azul para chegar ao vermelho, mas as duas outras notas serão sempre ouro e prata; elas nunca variarão.

Segundo a qualidade do perispírito (i) e a natureza do campo vibratório, as sensações variam e aumentam de intensidade, a ponto de se tornarem maravilhosas. Certos perispíritos recebem o amarelo, outros o vermelho. Existem alguns que excluem esta última cor.

O violeta é menos suportável para os seres evoluídos. O verde claro é mais agradável que o verde escuro. Pode-se, segundo as leis do espaço, perceber uma mistura de azul e de rosa.

Os campos vibratórios variam igualmente de intensidade. Eles resultam de emanações angélicas, inspiradas pelo ser divino. Quando se retorna à Terra, ainda se está impregnado dessas vibrações; o corpo material aniquila-as, mas a consciência conserva a sua impressão.

Fora desses campos vibratórios existem esferas, e mesmo correntes, que proporcionam aos espíritos menos evoluídos prazeres harmónicos às vezes vivos e profundos, ainda que mais pessoais. Essas correntes fluídicas comunicam ao ser as alegrias íntimas do amor divino. Outras correntes dão-lhe somente a alegria de ouvir os acordes da lira celeste. Essas vibrações, não coloridas e invisíveis ao ser desencarnado (i), dão-lhe uma satisfação comparável àquela que a sensação dos perfumes lhe proporciona.

A música celeste, portanto, é o resultado de impressões causadas pelas camadas fluídicas de acordo com a elevação do ser e a pureza do meio.

No espaço não se ouve nada; sente-se a harmonia dos fluidos e não a dos sons. A propriedade essencial dos fluidos é a cor. O som é de essência terrestre, a cor é de essência celeste. A próxima lição tratará dos encantos harmónicos do espaço e da sua persistência nos sentimentos humanos.”

Espírito Massenet (i)

– Comentário

A solidariedade dos sons e das cores, da qual nos fala o Espírito Massenet, foi entrevista por todos os grandes músicos. Um deles disse: “A melodia é para a luz o que a harmonia é para as cores do prisma, isto é, uma mesma coisa sob dois aspectos diferentes: melódico e harmónico.”

Platão (iii) dizia ainda: “A música é uma lei moral. Ela dá uma alma ao Universo, asas ao pensamento, um impulso à imaginação, um encanto à tristeza, a alegria e a vida a todas as coisas. Ela é a essência da ordem e eleva em direcção a tudo o que é bom, justo e belo, de que ela é a forma invisível, porém surpreendente, apaixonada, eterna.”

De passagem, observemos que Massenet é mais melodista que sinfonista.

Para formar a luz branca, é necessário o acorde das cores complementares e esta luz torna-se mais viva e radiosa na mesma proporção em que a melodia resuma e sintetize melhor o acorde das harmonias complementares.

Parece, então, que há uma concordância perfeita entre as concepções dos génios terrestres e o ensino das entidades do Além, reconhecendo-se que estas nos fornecem detalhes, estimativas ignoradas pelos especialistas do nosso mundo.

As relações que a melodia e a harmonia têm entre si são como as que existem entre o pensamento e o gesto. Também se poderia dizer que, em música, a melodia representa a síntese, e a harmonia, a análise. Portanto, elas penetram uma na outra e não valem senão quanto mais completamente se combinem e se liguem.

Na Terra, a beleza de uma obra musical resulta ao mesmo tempo da concepção e da execução, mas na vida do Além, o pensamento iniciador e a execução se confundem porque o pensamento comunica às vibrações fluídicas as qualidades que lhe são próprias. A obra é tão mais bela e a impressão que ela produz é tão mais viva quanto mais elevada for a intenção. É isso que dá à prece ardente, o grito da alma em direcção ao seu Criador, propriedades harmónicas.

Quanto mais nos elevamos na escala das relações, mais a unidade nos aparece na sua sublime grandeza.

