Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Hippolyte Léon Denisard Rivail


~~ O TAMBOR de BERESINA  ~
(in, conversas familiares de além-túmulo)

Tendo-se reunido em nossa casa algumas pessoas com o objectivo de constatar certas manifestações, produziram-se os factos que se seguem, que foram observados ao longo de várias sessões, originando a conversa que vamos relatar e, que tem relevante interesse do ponto de vista de estudo.

Manifestou-se um Espírito por pancadas, que não eram dadas com o pé da mesa, mas na própria intimidade da madeira. A troca de ideias que então se deu, entre os presentes e o ser invisível, não permitia duvidar da intervenção de uma inteligência oculta. Além das respostas a várias perguntas, seja por um sim, seja por um não, seja ainda por meio de tiptologia alfabética, os golpes batiam à vontade uma marcha qualquer, o ritmo de uma ária musical, imitavam a fuzilaria e o canhoneio de uma batalha, o barulho de um tanoeiro e de um sapateiro; faziam eco com admirável precisão... Depois aconteceu o movimento de uma mesa e a sua translação sem qualquer contacto das mãos, uma vez que os assistentes se mantinham afastados; colocada sobre a mesa, em vez de girar, uma saladeira se pôs a deslizar em linha recta, igualmente sem contacto das mãos. Os golpes eram ouvidos do mesmo modo, nos diversos móveis do quarto, algumas vezes simultaneamente; outras, como se estivessem a dar resposta.

O Espírito parecia ter uma predilecção marcante pelo toque de tambor, pois que os repetia a cada momento sem que se lhe pedisse. Muitas vezes, em lugar de responder a certas perguntas, tocava a generala ou tocava a reunir. Interrogado sobre várias particularidades de sua vida, disse chamar-se Célima, ter nascido em Paris, falecido aos quarenta e cinco anos e ter sido tocador de tambor.

Entre os assistentes, além do médium especial de efeitos físicos que produzia as manifestações, havia um excelente médium psicógrafo que serviu de intérprete ao Espírito, o que nos permitiu obter respostas mais explícitas. Tendo confirmado, pela escrita, o que havia dito pela tiptologia a propósito de seu nome, lugar de nascimento e a época da morte, foi-lhe dirigida a série de perguntas que se segue, cujas respostas nos oferecem vários traços característicos que corroboram certas partes essenciais da teoria.

1. Escreve qualquer coisa, o que quiseres.
Resp. – Ran plan plan, ran, plan, plan.

2. Por que escreveste isso?
Resp. – Eu era tocador de tambor.

3. Havias recebido alguma instrução?
Resp. – Sim.

4. Onde fizeste os teus estudos?
Resp. – Nos Ignorantins.

5. Pareces jovial.
Resp. – Sim, eu o sou bastante.

6. Uma vez nos disseste que, em vida, gostavas muito de beber; é verdade?
Resp. – Eu gostava de tudo o que era bom.

7. Eras militar?
Resp. – Claro que sim, era tocador de tambor.

8. Sob que governo serviste?
Resp. – O de Napoleão, o Grande.

9. Podes citar-nos uma das batalhas em que tenhas participado?
Resp. – A de Beresina.

10. Foi lá que morreste?
Resp. – Não.

11. Estavas em Moscovo?
Resp. – Não.

12. Onde morreste?
Resp. – Na neve.

13. Em que corpo militar servias?
Resp. – Nos fuzileiros da guarda.

14. Gostavas muito de Napoleão, o Grande?
Resp. – Como todos nós amávamo-lo e, sem saber porquê!

15. Sabes em quem se tornou Napoleão depois da sua morte?
Resp. – Depois de minha morte só me ocupei de mim mesmo.

16. Estás reencarnado?
Resp. – Não, tanto que venho conversar convosco.

17. Por que te manifestas por pancadas, sem que tenhas sido evocado?
Resp. – É preciso fazer barulho para aqueles cujos corações em nada acreditam. Se assim ainda não chega, dar-vos-ei muito mais.

18. Foi de tua própria vontade que vieste bater, ou um outro Espírito te obrigou a fazê-lo?
Resp. – Venho por minha vontade; há um outro, a quem chamais Verdade, que pode forçar-me a isso também. Mas há muito tempo que eu queria vir.

