Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 29 de julho de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VII)

   Pelas relações que o homem pode agora estabelecer com os que deixaram a Terra, tem não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como compreende a solidariedade que liga os vivos e os mortos deste mundo e os deste mundo com os dos outros mundos. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos; segue-os nas suas migrações; é testemunha das suas alegrias e dos seus desgostos; sabe porque estão felizes ou infelizes e a sorte que o espera a ele consoante o bem ou o mal que faça. Estas ligações iniciam-no na vida futura que pode observar em todas as fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma esperança vaga: é um facto positivo, uma certeza matemática. Então, a morte já nada tem de assustador, pois é para ele a libertação, a porta da verdadeira vida.

   Através do estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual sofre as consequências directas e naturais dos seus erros: dito de outro modo, que é castigado por aquilo em que pecou; que as suas consequências duram tanto tempo como a causa que os produziu; que, assim, o culpado sofreria eternamente se persistisse eternamente no mal, mas que o sofrimento termina com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um melhorar, cada um pode, graças ao seu livre-arbítrio, prolongar ou abreviar os seus sofrimentos, tal como o doente sofre durante o tempo que levar até pôr um fim aos seus excessos.

  Se a razão afasta, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia dos castigos irremissíveis, perpétuos e absolutos, muitas vezes infligidos devido a um só erro, suplícios do Inferno que não podem suavizar o arrependimento mais ardente e mais sincero, ela inclina-se perante esta justiça distributiva e imparcial, que toma tudo em consideração, que nunca fecha a porta ao regresso e que estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.

   A pluralidade das existências, de que Cristo enunciou o princípio no Evangelho mas sem o definir mais que muitos outros, é uma das leis mais importantes reveladas pelo Espiritismo, no sentido em que demonstra a realidade e a sua necessidade para a evolução. Por esta lei, o homem explica todas as anomalias aparentes que a vida humana apresenta; as diferenças de posição social, os mortos prematuros que, sem a reencarnação, tornariam inúteis para as almas as vidas abreviadas; a desigualdade das aptidões intelectuais e morais, pela antiguidade do espírito que aprendeu mais ou menos e progrediu e que traz ao renascer o saber adquirido nas suas existências anteriores. (Ver o ponto 5 deste capítulo).

   Com a doutrina da criação da alma, a cada nascimento, voltamos a cair na teoria das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros, nada os une, os laços de família são puramente carnais: não são de maneira nenhuma solidários com um passado onde não existiam; com a ideia do nada depois da morte, toda a relação cessa com a vida; não são solidários com o futuro. Com a reencarnação, são solidários com o passado e com o futuro; perpetuando-se as suas relações no mundo espiritual e no mundo corporal, a fraternidade tem por base as próprias bases da natureza; o bem tem uma finalidade e o mal as suas consequências inevitáveis.

  Com a reencarnação caem todos os preconceitos de raças e de castas, uma vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, fidalgo ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, não existe nenhum que supere em lógica o facto material da reencarnação. Portanto, se a reencarnação funda sobre uma lei da natureza o princípio da fraternidade universal, funda sobre a mesma lei o da igualdade de direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 31 a 36 (VII), 9º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Inquietações Primaveris ~


