Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a natureza | divina ~

   Ao homem não é dado sondar a natureza íntima de Deus. Para compreender Deus, falta-nos ainda o sentido que só se adquire através da completa depuração do Espírito. Mas se o homem não pode penetrar a sua essência, sendo a sua existência dada como premissa, ele pode pelo raciocínio chegar ao conhecimento dos seus atributos necessários; porque, ao ver o que ele não pode deixar de ser sem deixar de ser Deus, conclui daí o que ele deve ser.

   Sem o conhecimento dos atributos de Deus, seria impossível compreender a obra da criação; é o ponto de partida de todas as convicções religiosas e é por não se terem reportado a ele como a um farol que os podia orientar, que a maior parte das religiões errou nos seus dogmas. As que não atribuíram a Deus a omnipotência imaginavam vários deuses; as que não lhe atribuíram a bondade suprema, criaram um deus ciumento, colérico, parcial e vingativo.

   Deus é a suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, já que não consegue fazer nem compreender tudo o que existe; a de Deus, abarcando o infinito, deve ser infinita. Se a julgássemos limitada a um ponto qualquer, poderíamos conceber um ente ainda mais inteligente, capaz de entender e fazer o que outro não faria e assim seguidamente, até ao infinito.

   Deus é eterno. Isso quer dizer que não teve princípio e que não tem fim. Se tivesse havido um princípio, é porque tinha saído do nada; ora, não sendo o nada coisa nenhuma, não pode produzir nada; ou, então teria sido criado por um ser anterior e, nesse caso, esse ente é que seria Deus. Se lhe atribuíssemos um início ou um fim, poderíamos então conceber um ente que tivesse existido antes dele, ou podendo existir depois dele e assim seguidamente até ao infinito.

   Deus é imutável. Se estivesse sujeito a alterações, as leis que regem o Universo não teriam qualquer estabilidade.

   Deus é imaterial. Isso quer dizer que a sua natureza difere de tudo aquilo a que chamamos matéria; caso contrário seria matéria. Nós dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, só se conhecendo a si, toma-se como termo de comparação de tudo o que não compreende. Aquelas imagens em que representa Deus como um velho de barba comprida, coberto com um manto, são ridículas; têm o inconveniente de rebaixar o Ente supremo às mesquinhas proporções da humanidade; daí que ao atribuir-lhe as paixões da humanidade e dele fazer um Deus de cólera e ciúme não vai mais de um passo.

   Deus é todo-poderoso. Se não possuísse o supremo poder, poderíamos conceber um ente mais poderoso e assim seguidamente, até encontrarmos o ente que nenhum outro pudesse ultrapassar em poder e esse seria Deus.

   Deus é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas revela-se nas mais pequenas coisas assim como nas maiores e esta sabedoria não permite duvidar nem da sua justiça nem da sua bondade.

   O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de uma qualidade contrária que a diminuísse ou anulasse. Um ser infinitamente bom não poderia possuir a mais pequena parcela de maldade nem o ser infinitamente mau ter a mais pequena parcela de bondade; do mesmo modo que um objecto não poderia ser de um negro absoluto com a mais leve sombra de branco, nem um branco absoluto com a mais pequena mancha de negro.

   Deus não poderia portanto ser simultaneamente bom e mau porque então, não possuindo nem uma nem outra destas qualidades a um grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam submetidas ao capricho e não haveria estabilidade para nada. Só poderia portanto ser infinitamente bom ou infinitamente mau; ora como as suas obras testemunham a sua sabedoria, a sua bondade e a sua solicitude, é preciso concluir daí que, não podendo ser simultaneamente bom e mau sem deixar de ser Deus, deve ser infinitamente bom.

   A soberana bondade implica a soberana justiça; se agisse injustamente ou com parcialidade numa única circunstância, ou para com uma  das duas criaturas, não seria soberanamente justo e, portanto, não seria soberanamente bom.

   Deus é infinitamente perfeito. É impossível conceber Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois poderíamos sempre conceber um ente possuindo o que lhe faltasse. Para que nenhum ente o possa ultrapassar é necessário que ele seja infinito em tudo.

   Os atributos de Deus, sendo infinitos, não são susceptíveis nem de aumento nem de diminuição; sem isso não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se retirássemos a mais pequena parcela de um dos seus atributos, já não teríamos Deus, dado que poderia existir um ser mais perfeito.

   Deus é único. A unidade de deus é consequência do infinito absoluto das perfeições.

   Só poderia existir um outro Deus na condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, porque se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao seu poder e não seria Deus. Se houvesse entre eles igualdade absoluta, seria para toda a eternidade um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder; assim confundidos na sua identidade, não seriam na realidade mais que um só Deus. Se cada um deles tivesse atribuições especiais, um faria o que o outro não faria e então não haveria entre eles igualdade perfeita, dado que nem um nem o outro possuíam autoridade soberana.

   Foi a ignorância do princípio do infinito das perfeições de Deus que engendrou o Politeísmo, culto de todos os povos primitivos; atribuíram divindade a todo o poder que lhes pareceu estar acima da humanidade; mais tarde, a razão levou-os a confundir estes diversos poderes num só. Depois, à medida que os homens foram percebendo a essência dos atributos divinos, eliminaram das suas crenças os símbolos que eram delas a negação.

   Em resumo, Deus só pode ser Deus na condição de não ser ultrapassado em nada por um outro ser; porque então o outro ser que o ultrapassasse, fosse no que fosse, nem que fosse na espessura do cabelo, seria o verdadeiro Deus; por isso, é necessário que seja infinito em todas as coisas.

   É assim que, tendo a existência de Deus sido constatada pelo acto das suas obras, chegamos, por simples dedução lógica, a determinar os atributos que o caracterizam.

   Deus é, portanto, a suprema e soberana inteligência; é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições e não pode ser outra coisa.

   É este o eixo sobre que assenta o edifício universal; é este o farol cujos raios se estendem sobre o Universo inteiro e que é o único a poder guiar o homem na busca da verdade; seguindo-o, nunca se transviará e, se muitas vezes se afastou do bom caminho, é por não ter seguido o caminho que lhe era indicado.

   É também este o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas religiosas; o homem tem para as avaliar uma medida rigorosamente exacta nos atributos de Deus e pode dizer com segurança que qualquer prática que esteja em contradição com um só dos seus atributos, que tendesse não só a anulá-lo mas simplesmente a enfraquecê-lo, não pode estar dentro da verdade.

   Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há uma verdade no que não se afasta um jota das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita seria aquela em que nenhum artigo de fé estivesse em oposição com estas qualidades, de que todos os dogmas pudessem passar pela prova deste controlo sem sofrer qualquer dano.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus | – A natureza divina (de 8 a 19) 16º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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