19. Com que objectivo querias vir?
Resp. – Para conversar convosco; era o que eu queria; havia, porém, alguma coisa que mo impedia. Fui forçado por um Espírito familiar da casa, que me exortou a tornar-me útil aos homens que me fizessem perguntas.
– Esse Espírito, então, tem muito poder, visto comandar outros Espíritos?
Resp. – Mais do que imaginais e, não o emprega senão para o bem.

Observação – O Espírito familiar da casa deu-se a conhecer sob o nome alegórico de Verdade, circunstância ignorada do médium.

20. O que te impedia de vir?
Resp. – Não sei; alguma coisa que não compreendo.

21. Lamentas a vida?
Resp. – Não; nada lamento.

22. Qual a existência que preferes: a actual ou a terrestre?
Resp. – Prefiro a existência do Espírito à do corpo.

23. Por quê?
Resp. – Porque estamos bem melhor do que na Terra. A Terra é um purgatório; durante todo o tempo em que nela vivi, sempre desejei a morte.

24. Sofres na tua nova situação?
Resp. – Não; mas ainda não sou feliz.

25. Ficarias satisfeito se tivesses uma nova existência corporal?
Resp. – Sim, porque sei que tenho de me elevar.

26. Quem te disse isso?
Resp. – Eu sei-o bem.

27. Reencarnarás em breve?
Resp. – Não sei.

28. Vês outros Espíritos à tua volta?
Resp. – Sim; muitos.

29. Como sabes que são Espíritos?
Resp. – Entre nós, vemo-nos tal qual somos.

30. Sob que aparência os vês?
Resp. – Como se podem ver os Espíritos; mas não pelos olhos.

31. E tu, sob que forma te encontras aqui?
Resp. – Sob a que tinha quando vivo aí, isto é, como tocador de tambor.

32. E os outros Espíritos? Tu os vês sob a forma que possuíam quando estavam encarnados?
Resp. – Não; só tomamos uma determinada aparência quando somos evocados, de outro modo vêmo-nos sem forma.

33. Tu nos vês tão claramente como se estivesses vivo na Terra?
Resp. – Sim, perfeitamente.

34. É através dos olhos que nos vês?
Resp. – Não; temos uma forma, mas não temos sentidos; a nossa forma é apenas aparente.

Observação – Seguramente os Espíritos têm sensações, já que as percebem; se assim não fosse, seriam inertes; contudo, as suas sensações não são localizadas, como quando têm um corpo, mas inerentes a todo o ser.

35. Diz-nos exactamente em que lugar estás agora aqui.
Resp. – Perto da mesa, entre vós e o médium.

36. Quando bates, estás sob a mesa, em cima dela ou na intimidade da madeira?
Resp. – Estou ao lado; não me meto na madeira: basta-me tocar a mesa.

37. Como produzes os ruídos que fazes ouvir?
Resp. – Creio que é por intermédio de uma espécie de concentração da nossa força.

38. Poderias explicar-nos a maneira pela qual são produzidos os diferentes ruídos que imitas, as arranhaduras, por exemplo?
Resp. – Eu não saberia precisar muito bem a natureza dos ruídos; é difícil de explicar. Sei que arranho, mas não posso explicar como produzo esse ruído a que chamais de arranhar.

39. Poderias produzir os mesmos ruídos com qualquer outro médium?
Resp. – Não; há especialidade em todos os médiuns; nem todos podem agir da mesma forma.

40. Vês entre nós, além do jovem S... (o médium de efeitos físicos pelo qual o Espírito se manifesta), alguém que poderia ajudar-te a produzir os mesmos efeitos?
Resp. – No momento não vejo ninguém; com ele eu estaria muito disposto a fazê-lo.

41. Por que com ele e não com outro?
Resp. – Porque o conheço melhor; depois, porque está mais apto do que qualquer outro a esse género de manifestações.

42. Tu conhecia-lo há muito tempo? Antes de sua actual existência?
Resp. – Não; conheço-o só há muito pouco tempo; de alguma sorte a ele fui atraído para que se tornasse meu instrumento.