O Mandamento Difícil |

O mandamento central dos Evangelhos, e por isso mesmo o mais complexo e o mais difícil, é o de amar ao próximo como a nós mesmos e a Deus sobre todas as coisas. Amar ao próximo não parece muito difícil, mas amá-lo como a nós mesmos é quase uma temeridade. Mas Jesus o deu de maneira enérgica, explicando ainda que esse amor corresponde também ao amor a Deus. Amamos naturalmente a nós mesmos com tal afinco que estendemos esse amor à família e o negamos às pessoas estranhas, não raro de maneira agressiva e ciumenta. Podemos explicar isso, psicologicamente, pelo egocentrismo da infância, que é uma exigência da formação da personalidade. Se a criança não fosse, como se costuma dizer, o centro do mundo, e não se apegasse a essa centralização, seria facilmente absorvida na mundanidade e dispersa na temporalidade, para usarmos a terminologia de Heideggard. Para manter a sua unidade ôntica, ou seja, para ser ela mesma, a criança tem de se apegar com unhas e dentes ao seu ego, esse pivô interno, em torno do qual se desenvolvem as energias da afectividade e da criatividade. O mundo atrai-nos e tenta absorver-nos num processo de dispersão centrífuga. Se não tivéssemos o pivô do ego, com as suas energias centralizadoras, o ser estaria sujeito a se perder na dispersão das energias ôntica. O normal é que essas duas correntes energéticas se contrabalancem, sem o que teríamos o indivíduo egoísta ou o indivíduo amorfo, sem nunca atingir a formação da personalidade que define o homem. A permanente ameaça e o temor da dispersão gera no homem a reacção de defesa contra a eternidade. Nas tribos selvagens as crianças recém-nascidas são consideradas criaturas estranhas e misteriosas, que chegam não se sabe de onde. Por isso são tratadas com carinho na primeira e segunda infância, mas depois submetidas a períodos de observação quanto às tendências que devem revelar. Só adquirem um nome e se integram na tribo depois de reconhecidas como em condições para tanto. Nas civilizações encontramos um desenvolvimento agudo do sociocentrismo, em que os estrangeiros são considerados impuros, como na Antiga Israel, ou considerados bárbaros, como na Roma Antiga. O próprio instinto de conservação, que começa na lei física da inércia e se prolonga nas coisas e nos seres, até ao homem, e as suas instituições, completam esse quadro defensivo. Não há dúvida que a nossa desconfiança em relação ao próximo provém dessas forças instintivas. Só conseguimos vencê-las quando nos sentimos ônticamente maduros, como seres formados e definidos na nossa personalidade. Quanto mais inseguros nos sentimos, tanto mais difícil se torna a nossa aceitação do próximo, sem prevenções e desconfianças. A nossa primeira atitude ante um desconhecido é sempre de reserva ou de antipatia. Somente nos reencontros reencarnatórios de criaturas afins, com um passado de relações felizes ou uma afinidade vibratória semelhante, os primeiros contactos podem ser expansivos.

A sabedoria dos ensinos de Jesus revela-se precisamente nesses casos em que se mostra de maneira evidente. Com o ensino do amor ao próximo Jesus agiu sobre a indevida extensão dessas forças preservadoras num tempo de maturidade. Não foi somente com o ensino do monoteísmo, da unicidade de Deus, que ele procurou acordar-nos para a fraternidade humana. Completando a acção reformista e dando mais ênfase à necessidade de amarmos a todos os nossos semelhantes, ele definiu a família humana como decorrente da paternidade universal de Deus.

Stanley Jones, pastor metodista, chamado O Cavaleiro do Reino de Deus, pelas suas pregações profundamente humanistas, descobriu a maneira cristã de combater essa aversão ao estranho, dizendo: “Quando vejo passar pela minha porta um homem condenado pelos outros, logo penso que, por aquela criatura detestada, o Cristo se entregou à crucificação.” Porque, na verdade, Jesus não veio à Terra para salvar a este ou àquele, mas a toda a Humanidade. Se conseguirmos compreender isso, afastaremos da Terra o cancro moral do racismo, da aversão ao estrangeiro, da impiedade para com os infelizes viciados no crime e na maldade, oferecendo-lhes pelo menos um pouco de simpatia. Com isso, pingamos uma gota de amor na taça de fel que o nosso irmão leva aos lábios todos os dias.

Mais estranho nos parece o mandamento: “Amai aos vossos inimigos.” Entretanto, se não fizermos isso, nunca aprenderemos realmente a amar. Porque o verdadeiro amor nunca é discriminativo, mas abrangente, envolvendo num só objecto de afeição todas as criaturas. Como ensina Kardec, não podemos amar a um inimigo como amamos a um amigo, que conhecemos pela experiência da convivência, depositando nele a nossa confiança. Amar ao inimigo não é fácil, exige principalmente o sacrifício do perdão e do esquecimento do que ele nos fez de mal. E por isso mesmo esse amor é sublime, podendo levar o inimigo a se transformar no nosso maior e mais reconhecido amigo. Não podemos, porém, agir com ingenuidade nesses casos. Temos de usar sempre, como Jesus ensinou, a mansidão das pombas e a prudência das serpentes. Diz o povo que “Quem faz um cesto faz um cento.” O homem, herdeiro dos instintos animais, é também herdeiro dos instintos espirituais de que trata Kardec, e possui o poder discriminador da consciência. Agindo sempre com a devida prudência, pode apagar as mágoas da inimizade sem entregar-se às armadilhas da traição. Assim, o processo de amar o inimigo não pode ser imediato, mas progressivo, segundo a prudência dos selvagens no trato com os novos e ainda desconhecidos companheiros que chegam à tribo vestidos com a roupagem da inocência, segundo a expressão kardeciana. O que importa, no caso, não é o milagre da conversão do inimigo em amigo, mas o despertar no homem da compreensão verdadeira do amor.

