Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 22 de julho de 2014

Inquietações Primaveris ~


O Mandamento Difícil |

O mandamento central dos Evangelhos, e por isso mesmo o mais complexo e o mais difícil, é o de amar ao próximo como a nós mesmos e a Deus sobre todas as coisas. Amar ao próximo não parece muito difícil, mas amá-lo como a nós mesmos é quase uma temeridade. Mas Jesus o deu de maneira enérgica, explicando ainda que esse amor corresponde também ao amor a Deus. Amamos naturalmente a nós mesmos com tal afinco que estendemos esse amor à família e o negamos às pessoas estranhas, não raro de maneira agressiva e ciumenta. Podemos explicar isso, psicologicamente, pelo egocentrismo da infância, que é uma exigência da formação da personalidade. Se a criança não fosse, como se costuma dizer, o centro do mundo, e não se apegasse a essa centralização, seria facilmente absorvida na mundanidade e dispersa na temporalidade, para usarmos a terminologia de Heideggard. Para manter a sua unidade ôntica, ou seja, para ser ela mesma, a criança tem de se apegar com unhas e dentes ao seu ego, esse pivô interno, em torno do qual se desenvolvem as energias da afectividade e da criatividade. O mundo atrai-nos e tenta absorver-nos num processo de dispersão centrífuga. Se não tivéssemos o pivô do ego, com as suas energias centralizadoras, o ser estaria sujeito a se perder na dispersão das energias ôntica. O normal é que essas duas correntes energéticas se contrabalancem, sem o que teríamos o indivíduo egoísta ou o indivíduo amorfo, sem nunca atingir a formação da personalidade que define o homem. A permanente ameaça e o temor da dispersão gera no homem a reacção de defesa contra a eternidade. Nas tribos selvagens as crianças recém-nascidas são consideradas criaturas estranhas e misteriosas, que chegam não se sabe de onde. Por isso são tratadas com carinho na primeira e segunda infância, mas depois submetidas a períodos de observação quanto às tendências que devem revelar. Só adquirem um nome e se integram na tribo depois de reconhecidas como em condições para tanto. Nas civilizações encontramos um desenvolvimento agudo do sociocentrismo, em que os estrangeiros são considerados impuros, como na Antiga Israel, ou considerados bárbaros, como na Roma Antiga. O próprio instinto de conservação, que começa na lei física da inércia e se prolonga nas coisas e nos seres, até ao homem, e as suas instituições, completam esse quadro defensivo. Não há dúvida que a nossa desconfiança em relação ao próximo provém dessas forças instintivas. Só conseguimos vencê-las quando nos sentimos ônticamente maduros, como seres formados e definidos na nossa personalidade. Quanto mais inseguros nos sentimos, tanto mais difícil se torna a nossa aceitação do próximo, sem prevenções e desconfianças. A nossa primeira atitude ante um desconhecido é sempre de reserva ou de antipatia. Somente nos reencontros reencarnatórios de criaturas afins, com um passado de relações felizes ou uma afinidade vibratória semelhante, os primeiros contactos podem ser expansivos.

A sabedoria dos ensinos de Jesus revela-se precisamente nesses casos em que se mostra de maneira evidente. Com o ensino do amor ao próximo Jesus agiu sobre a indevida extensão dessas forças preservadoras num tempo de maturidade. Não foi somente com o ensino do monoteísmo, da unicidade de Deus, que ele procurou acordar-nos para a fraternidade humana. Completando a acção reformista e dando mais ênfase à necessidade de amarmos a todos os nossos semelhantes, ele definiu a família humana como decorrente da paternidade universal de Deus.

Stanley Jones, pastor metodista, chamado O Cavaleiro do Reino de Deus, pelas suas pregações profundamente humanistas, descobriu a maneira cristã de combater essa aversão ao estranho, dizendo: “Quando vejo passar pela minha porta um homem condenado pelos outros, logo penso que, por aquela criatura detestada, o Cristo se entregou à crucificação.” Porque, na verdade, Jesus não veio à Terra para salvar a este ou àquele, mas a toda a Humanidade. Se conseguirmos compreender isso, afastaremos da Terra o cancro moral do racismo, da aversão ao estrangeiro, da impiedade para com os infelizes viciados no crime e na maldade, oferecendo-lhes pelo menos um pouco de simpatia. Com isso, pingamos uma gota de amor na taça de fel que o nosso irmão leva aos lábios todos os dias.

Mais estranho nos parece o mandamento: “Amai aos vossos inimigos.” Entretanto, se não fizermos isso, nunca aprenderemos realmente a amar. Porque o verdadeiro amor nunca é discriminativo, mas abrangente, envolvendo num só objecto de afeição todas as criaturas. Como ensina Kardec, não podemos amar a um inimigo como amamos a um amigo, que conhecemos pela experiência da convivência, depositando nele a nossa confiança. Amar ao inimigo não é fácil, exige principalmente o sacrifício do perdão e do esquecimento do que ele nos fez de mal. E por isso mesmo esse amor é sublime, podendo levar o inimigo a se transformar no nosso maior e mais reconhecido amigo. Não podemos, porém, agir com ingenuidade nesses casos. Temos de usar sempre, como Jesus ensinou, a mansidão das pombas e a prudência das serpentes. Diz o povo que “Quem faz um cesto faz um cento.” O homem, herdeiro dos instintos animais, é também herdeiro dos instintos espirituais de que trata Kardec, e possui o poder discriminador da consciência. Agindo sempre com a devida prudência, pode apagar as mágoas da inimizade sem entregar-se às armadilhas da traição. Assim, o processo de amar o inimigo não pode ser imediato, mas progressivo, segundo a prudência dos selvagens no trato com os novos e ainda desconhecidos companheiros que chegam à tribo vestidos com a roupagem da inocência, segundo a expressão kardeciana. O que importa, no caso, não é o milagre da conversão do inimigo em amigo, mas o despertar no homem da compreensão verdadeira do amor.