A lei das notações musicais rege todas as coisas e o seu ritmo embala a vida universal. É uma espécie de geometria radiante e divina. O alfabeto humano, como que uma gaguez, é uma das suas formas mais rudimentares. As suas manifestações, porém, tornam-se cada vez mais amplas e importantes em todos os graus da escala harmónica.

O espírito humano não pode elevar-se até às supremas alturas da arte cuja fonte está em Deus, mas ele pode, pelo menos, elevar as suas aspirações em direcção a elas. As concordâncias estéticas dispõem-se, em graus, ao infinito; mas acontece apenas que se, nas horas de êxtase e de enlevo, o pensamento humano entrevê alguns aspectos da lei universal da harmonia. A regra musical produz-se, no espaço, em traços de luz; o pensamento, a expressão do talento divino e os astros no seu curso, ali conformam as suas vibrações.

Se o espírito humano, nos seus arrebatamentos, se eleva um momento sobre essas alturas, ele recai impotente para descrever as suas belezas; as impressões que ele sente só podem ser traduzidas por uma muda adoração. O próprio Espírito Massenet se declara insuficientemente evoluído para se manter nessas esferas superiores.

Uma vez mais, aqui nos encontramos parados pela impossibilidade de exprimir, numa linguagem humana, ideias sobre-humanas. Ainda que se possa falar, fica-se sempre abaixo da verdade. O infinito das ideias, dos quadros, das imagens são como que um desafio dirigido aos recursos limitados do vocabulário terrestre. Efectivamente, como meter em palavras, como resumir em palavras todo o esplendor das obras que se desenvolvem nas profundezas dos céus estrelados?

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(ii) Diapasão: pequeno instrumento metálico que dá uma nota constante, normalmente o , e que serve para se afinarem vozes e instrumentos por ele. (N.T.)
(iii) Platão: célebre filósofo grego (Atenas, 428 ou 429 - id., 348 ou 347 a.C.), discípulo de Sócrates, mestre de Aristóteles. Autor dos diálogos: CritonFédonFedroGórgiasO BanqueteA RepúblicaAs Leis, etc, em que dá a palavra a Sócrates. (N.T., segundo o Dicionário Koogan Larousse.)



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte X Quarta lição do Espírito Massenet – A música humana e as notas harmónicas – A música celeste – Os sons e as cores – Comentário, 28º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O Concerto dos Anjos (1897), óleo sobre tela de Edgard Maxence)

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a natureza | divina ~

   Ao homem não é dado sondar a natureza íntima de Deus. Para compreender Deus, falta-nos ainda o sentido que só se adquire através da completa depuração do Espírito. Mas se o homem não pode penetrar a sua essência, sendo a sua existência dada como premissa, ele pode pelo raciocínio chegar ao conhecimento dos seus atributos necessários; porque, ao ver o que ele não pode deixar de ser sem deixar de ser Deus, conclui daí o que ele deve ser.

   Sem o conhecimento dos atributos de Deus, seria impossível compreender a obra da criação; é o ponto de partida de todas as convicções religiosas e é por não se terem reportado a ele como a um farol que os podia orientar, que a maior parte das religiões errou nos seus dogmas. As que não atribuíram a Deus a omnipotência imaginavam vários deuses; as que não lhe atribuíram a bondade suprema, criaram um deus ciumento, colérico, parcial e vingativo.

   Deus é a suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, já que não consegue fazer nem compreender tudo o que existe; a de Deus, abarcando o infinito, deve ser infinita. Se a julgássemos limitada a um ponto qualquer, poderíamos conceber um ente ainda mais inteligente, capaz de entender e fazer o que outro não faria e assim seguidamente, até ao infinito.

   Deus é eterno. Isso quer dizer que não teve princípio e que não tem fim. Se tivesse havido um princípio, é porque tinha saído do nada; ora, não sendo o nada coisa nenhuma, não pode produzir nada; ou, então teria sido criado por um ser anterior e, nesse caso, esse ente é que seria Deus. Se lhe atribuíssemos um início ou um fim, poderíamos então conceber um ente que tivesse existido antes dele, ou podendo existir depois dele e assim seguidamente até ao infinito.