A importância desse problema, na educação para a morte, relaciona-se com a questão da sobrevivência. As pesquisas da Ciência Espírita mostraram que muitos dos nossos sofrimentos na Terra provêm das malquerenças do passado. Um inimigo no Além representa quase sempre ligações negativas, de forma obsessiva, para o que ficou na Terra sem saber perdoar. A técnica espírita da desobsessão, de libertar o homem das vibrações de ódio e vingança dos inimigos mortos, é precisamente a da reconciliação de ambos nas sessões ou através de orações reconciliadoras. A situação obsessiva é grandemente desfavorável para o que continua vivo na Terra, pois este se esqueceu dos males cometidos e o espírito obsessor, vingativo, lembra-se claramente de tudo. Por isso, as práticas violentas do exorcismo, judeu ou cristão, com ameaças e exprobrações negativas do obsedado, podem levar ao auge o ódio do obsessor.

A condição do obsessor no plano espiritual, alimentando o ódio que levou da Terra, é também da responsabilidade do obsedado que não soube perdoar e pedir perdão. Todos os sofrimentos de uma situação de penoso desajuste no após-morte são produzidos pela dureza de coração do que continuou na Terra ou a ela voltou para o necessário reajuste. Por isso, Jesus advertiu que devemos acertar o passo com o nosso adversário enquanto estamos a caminho com ele. Conhecidos estes princípios de maneira racional, podemos influir no alívio da pesada atmosfera moral que pesa sobre a Terra em momentos como este que estamos vivendo. Não se trata de problemas que devam ser resolvidos por este ou aquele tribunal, humano ou divino. A solução está sempre nas nossas mãos, pois foi com elas que praticamos os crimes que agora dardejam sobre a nossa consciência como os raios de Júpiter. Nos tenebrosos anais da pesquisa psíquica mundial encontramos numerosos casos, descritos à minúcia pelos protagonistas de tragédias dessa espécie. Daí a advertência de Jesus, que parece temerária aos inscientes: “O que xinga o seu irmão de raca está condenado ao fogo do inferno.” A palavra raca é uma injúria grandemente ofensiva, mas o castigo parece exagerado. Devemos lembrar que o fogo do inferno não é eterno, como querem os teólogos, mas que a dor da consciência fora da matéria queima como fogo. Tivemos a oportunidade de conviver alguns dias com um assassino que matara o seu adversário à facada, pelas costas. Era um homem de formação protestante, que continuava apegado ao Evangelho e se justificava com passagens vingativas da Bíblia, apoiadas por Deus. Repeliu as nossas explicações de que a Bíblia é uma colectânea de livros judeus e nos disse, com assustadora firmeza: “Se ele me aparecesse agora redivivo, eu o mataria de novo.” Episódios como este nos mostram como os sentimentos humanos podem perdurar nos espíritos encarnados ou desencarnados, de maneira assustadora. O ódio desse homem não se extinguira com o sangue do inimigo. Nenhuma sombra de remorso transparecia nos seus olhos carregados de ódio e ameaças. Faltava-lhe, porém, o conhecimento das leis morais. Mais tarde, segundo nos disseram, o seu coração se abrandou. Tivera um sonho com o adversário morto, que lhe pedia perdão, em lágrimas, por havê-lo levado ao desespero do crime.

As tragédias dessa espécie, em que a vítima geralmente é responsável pelo crime, por motivos de sua intransigência, são em maior número do que supomos. Torna-se bem claro, nesses casos, o processo dialéctico da evolução humana. Nesse criminoso aparentemente insensível havia um coração profundamente ferido pela intransigência do adversário. Questões formais de honra, de direitos violados, de prepotência e humilhação torturaram a mente do assassino e o levaram ao crime. Cometido este, decorridos amargos anos de prisão, com a família na miséria e enxovalhada pela mancha criminosa, a vítima transformada em carrasco não conseguia perdoar o morto. Os instintos animais, em fermentação na sua afectividade e na sua consciência, não lhe permitiam se abrir para a compreensão da gravidade do seu acto. Ao mesmo tempo, o assassinado, nos planos espirituais inferiores, remoía o seu ódio e a sua frustração, acusando o assassino de lhe haver tirado a vida. A troca de vibrações mentais entre ambos mantinha-os na mesma luta. Somente a interferência da misericórdia divina conseguira abrir uma fresta de luz na mente do assassinado, para que ele caísse em si e reconhecesse a sua culpabilidade. Para a sociedade terrena a tragédia terminara nas grades de uma prisão, mas para o mundo espiritual ela prosseguia. Na consciência do assassinado a visão da realidade até então oculta despertava os instintos espirituais, os anseios de superação das condições animalescas a que se entregara na carne. A Educação para a Morte teria libertado ambos na própria vida carnal, levando-os à compreensão de que não eram feras em luta na selva, mas criaturas humanas dotadas de potencialidades divinas. Não lhes haviam faltado os socorros espirituais da intuição e do chamado terreno no campo religioso. Um era protestante e o outro católico, ambos tiveram contacto com os Evangelhos desde a infância, mas a reacção hipnótica dos interesses mundanos os havia imantado fortemente à matéria, fazendo-os esquecer a natureza espiritual da criatura humana. As religiões, por seu lado, imantadas às interpretações dogmáticas, não puderam ampará-los com a explicação racional da situação que enfrentavam. No entanto, há dois mil anos, Jesus já advertia: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!”