43. Quando uma mesa se eleva no ar, sem ponto de apoio, quem a sustenta?
Resp. – A nossa vontade, que lhe ordenou obedecer e, também, o fluido que lhe transmitimos.

Observação – Esta resposta vem apoiar a teoria que nos foi transmitida sobre a causa das manifestações físicas e que relatamos nos números 5 e 6 desta Revista.

44. Poderias fazê-lo?
Resp. – Creio que sim; tentarei quando o médium vier.
(nesse momento ele estava ausente).

45. Do que depende isso?
Resp. – Depende de mim, pois me sirvo do médium como de um instrumento.

46. Mas a qualidade do instrumento não conta para alguma coisa?
Resp. – Sim, auxilia-me muito; tanto assim é que eu disse não poder fazê-lo hoje com outros médiuns.

Observação – Durante a sessão tentou-se levantar a mesa, mas não se obteve êxito, talvez porque não tivesse havido perseverança bastante; houve esforços evidentes e movimentos de translação sem contacto nem imposição das mãos. Entre as experiências feitas destacou-se a da abertura da mesa, que era extensível; porque oferecesse muita resistência, em face de um defeito de construção, foi posta de lado, enquanto o Espírito se ocupava de uma outra e conseguia abri-la.

47. Por que é que, no outro dia, os movimentos da mesa se detinham de cada vez que um de nós agarrava uma luz para tentar ver melhor debaixo dela?
Resp. – Porque eu queria punir a vossa curiosidade.

48. De que te ocupas na tua existência de Espírito, considerando que não deves passar o tempo todo somente a bater?
Resp. – Muitas vezes tenho missões a cumprir; devemos obedecer a ordens superiores e, sobretudo, fazer o bem aos seres humanos que estão debaixo da nossa influência.

49. Por certo que a tua vida terrestre não foi isenta de faltas; reconhece-las, agora?
Resp. – Sim; e é por isso que as expio, permanecendo estacionário entre os Espíritos inferiores; só poderei purificar-me o bastante quando tomar um outro corpo.

50. Quando aplicavas os golpes na mesa e, ao mesmo tempo, noutro móvel, eras tu quem os produzia, ou era um outro Espírito?
Resp. – Era eu, era o mesmo.

51. Estavas só, portanto?
Resp. – Não, mas realizava sozinho o trabalho de bater.

52. Os demais Espíritos que lá se encontravam não te auxiliavam em alguma coisa?
Resp. – Não para bater, mas para falar.

53. Então não eram Espíritos batedores?
Resp. – Não; Verdade somente a mim havia permitido bater.

54. Algumas vezes os Espíritos batedores não se reúnem em maior número, com o fim de terem mais força na produção de certos fenómenos?
Resp. – Sim, mas para aqueles que eu podia fazer, eu só bastava.

55. Estás sempre na Terra, na tua existência espiritual?
Resp. – Mais frequentemente no espaço.

56. Vais algumas vezes a outros mundos, isto é, a outros globos?
R. Não aos mais perfeitos, mas aos mundos inferiores.

57. Por vezes divertes-te em ver e ouvir o que fazem os homens?
Resp. – Não; porém, algumas vezes tenho pena deles.

58. De preferência, quais são aqueles que procuras?
Resp. – Os que querem crer de boa-fé.

59. Poderias ler os nossos pensamentos?
Resp. – Não; não leio nas almas; não sou bastante perfeito para isso.

60. Todavia, deves conhecer os nossos pensamentos, já que vens entre nós; de outra forma, como poderias saber se acreditamos de boa-fé?
Resp. – Não leio, mas compreendo.

Observação – A pergunta 58 tinha por objectivo saber a quem, espontaneamente, dirigia a sua preferência na vida de Espírito, sem ser evocado; através da evocação, como Espírito de uma ordem pouco elevada, poderia ser constrangido a vir a um meio que lhe desagradasse. Por outro lado, sem ler propriamente os nossos pensamentos, por certo poderia ver que as pessoas ali reunidas não o faziam senão com um objectivo sério e, pela natureza das perguntas e da conversa que ouvisse, seria capaz de julgar se a assembleia era composta de pessoas sinceramente desejosas de se esclarecerem.

