O Mandamento Difícil |
O mandamento central dos Evangelhos, e por isso mesmo o mais
complexo e o mais difícil, é o de amar ao próximo como a nós mesmos e a Deus
sobre todas as coisas. Amar ao próximo não parece muito difícil, mas amá-lo
como a nós mesmos é quase uma temeridade. Mas Jesus o deu de maneira enérgica,
explicando ainda que esse amor corresponde também ao amor a Deus. Amamos
naturalmente a nós mesmos com tal afinco que estendemos esse amor à família e o
negamos às pessoas estranhas, não raro de maneira agressiva e ciumenta. Podemos
explicar isso, psicologicamente, pelo egocentrismo da infância, que é uma
exigência da formação da personalidade. Se a criança não fosse, como se costuma
dizer, o centro do mundo, e não se apegasse a essa centralização, seria
facilmente absorvida na mundanidade e dispersa na temporalidade, para usarmos a
terminologia de Heideggard. Para manter a sua unidade ôntica, ou seja, para ser
ela mesma, a criança tem de se apegar
com unhas e dentes ao seu ego, esse pivô interno, em torno do qual se
desenvolvem as energias da afectividade e da criatividade. O mundo atrai-nos e
tenta absorver-nos num processo de dispersão centrífuga. Se não tivéssemos o
pivô do ego, com as suas energias centralizadoras, o ser estaria sujeito a se
perder na dispersão das energias ôntica. O normal é que essas duas correntes
energéticas se contrabalancem, sem o que teríamos o indivíduo egoísta ou o
indivíduo amorfo, sem nunca atingir a formação da personalidade que define o
homem. A permanente ameaça e o temor da dispersão gera no homem a reacção de
defesa contra a eternidade. Nas tribos selvagens as crianças recém-nascidas são
consideradas criaturas estranhas e misteriosas, que chegam não se sabe de onde.
Por isso são tratadas com carinho na primeira e segunda infância, mas depois
submetidas a períodos de observação quanto às tendências que devem revelar. Só
adquirem um nome e se integram na tribo depois de reconhecidas como em
condições para tanto. Nas civilizações encontramos um desenvolvimento agudo do
sociocentrismo, em que os estrangeiros são considerados impuros, como na Antiga
Israel, ou considerados bárbaros, como na Roma Antiga. O próprio instinto de
conservação, que começa na lei física da inércia e se prolonga nas coisas e nos
seres, até ao homem, e as suas instituições, completam esse quadro defensivo.
Não há dúvida que a nossa desconfiança em relação ao próximo provém dessas
forças instintivas. Só conseguimos vencê-las quando nos sentimos ônticamente
maduros, como seres formados e definidos na nossa personalidade. Quanto mais
inseguros nos sentimos, tanto mais difícil se torna a nossa aceitação do
próximo, sem prevenções e desconfianças. A nossa primeira atitude ante um
desconhecido é sempre de reserva ou de antipatia. Somente nos reencontros
reencarnatórios de criaturas afins, com um passado de relações felizes ou uma
afinidade vibratória semelhante, os primeiros contactos podem ser expansivos.
A sabedoria dos ensinos de Jesus revela-se precisamente
nesses casos em que se mostra de maneira evidente. Com o ensino do amor ao
próximo Jesus agiu sobre a indevida extensão dessas forças preservadoras num
tempo de maturidade. Não foi somente com o ensino do monoteísmo, da unicidade
de Deus, que ele procurou acordar-nos para a fraternidade humana. Completando a
acção reformista e dando mais ênfase à necessidade de amarmos a todos os nossos
semelhantes, ele definiu a família humana como decorrente da paternidade
universal de Deus.