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, O Mandamento Difícil, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 13 de julho de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VIII

Acção dos Espíritos sobre os Actuais Aconteci-mentos (II)

|Janeiro de 1917|

   Neste momento, quando a borrasca se aplaca e os clarões da esperança iluminam o horizonte chegou a hora de nos recolhermos em meditação, concentrando-nos e fazendo um exame de consciência.

   Não nos cabe nenhuma parte de responsabilidade nesse drama tão terrível que agita e conturba o mundo?

   Combatemos com toda a energia necessária contra essa decomposição moral que é a causa primária de todos os nossos males? Tentamos reagir contra o domínio do ouro, da força e do sucesso, que parecia tornar-se a religião exclusiva da humanidade? Temos defendido sempre os princípios nobres da consciência e da vida contra a onda avassaladora do sórdido materialismo?

   Poucos existem no nosso meio que, atingindo certa idade e tendo ocupado uma posição social, e exercendo qualquer tipo de influência à sua volta, possam responder afirmativamente a tais perguntas.

   Não há, portanto, de que nos admirarmos, se ficamos feridos nas nossas afeições e interesses e se nos cabe uma parte na dor comum.

   Principalmente para nós, os crentes, é necessário que a grande lição seja proveitosa e que os sofrimentos purifiquem os nossos corações.

   O vento da tempestade que está passando sobre o mundo deve reavivar em nós o firme desejo de trabalhar pelo soerguimento moral do nosso país, despertando em todas as almas a noção das verdades elevadas, o sentimento da vida eterna e a ideia de Deus.

   Cabe, afinal, que se juntem as vontades e as aspirações e que a prece fervorosa, dirigida ao Pai pelos filhos culpados, se eleve da Terra para o Céu.

   Cada vez mais mergulhávamos na matéria e perdíamos de vista o profundo sentido e a verdadeira finalidade da vida. Trágicos acontecimentos vieram nos demonstrar que neste mundo tudo é precário e a nos animar a erguer os olhos para o Alto. Esses acontecimentos nos dizem que neste planeta não temos o futuro assegurado e que os bens, as honras e tudo quanto nos seduz e encanta desaparece como uma sombra vã.

   Fomos criados para a vida infinita e o nosso domínio é o Universo inteiro, não sendo a Terra senão uma das incontáveis estações da nossa longa jornada.

   Pertencemos a Deus, de onde viemos e para onde volveremos, aperfeiçoando e desenvolvendo o nosso ser, através da alegria e do sofrimento, pelo júbilo ou pela dor.

   O nosso corpo é apenas uma prisão temporária e a morte é uma libertação. A sabedoria consiste, pois, em sempre subordinar a matéria ao espírito, porque ela não é mais que uma aparência, enquanto o espírito é a única realidade viva e imortal.

   O sofrimento é sagrado por ser a escola austera das almas, o meio mais seguro de purificação e elevação.

   A dor é a reparação do passado e a conquista do futuro; é a possibilidade que nos é oferecida para nos juntarmos aos nossos queridos invisíveis, participando de sua vida espiritual, os seus trabalhos e as suas missões.

   Pela dor os nossos destinos se ajustam e se marcam de modo mais vivo, ensinando que a hora presente é solene para a humanidade, cujo progresso ou recuo ela pode precipitar.

   Pela conjugação dos nossos esforços podemos garantir a vitória do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, do altruísmo sobre o egoísmo brutal, permitindo que algum progresso se faça para reino do Espírito Divino.

   Depois da tormenta virá o tempo de paz, permitindo realizar o balanço moral dessa guerra. Veremos então que os nossos males deram os seus frutos. Os crimes, as covardias e as traições que o presente carrega suscitarão um sentimento universal de reprovação e de horror, impedindo que eles se repitam.