   Deus é imutável. Se estivesse sujeito a alterações, as leis que regem o Universo não teriam qualquer estabilidade.

   Deus é imaterial. Isso quer dizer que a sua natureza difere de tudo aquilo a que chamamos matéria; caso contrário seria matéria. Nós dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, só se conhecendo a si, toma-se como termo de comparação de tudo o que não compreende. Aquelas imagens em que representa Deus como um velho de barba comprida, coberto com um manto, são ridículas; têm o inconveniente de rebaixar o Ente supremo às mesquinhas proporções da humanidade; daí que ao atribuir-lhe as paixões da humanidade e dele fazer um Deus de cólera e ciúme não vai mais de um passo.

   Deus é todo-poderoso. Se não possuísse o supremo poder, poderíamos conceber um ente mais poderoso e assim seguidamente, até encontrarmos o ente que nenhum outro pudesse ultrapassar em poder e esse seria Deus.

   Deus é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas revela-se nas mais pequenas coisas assim como nas maiores e esta sabedoria não permite duvidar nem da sua justiça nem da sua bondade.

   O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuísse ou anulasse. Um ser infinitamente bom não poderia possuir a mais pequena parcela de maldade nem o ser infinitamente mau ter a mais pequena parcela de bondade; do mesmo modo que um objecto não poderia ser de um negro absoluto com a mais leve sombra de branco, nem um branco absoluto com a mais pequena mancha de negro.

   Deus não poderia portanto ser simultaneamente bom e mau porque então, não possuindo nem uma nem outra destas qualidades a um grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam submetidas ao capricho e não haveria estabilidade para nada. Só poderia portanto ser infinitamente bom ou infinitamente mau; ora como as suas obras testemunham a sua sabedoria, a sua bondade e a sua solicitude, é preciso concluir daí que, não podendo ser simultaneamente bom e mau sem deixar de ser Deus, deve ser infinitamente bom.

   A soberana bondade implica a soberana justiça; se agisse injustamente ou com parcialidade numa única circunstância, ou para com uma  das duas criaturas, não seria soberanamente justo e, portanto, não seria soberanamente bom.

   Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois poderíamos sempre conceber um ente possuindo o que lhe faltasse. Para que nenhum ente o possa ultrapassar é necessário que ele seja infinito em tudo.

   Os atributos de Deus, sendo infinitos, não são susceptíveis nem de aumento nem de diminuição; sem isso não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se retirássemos a mais pequena parcela de um dos seus atributos, já não teríamos Deus, dado que poderia existir um ser mais perfeito.

   Deus é único. A unidade de deus é consequência do infinito absoluto das perfeições.

   Só poderia existir um outro Deus na condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, porque se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao seu poder e não seria Deus. Se houvesse entre eles igualdade absoluta, seria para toda a eternidade um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder; assim confundidos na sua identidade, não seriam na realidade mais que um só Deus. Se cada um deles tivesse atribuições especiais, um faria o que o outro não faria e então não haveria entre eles igualdade perfeita, dado que nem um nem o outro possuíam autoridade soberana.

   Foi a ignorância do princípio do infinito das perfeições de Deus que engendrou o Politeísmo, culto de todos os povos primitivos; atribuíram divindade a todo o poder que lhes pareceu estar acima da humanidade; mais tarde, a razão levou-os a confundir estes diversos poderes num só. Depois, à medida que os homens foram percebendo a essência dos atributos divinos, eliminaram das suas crenças os símbolos que eram delas a negação.

   Em resumo, Deus só pode ser Deus na condição de não ser ultrapassado em nada por um outro ser; porque então o outro ser que o ultrapassasse, fosse no que fosse, nem que fosse na espessura do cabelo, seria o verdadeiro Deus; por isso, é necessário que seja infinito em todas as coisas.