A importância desse problema, na educação para a morte, relaciona-se com a questão da sobrevivência. As pesquisas da Ciência Espírita mostraram que muitos dos nossos sofrimentos na Terra provêm das malquerenças do passado. Um inimigo no Além representa quase sempre ligações negativas, de forma obsessiva, para o que ficou na Terra sem saber perdoar. A técnica espírita da desobsessão, de libertar o homem das vibrações de ódio e vingança dos inimigos mortos, é precisamente a da reconciliação de ambos nas sessões ou através de orações reconciliadoras. A situação obsessiva é grandemente desfavorável para o que continua vivo na Terra, pois este se esqueceu dos males cometidos e o espírito obsessor, vingativo, lembra-se claramente de tudo. Por isso, as práticas violentas do exorcismo, judeu ou cristão, com ameaças e exprobrações negativas do obsedado, podem levar ao auge o ódio do obsessor.

A condição do obsessor no plano espiritual, alimentando o ódio que levou da Terra, é também da responsabilidade do obsedado que não soube perdoar e pedir perdão. Todos os sofrimentos de uma situação de penoso desajuste no após-morte são produzidos pela dureza de coração do que continuou na Terra ou a ela voltou para o necessário reajuste. Por isso, Jesus advertiu que devemos acertar o passo com o nosso adversário enquanto estamos a caminho com ele. Conhecidos estes princípios de maneira racional, podemos influir no alívio da pesada atmosfera moral que pesa sobre a Terra em momentos como este que estamos vivendo. Não se trata de problemas que devam ser resolvidos por este ou aquele tribunal, humano ou divino. A solução está sempre nas nossas mãos, pois foi com elas que praticamos os crimes que agora dardejam sobre a nossa consciência como os raios de Júpiter. Nos tenebrosos anais da pesquisa psíquica mundial encontramos numerosos casos, descritos à minúcia pelos protagonistas de tragédias dessa espécie. Daí a advertência de Jesus, que parece temerária aos inscientes: “O que xinga o seu irmão de raca está condenado ao fogo do inferno.” A palavra raca é uma injúria grandemente ofensiva, mas o castigo parece exagerado. Devemos lembrar que o fogo do inferno não é eterno, como querem os teólogos, mas que a dor da consciência fora da matéria queima como fogo. Tivemos a oportunidade de conviver alguns dias com um assassino que matara o seu adversário à facada, pelas costas. Era um homem de formação protestante, que continuava apegado ao Evangelho e se justificava com passagens vingativas da Bíblia, apoiadas por Deus. Repeliu as nossas explicações de que a Bíblia é uma colectânea de livros judeus e nos disse, com assustadora firmeza: “Se ele me aparecesse agora redivivo, eu o mataria de novo.” Episódios como este nos mostram como os sentimentos humanos podem perdurar nos espíritos encarnados ou desencarnados, de maneira assustadora. O ódio desse homem não se extinguira com o sangue do inimigo. Nenhuma sombra de remorso transparecia nos seus olhos carregados de ódio e ameaças. Faltava-lhe, porém, o conhecimento das leis morais. Mais tarde, segundo nos disseram, o seu coração se abrandou. Tivera um sonho com o adversário morto, que lhe pedia perdão, em lágrimas, por havê-lo levado ao desespero do crime.

As tragédias dessa espécie, em que a vítima geralmente é responsável pelo crime, por motivos de sua intransigência, são em maior número do que supomos. Torna-se bem claro, nesses casos, o processo dialéctico da evolução humana. Nesse criminoso aparentemente insensível havia um coração profundamente ferido pela intransigência do adversário. Questões formais de honra, de direitos violados, de prepotência e humilhação torturaram a mente do assassino e o levaram ao crime. Cometido este, decorridos amargos anos de prisão, com a família na miséria e enxovalhada pela mancha criminosa, a vítima transformada em carrasco não conseguia perdoar o morto. Os instintos animais, em fermentação na sua afectividade e na sua consciência, não lhe permitiam se abrir para a compreensão da gravidade do seu acto. Ao mesmo tempo, o assassinado, nos planos espirituais inferiores, remoía o seu ódio e a sua frustração, acusando o assassino de lhe haver tirado a vida. A troca de vibrações mentais entre ambos mantinha-os na mesma luta. Somente a interferência da misericórdia divina conseguira abrir uma fresta de luz na mente do assassinado, para que ele caísse em si e reconhecesse a sua culpabilidade. Para a sociedade terrena a tragédia terminara nas grades de uma prisão, mas para o mundo espiritual ela prosseguia. Na consciência do assassinado a visão da realidade até então oculta despertava os instintos espirituais, os anseios de superação das condições animalescas a que se entregara na carne. A Educação para a Morte teria libertado ambos na própria vida carnal, levando-os à compreensão de que não eram feras em luta na selva, mas criaturas humanas dotadas de potencialidades divinas. Não lhes haviam faltado os socorros espirituais da intuição e do chamado terreno no campo religioso. Um era protestante e o outro católico, ambos tiveram contacto com os Evangelhos desde a infância, mas a reacção hipnótica dos interesses mundanos os havia imantado fortemente à matéria, fazendo-os esquecer a natureza espiritual da criatura humana. As religiões, por seu lado, imantadas às interpretações dogmáticas, não puderam ampará-los com a explicação racional da situação que enfrentavam. No entanto, há dois mil anos, Jesus já advertia: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!”

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, O Mandamento Difícil, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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