   Por outro lado, as privações e o sofrimento experimentados em comum associam os corações, anulando distinções entre partidos e religiões, tornando definitiva a união sagrada que a necessidade dos dias tristes impôs.

   Todos os filhos da França se sentirão como irmãos, animados pelo mesmo espírito, dispostos a preparar a vitória das forças morais e, através delas, o soerguimento da pátria.

   Grande número de jovens já começa a entrever as nobres verdades que só alcançam quando mais idosos e mais experientes. Antes da guerra eles passavam por materialistas e amantes dos gozos, porém, premidos pelas circunstâncias, diante do perigo, na presença da morte e principalmente nas longas esperas da trincheira, o pensamento lhes amadureceu.

   Aos seus olhos apareceram novas perspectivas, vozes interiores lhes cantaram dentro da alma, e a vida agora lhes apareceu sob um aspecto não conhecido. O mundo invisível, que na sangrenta luta os animava, os inspira nas horas de calma e repouso, sugerindo-lhes nobre e elevado ideal, depositando nas suas almas os germes de sagrada semente.

   Sobre isso, recebi muitas cartas da linha da frente, que servem de outros tantos testemunhos. Uma coisa elas demonstram: que se forjam vontades cuja têmpera enfrentará todos os choques e que, do caos dos acontecimentos, surgirão almas selectas que, conscientes do seu valor, penetradas pela grande lei dos destinos, nenhum fracasso lhes poderá enfraquecer a fé.

   Estarão preparadas para todos os sacrifícios, pois o seu ideal as eleva acima de todas as provações, de todas as decepções, sabendo que o futuro lhes pertence.

   Na escola do sofrimento, as presentes gerações aprenderão a renunciar aos seus erros e vícios, imprimindo novas direcções à vida nacional e preparando os elementos de uma renovação que restituirá à França todo o brilho do seu génio e todo o seu prestígio no mundo.

   Assim se faz a História: pela íntima e profunda colaboração das duas humanidades, a da Terra e a do Espaço.

   A observação superficial, considerando apenas o plano terrestre, vê os factos se sucederem desordenadamente, sem nexo, numa aparente incoerência, só explicável pelo livre-arbítrio que Deus concede ao homem, de agir a seu gosto.

   Todavia, se contemplarmos as coisas de mais alto, distinguiremos melhor o misterioso fio que as liga. Através da marcha maravilhosa dos séculos se vislumbra a obra da eterna justiça.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VIII / Acção dos Espíritos sobre os Actuais Acontecimentos / Janeiro de 1917 (2 de 2) 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


Situações novas ~

  Essas possibilida-des se tornam cada vez mais visíveis, graças à aceleração do processo histórico no século actual (XX). A teoria marxista da luta de classes, comprovada pelos factos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas inteiramente novas. A ideia da revolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do século XIX e nos princípios do século XX. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta foram antes populares do que proletárias, e não somente no conjunto das massas, mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, em França e na Itália. Nos três últimos países, o Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e pequeno-burguesa.

  Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a “consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente novas, e os marxistas se esquecem dos princípios dialécticos da sua própria filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi, em A Grande Síntese, emite este conceito, em que os materialistas dialécticos deviam meditar:“Se a luta foi, a um tempo, de natureza física, hoje é económica e nervosa, e amanhã será espiritual e ideal, muito mais digna de ser travada.”

O choque apocalíptico ~

  Marx viu, na sua época, a necessidade de se construir uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes”, e o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência, e só podem manter o seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de nos mostrar quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias.

  Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas perspectivas da guerra atómica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.

   A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E a força das ideias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes, mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou de muito, na sua própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a antítese da dialéctica hegeliana que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?

Hora de libertação ~

  Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que resulta a progresso, e os “contrários” não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.

  A forma proletária da violência não modifica a substância mesma da violência, e os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive o Brasil, armada com os poderes do feudalismo, se tornou um poder feudal, a antítese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, numa classe como noutra, e a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo económico é fugir para a abstracção de uma economia autónoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polaca Larissa Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários económicos, verdadeiros “negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno de sua génese, na Alemanha burguesa.

  Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irónico dos materialistas-dialécticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”, pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido, e não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente.”

  Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do Espírito, da solução espiritual, e só ela nos livrará do torniquete da força contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconsequente do poder material. RuskinTolstóiTagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Situações novas, O choque apocalíptico, Hora de libertação, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)