   É assim que, tendo a existência de Deus sido constatada pelo acto das suas obras, chegamos, por simples dedução lógica, a determinar os atributos que o caracterizam.

   Deus é, portanto, a suprema e soberana inteligência; é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições e não pode ser outra coisa.

   É este o eixo sobre que assenta o edifício universal; é este o farol cujos raios se estendem sobre o Universo inteiro e que é o único a poder guiar o homem na busca da verdade; seguindo-o, nunca se transviará e, se muitas vezes se afastou do bom caminho, é por não ter seguido o caminho que lhe era indicado.

   É também este o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas religiosas; o homem tem para as avaliar uma medida rigorosamente exacta nos atributos de Deus e pode dizer com segurança que qualquer prática que esteja em contradição com um só dos seus atributos, que tendesse não só a anulá-lo mas simplesmente a enfraquecê-lo, não pode estar dentro da verdade.

   Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há uma verdade no que não se afasta um jota das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita seria aquela em que nenhum artigo de fé estivesse em oposição com estas qualidades, de que todos os dogmas pudessem passar pela prova deste controlo sem sofrer qualquer dano.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus | – A natureza divina (de 8 a 19) 16º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Inquietações Primaveris ~


Os Mortos Ressuscitam |

A ressurreição dos mortos no último dia, no fim dos tempos, é uma alegoria judaica de que Jesus se serviu, como de tantos outros elementos do Judaísmo, para ensinar o sentido verdadeiro da morte como transição ou passagem de um mundo para outro, do mundo material para o espiritual. O último dia é apenas aquele em que morremos. O fim dos tempos seria o fim do mundo, mas de que mundo? A imaginação rabínica antecedeu com vantagem a dos teólogos cristãos. Mais integrada nas tradições proféticas do Fértil Crescente, a imensa região oriental descrita por John Murphy (i) na sua História das Religiões, os rabinos judeus dispunham das excitações naturais da época em que um novo mundo estava sendo construído na Terra. A era apocalíptica judaica, de que o Apocalipse de João nos dá uma imagem alucinante, foi o mundo mágico das profecias judaicas. Jesus, judeu nascido na Galiléia dos Gentios, no meio dos gregos da Decápolis, salvou-se da helenização graças à humildade e à pobreza da sua família. A profissão de carpinteiro que o pai lhe transmitia, segundo os costumes da época, livrou-o das influências herodianas que fizeram de Madalena uma cortesã grega típica. Educado na sinagoga, recebendo a bênção da virilidade aos treze anos, no Templo de Jerusalém, Jesus era um judeu entre judeus. A sua inteligência excepcional e a elevação natural do seu espírito permitiam-lhe servir-se dos elementos da cultura judaica para transmitir aos judeus as suas ideias generosas, tentando romper o terrível sociocentrismo judaico, racista e pretensioso, que até hoje perdura de maneira chocante na arrogância e na insolência do novo Estado de Israel. Esse esforço generoso de Jesus, como podemos ver hoje, não surtiu os resultados que um deus grego, por exemplo, poderia ter obtido. Os romanos, que se casavam bem com as anti-virtudes judaicas, teriam feito de Jesus o Messias esperado se a helenização herodiana o tivesse envolvido. Mas o jovem carpinteiro integrou-se de tal maneira nas aspirações grandiosas do Judaísmo e, se apegava tanto às suas ideias generosas de renovação do mundo, que o seu destino só podia ser, no covil de cobras do rabinato, a condenação à morte infamante na crucificação romana.