61. Encontraste alguns dos teus antigos companheiros do Exército no mundo dos Espíritos?
Resp. – Sim, mas as suas posições eram tão diferentes que não os reconheci a todos.

62. Em que consistia essa diferença?
Resp. – Na situação feliz ou infeliz de cada um.

63. Como entendias essa subida para Deus?
Resp. – Cada degrau transposto é um degrau a mais até Ele.

64. Disseste que morreste na neve; foi em consequência do frio?
Resp. – De frio e de fome.

65. Tiveste consciência imediata da tua nova existência?
Resp. – Não, mas depois já não sentia o frio.

66. Alguma vez retornaste ao local onde deixaste o teu corpo?
Resp. – Não, ele me fez sofrer o bastante.

67. Nós agradecemos-te as explicações que tiveste a bondade de nos dar. Elas nos forneceram material de observação muito útil para o nosso aperfeiçoamento na ciência espírita.
Resp. – Estou inteiramente às vossas ordens.

Observação – Pouco avançado na hierarquia espírita, como se vê, o próprio Espírito reconhecia a sua inferioridade. Os seus conhecimentos são limitados; mas tem bom senso, sentimentos louváveis e benevolência. Como Espírito, a sua missão carecia de significado, visto que desempenhava o papel de Espírito batedor, para chamar os incrédulos à fé; contudo, mesmo no teatro, a humilde indumentária de comparsa não pode envolver um coração honesto? As suas respostas têm a simplicidade da ignorância; entretanto, pelo facto de não possuírem a elevação da linguagem filosófica dos Espíritos superiores, nem por isso deixam de ser menos instrutivas, sobretudo para o estudo dos costumes espíritas, se assim nos podemos exprimir. É somente estudando todas as classes desse mundo que nos aguarda que podemos chegar a conhecê-lo e nele marcar, de algum modo, por antecipação, o lugar que a cada um de nós será dado ocupar. Vendo a situação que, pelos seus vícios e virtudes, criaram os homens, nossos iguais aqui na Terra, sentimo-nos encorajados a nos elevar o mais rapidamente possível desde esta vida: é o exemplo ao lado da teoria. Para conhecermos bem alguma coisa e, dela fazermos uma ideia isenta de ilusões, é preciso dissecá-la em todos os seus aspectos, assim como o botânico não pode conhecer o reino vegetal a não ser observando desde o mais humilde criptógamo, que o musgo oculta, até ao carvalho altaneiro, que se eleva nos ares.
/…

Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, O TAMBOR DE BERESINA Conversas Familiares de Além-Túmulo – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Julho de 1858, 7º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 5 de abril de 2020

~~~Párias em Redenção~~~


~~ O JULGAMENTO
SOB O AÇODAR*
DA CONSCIÊNCIA
(II de III)

Girólamo reviu as cenas nas quais fora implacável com as vítimas que lhe estremeciam nas mãos convertidas em garras. Repassou o trágico incidente do solar, quando do trucidamento das crianças e Lúcia, e reviu-se na mente marcada indelevelmente pela tragédia. Os seus ouvidos agora registavam, na memória do remorso a manifestar-se, os ruídos das crianças indefesas e o gorgolejar do sangue na garganta de Lúcia.

Súbito horror dominou-o e, pela primeira vez, compreendeu a extensão dos seus delitos e excessos… Lembrou-se de Assunta, a comparsa, e nesse momento acompanhou-a na descrição da sua própria tragédia, também acusadora, diante do Magistrado, que parecia de pedra, com um semblante pálido, sem qualquer expressão de sentimento, desinteressado das desditas de cada um dos que ali vinham depor.

– Dei-lhe o meu amor – lamentou a inditosa –, e ele tomou a minha vida nas suas mãos, destroçando-me antes a honra e depois aniquilando-me o corpo. E eu que tanto o amei!...

A voz dolorida da compor antiga feria o verdugo impenitente. Só então pôde descobrir que também chegara quase a amá-la, mas resvalara pela rampa da ambição desmedida e selvagem, dos desejos infrenes em que se consumia.

Perante as acusações terríveis que lhe pesavam sobre a consciência, as outras dores, as agonias diversas pareceram ceder, para que tivesse ciência da enormidade dos seus desmandos e recebesse o castigo para o qual não se encontrava preparado…

Silenciando Assunta, o promotor acudiu relatando que as outras vítimas não foram encontradas, tendo desaparecido. (Ignoravam ou desejavam dar a impressão do desconhecimento do Divino Amparo que as recolhera, socorrendo-as em estância feliz, noutras regiões da Espiritualidade.)

Ergueu-se o Magistrado, obeso e mau, grunhindo entre os dentes, impassivelmente:

– Prisão perpétua! Que seja entregue ao prejudicado maior para que este o suplicie!

Munido de relho longo, cortante, Dom Giovanni acercou-se e, segurando o desgraçado, aplicou-lhe, ali mesmo no Tribunal – para escarmento dos outros que seriam julgados, aumentando neles o pavor a estampar-se-lhes nos rostos macerados –, as primeiras sevícias, enquanto Assunta, deformada no seu facies de louca, prorrompeu em sardónicas e longas gargalhadas.

Dobar-se-iam (i) os anos em decénios longos e sombrios, a partir de então, no estranho reino da impiedade e da loucura, resultado das mentes desarvoradas e satânicas, que mesmo da Terra elaboram o suplício que supõem merecer, acalentando nos painéis da alma as tramas infelizes em que caem mais tarde, quando cessa o pulsar da vida orgânica no sentimento atormentado e no corpo ultrajado.

Às religiões sempre coube o papel de esclarecer, ao invés de atemorizar e reunir mistérios desnecessários perante as leis do amor, simples e invioláveis, do Pai. Falindo nos objectivos elevados de conduzir o homem, conspurcaram as águas límpidas do Cristianismo, elaborando pelourinhos de urdidura múltipla para as mentes desataviadas ou tímidas que se lhes vinculam, impossibilitadas de libertação. Engendrando pavores e liberdade ao preço ignóbil das moedas que enferrujam, deixaram o espírito dos povos sem as necessárias quão valiosas ferramentas do equilíbrio, atrasando longamente o desenvolvimento das criaturas.

Com o advento do Espiritismo, porém, abrem-se os pórticos da luz total e as claridades do amor e da sabedoria penetram os umbrais sombrios do orbe, proclamando a vitória do Cristo sobre a ignorância e a dominação dos enganados-enganadores do poder temporal.

Vinculado pelos crimes ao duque tornado revel, o vampirismo pernicioso do ódio irracional imantou as duas entidades, fazendo que a vítima continuasse a sucumbir, cada vez mais inerme, na vingança produzida pelo desafecto, igualmente tresloucado…

Transcorriam os decénios na luta tiranizante do sofrimento. Nos intervalos do expurgo da consciência culpada. Girólamo passou a recordar as visões que tivera da duquesa, quando lembranças que pareciam luz frouxa que se acendesse para logo apagar, foi-se fixando, lentamente, no desejo da paz, evocando o amor que recebera e, em consequência, passou a situar o pensamento em outras faixas da esperança, conquanto não tivesse lucidez necessária para discernir ou aspirar à tranquilidade.

O ser tragado pelo simum do deserto não pensa: luta pela sobrevivência de forma animal, sem o uso da razão, à semelhança do afogado que braceja em terrível busca de qualquer meio de salvação.

A duquesa, a seu turno, desde a consumação do suicídio pelo sobrinho invigilante, não cessava de orar. Mais de uma vez, utilizando-se de recursos subtis, pudera visitar os dois espíritos queridos entregues à voragem da desgraça a que se arrojavam, desditosos, sem, contudo, poder interferir nos destinos que lhes comprazia experimentar, para não violar as Leis Supremas que dirigem a Vida.

Mediante o pensamento vigilante, porém, alongava-se até aos redutos do infortúnio e suplicava por eles, envolvendo-os, e aos demais supliciados, no lenitivo da sua oração de reconforto. Por obra de seres abnegados, aqueles sítios de sordidez e punição frequentemente são visitados por desconhecidas aragens que, por momentos, diminuem a agudeza das dores e renovam a atmosfera carregada.

/…
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta publicação.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (II de III), 38º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)