Essa visão racional da vida de Jesus, que não nos seria possível depois do fim do Mundo Antigo, foi de tal maneira envolvida pelas alucinações proféticas do Judaísmo, pelas fascinações mitológicas da era massivamente dominada pelos mitos e, logo mais pela efervescência das seitas judaicas, das influências filosóficas e míticas da cultura grega e pelas manobras habilíssimas da política imperial romana, que chegou até nós na forma-disforme e atormentada de um sincretismo cultural assustador. O jovem carpinteiro foi transformado em mito, em rei e, por fim, num deus grego que absorvia na sua natureza os poderes totais do Messias, de Iavé, de Zeus e de Júpiter. Roma rendeu-se a esse sincretismo por força das circunstâncias, mas com a condição de manter nas suas mãos imperiais as rédeas da nova era. A queda do Império pela invasão dos bárbaros e a subjugação posterior de Bizâncio – aumentando o sincretismo cultural, quantitativa e qualitativamente pela turbulência e a vitalidade dos povos bárbaros, completou-se na desfiguração mitológica do Cristianismo, de maneira irremediável, no trágico totalitarismo sagrado do período medieval. Por isso, quando os primeiros ventos da Renascença começaram a soprar sobre a Europa orientalizada, abalando a estrutura gigantesca e a todo poderosa Igreja, a insurreição luterana desencadeou as forças adormecidas da renovação dos tempos. E quando um jovem seminarista, Ernest Renan, resolveu passar a limpo a História Cristã, só não foi queimado na praça pública porque, como assinalou Kardec, a cauda da inquisição já se arrastava nas terras de Espanha.

Sem a compreensão rigorosamente histórica desse vastíssimo e trágico panorama, despido das fantasias mitológicas e aliviado das toneladas de quinquilharias sagradas com que Roma o asfixiara, não poderíamos compreender a formação do mundo moderno, de cujas entranhas nascemos para decifrar os enigmas atordoantes da Esfinge Romana. A Loba nos devoraria com a impiedade dos Césares.

Os mortos ressuscitam, não no fim dos tempos, no último dia, pois que iriam fazer com a sua ressurreição no vazio do mundo, sem tempo ou no tempo sem mundo? E de que lhes serviria ressuscitar, no fim dos milénios com os seus miseráveis corpos doentes e deformados, aos quais Deus, num excesso de crueldade, concederia a vida eterna com as suas doenças e aleijões?

Essa ideia espantosa, que parece derivada das tragédias gregas, saiu da cabeça de teólogos iluminados pelas fogueiras medievais, perante a lição de Jesus a Tomé, que teve de tocar com os dedos as chagas da crucificação nas mãos do mestre, para acreditar que era mesmo Jesus quem ali se apresentava, no cenáculo dos apóstolos. Apesar das muitas manifestações de mortos ressuscitados em estado de pureza e beleza etérea, que ocorriam no culto pneumático ou culto dos Espíritos, na era apostólica, os teólogos vesgos acharam que os mortos teriam de ressuscitar com as suas marcas e aleijões. E como Deus lhes conferia a vida eterna, eles continuariam assim pela eternidade. É tão obtusa essa dedução que nos custamos acreditar que tantos homens de estudo, tantos mestres do passado e do presente tenham endossado e ensinado ao povo essa burrice sumária. Untersteiner, em A Fisiologia do Mito, tentou esclarecer a função racional do mito no desenvolvimento da cultura. Onde colocarmos tudo isso: razão, fé e cultura, diante de um corcunda, como o da Catedral de Notre Dame de Paris, na ficção de Victor Hugo, ressuscitado com o seu corpo disforme para arrastá-lo pela eternidade? E que dizer do suplício dos mortos que tiveram de sofrer a decomposição dos seus corpos na terra durante milénios, à espera desse prémio terrorista de uma recomposição divina de suas mazelas e aleijões eternizados? Tudo isso não mereceria os gastos de papel e tinta que estamos a fazer, não fosse a aceitação maciça e inconsciente dessas e outras coisas semelhantes que os teólogos inventaram e os clérigos semearam no mundo. O simples facto de se tratar disso já é ridículo, mas devemos expor-nos ao ridículo quando o amor à verdade e o amor ao próximo nos exige esse sacrifício. Os novos teólogos, surgidos do inferno da II Guerra Mundial, levantaram-se contra esses absurdos, mas por sua vez propuseram o absurdo maior da Morte de Deus. O Padre Teilhard de Chardin procurou contribuir para a renovação teológica nos nossos dias, mas por pouco não foi excomungado. A Igreja Eterna não abre as suas janelas aos ventos renovadores. Não pode deixar de ser o que foi. As correntes de pensamento renovador não são aceites pela Igreja.

As lições de Jesus sobre a ressurreição dos mortos abrangem os problemas da ressurreição propriamente dita e da reencarnação. Os textos evangélicos são de absoluta clareza. No caso de João Baptista como a reencarnação de Elias, no do cego de nascença, no diálogo límpido e inalienável com Nicodemos e noutras passagens, mas particularmente na discussão com os apóstolos a respeito dele mesmo, Jesus não deixou dúvidas possíveis, mas os teólogos se incumbiram de criar as dúvidas que a Igreja semeia há quase dois milénios. Se Jesus não concordasse com o princípio, teria corrigido os discípulos, como o fez de maneira enérgica em tantas ocasiões. Jesus ouviu pacientemente o que diziam dele: antigo profeta que ressurgira dos mortos (reencarnação), o Cristo, Filho de Deus (encarnação messiânica), não havendo nesta, em virtude da sua missão, o problema das provas. Depois da crucificação, as provas individuais concretas de sua ressurreição no corpo espiritual. Os teólogos, ignorando as leis desses fenómenos e imbuídos de superstições mitológicas, não perceberam que Jesus aprovara a tese reencarnacionista, confirmando porém, como certa, a da encarnação messiânica, que era o seu caso. Mais tarde tudo se esclareceria com as provas dadas aos discípulos, a começar por Madalena, de que ressuscitara em espírito, como todos ressuscitaremos. Também não perceberam que, no caso da transfiguração no Tabor, com a prova da ressurreição de Moisés e Elias e, com a sua própria transfiguração no corpo espiritual, antecipara a demonstração prática do que teoricamente ensinava. Naquele tempo os judeus confundiam, como observa Kardec, reencarnação com ressurreição. Compreende-se que os teólogos cristãos continuavam e continuam, até hoje, jejunos no assunto, como os judeus antigos. Convém lembrarmos, também, da afirmação de Jesus de que poderia destruir e reconstruir o seu templo em apenas três dias. Tudo isso escapou aos teólogos e aos clérigos cristãos, que até hoje, com raras excepções, nada aprenderam a respeito. A resposta de Jesus a Nicodemos, advertindo-o de que, se não o entendia quando falava das coisas da Terra (reencarnação como novo nascimento na carne e no espírito), como queria entender as coisas celestes. Essa advertência continua a pesar sobre as igrejas cristãs actuais em todo o mundo.

Coube ao Apóstolo Paulo explicar, na I Epístola aos Coríntios, que temos corpo material (animal) e corpo espiritual e, que este corpo, o espiritual, é o corpo da ressurreição. Com essa explicação, Paulo, que havia reconhecido na Estrada de Damasco o Cristo no esplendor do seu corpo espiritual, ensinava aos cristãos da igreja de Corinto que Jesus havia ressuscitado ao terceiro dia no seu corpo espiritual e não no seu corpo carnal. Se os coríntios compreenderam isso não sabemos, mas sabemos com certeza absoluta que as Igrejas Cristãs dos nossos dias ainda não perceberam nada desse grave e importante problema, que é suficiente para renovar as suas Igrejas secretas. Até agora as Igrejas faziam, na Semana Santa, a Procissão do Senhor Morto, enterrando de novo, simbolicamente, o corpo de Jesus.

A Ciência Espírita provou cientificamente que os espíritos, nas suas aparições tangíveis, como agéneres, se mostram capazes de fazer todos os actos de uma pessoa viva encarnada: comem, bebem, apertam as mãos dos amigos, conversam, partem o pão e assim por diante. Porque Jesus fez tudo isso no seu corpo espiritual, teólogos e clérigos andam pregando até hoje que ele ressuscitou na carne. Entretanto, a ressurreição de entre os mortos, na carne, nada tem a ver com as aparições tangíveis, pois é a reencarnação do morto em novo nascimento carnal.

Todos morremos, mas todos ressuscitamos. Por isso não somos mortais, mas imortais. Mortal é o corpo material de que nos servimos para – segundo as Filosofias da Existência, – nos projectarmos no plano existencial. Na Terra, só existimos quando integramos a humanidade encarnada. Os filósofos existenciais, até o materialista Sartre, são obrigados a admitir uma anterioridade do nosso ser (onde e como?) para podermos projectar-nos na existência. Sartre diz apenas que, antes de existir, somos o em-si, uma coisa viscosa e fechada em si mesma, que se projecta no para-si, a existência material, para fazer o trajecto da vida em direcção à morte, buscando a síntese do em-si-para-si, que seria a nossa passagem para o plano divino. Mas Sartre acha que o homem é uma paixão inútil, pois não consegue atingir a divindade. Apesar da sua confusão, Sartre é mais coerente nessa tese do que os teólogos cristãos. Pois estes nos enterram e nos sacramentam para nos fazer dormir nas catacumbas até ao Fim dos Tempos, à espera do Juízo Final.

Mas a mais difícil tarefa da Educação para a Morte é precisamente a de quebrar esse condicionamento milenar, integrando os homens numa visão mais realista da vida. Os factos são de todos os tempos e estão ao alcance de todas as criaturas dotadas de bom senso. Hoje, graças à abertura científica produzida pelo avanço acelerado das Ciências, não se pode admitir que pessoas razoavelmente cultas continuem amarradas – como acontece na própria Parapsicologia, – ao sincretismo teológico do Tomismo de Tomás de Aquino, como acontece com Robert Amadou em França ou às teorias peremptas do velho René Sudre, que volta a tocar o seu realejo enferrujado nos nossos dias. O realejo de Sudre foi desmontado por Ernesto Bozzano no século passado e, isso de maneira irremediável, com a técnica, a lógica e a precisão matemática de Bozzano. Mas o velho teimoso ainda o põe a funcionar, para delícia dos ouvidos esclerosados que não percebem o som rasca das peças carcomidas pela ferrugem. “Morrer não é morrer, meus amigos. Morrer é mudar-se”, exclamou Victor Hugo após as experiências espíritas do seu exílio na ilha de Jersey. Lombroso, contendo a emoção, abraçou a sua mãe materializada na casa do Prof. Chiaia, em Milão. Frederico Figner, judeu ortodoxo, tornou-se espírita na sessão de Belém do Pará, em que a médium Anna Prado lhe devolveu a filha morta, a menina Rachel, que voltou a abraçá-lo e à sua esposa, sentando-se no colo de ambos e advertindo a mãe de que devia tirar o luto, pois ela, Rachel, como provava naquele momento, não morrera. Richet, o fisiologista do século, escreveu a Schutel: “A morte é a porta da vida.” Rhine, Pratt, Carington e Price, nos nossos dias, comprovaram e sustentam com provas nas mãos a sobrevivência do homem à morte do corpo material. Lord Daofinng, na batalha de Londres, da II Guerra Mundial, conversou com os seus aviadores mortos sobre o território alemão. Seriam todos alucinados, teriam perdido o senso e a capacidade de discernimento para aceitar trapaças indignas? Seremos acaso mais bem-dotados do que essas grandes figuras da nossa vida cultural? De que elementos dispomos para rejeitar a nossa própria sobrevivência? Que contra-provas podemos opor ao nosso próprio direito de superar a morte – a destruição total do ser humano –, num Universo em que nada se destrói?

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 19 – Os Mortos Ressuscitam, 24º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)