Stanley Jones, pastor metodista, chamado O Cavaleiro do Reino de Deus, pelas suas
pregações profundamente humanistas, descobriu a maneira cristã de combater essa
aversão ao estranho, dizendo: “Quando vejo passar pela minha porta um homem
condenado pelos outros, logo penso que, por aquela criatura detestada, o Cristo
se entregou à crucificação.” Porque, na verdade, Jesus não veio à Terra para
salvar a este ou àquele, mas a toda a Humanidade. Se conseguirmos compreender
isso, afastaremos da Terra o cancro moral do racismo, da aversão ao
estrangeiro, da impiedade para com os infelizes viciados no crime e na maldade,
oferecendo-lhes pelo menos um pouco de simpatia. Com isso, pingamos uma gota de
amor na taça de fel que o nosso irmão leva aos lábios todos os dias.
Mais estranho nos parece o mandamento: “Amai aos vossos
inimigos.” Entretanto, se não fizermos isso, nunca aprenderemos realmente a
amar. Porque o verdadeiro amor nunca é discriminativo, mas abrangente,
envolvendo num só objecto de afeição todas as criaturas. Como ensina Kardec,
não podemos amar a um inimigo como amamos a um amigo, que conhecemos pela
experiência da convivência, depositando nele a nossa confiança. Amar ao inimigo
não é fácil, exige principalmente o sacrifício do perdão e do esquecimento do
que ele nos fez de mal. E por isso mesmo esse amor é sublime, podendo levar o
inimigo a se transformar no nosso maior e mais reconhecido amigo. Não podemos,
porém, agir com ingenuidade nesses casos. Temos de usar sempre, como Jesus
ensinou, a mansidão das pombas e a prudência das serpentes. Diz o povo que
“Quem faz um cesto faz um cento.” O homem, herdeiro dos instintos animais, é
também herdeiro dos instintos espirituais de que trata Kardec, e possui o poder
discriminador da consciência. Agindo sempre com a devida prudência, pode apagar
as mágoas da inimizade sem entregar-se às armadilhas da traição. Assim, o
processo de amar o inimigo não pode ser imediato, mas progressivo, segundo a
prudência dos selvagens no trato com os novos e ainda desconhecidos
companheiros que chegam à tribo vestidos
com a roupagem da inocência, segundo a expressão kardeciana. O que importa,
no caso, não é o milagre da conversão do inimigo em amigo, mas o despertar no
homem da compreensão verdadeira do amor.
A importância desse problema, na educação para a morte,
relaciona-se com a questão da sobrevivência. As pesquisas da Ciência Espírita
mostraram que muitos dos nossos sofrimentos na Terra provêm das malquerenças do
passado. Um inimigo no Além representa quase sempre ligações negativas, de
forma obsessiva, para o que ficou na Terra sem saber perdoar. A técnica
espírita da desobsessão, de libertar o homem das vibrações de ódio e vingança
dos inimigos mortos, é precisamente a da reconciliação de ambos nas sessões ou
através de orações reconciliadoras. A situação obsessiva é grandemente
desfavorável para o que continua vivo na Terra, pois este se esqueceu dos males
cometidos e o espírito obsessor, vingativo, lembra-se claramente de tudo. Por
isso, as práticas violentas do exorcismo, judeu ou cristão, com ameaças e
exprobrações negativas do obsedado, podem levar ao auge o ódio do obsessor.
A condição do obsessor no plano espiritual, alimentando o
ódio que levou da Terra, é também da responsabilidade do obsedado que não soube
perdoar e pedir perdão. Todos os sofrimentos de uma situação de penoso
desajuste no após-morte são produzidos pela dureza de coração do que continuou
na Terra ou a ela voltou para o necessário reajuste. Por isso, Jesus advertiu
que devemos acertar o passo com o nosso adversário enquanto estamos a caminho
com ele. Conhecidos estes princípios de maneira racional, podemos influir no
alívio da pesada atmosfera moral que pesa sobre a Terra em momentos como este
que estamos vivendo. Não se trata de problemas que devam ser resolvidos por
este ou aquele tribunal, humano ou divino. A solução está sempre nas nossas
mãos, pois foi com elas que praticamos os crimes que agora dardejam sobre a
nossa consciência como os raios de Júpiter. Nos tenebrosos anais da pesquisa
psíquica mundial encontramos numerosos casos, descritos à minúcia pelos
protagonistas de tragédias dessa espécie. Daí a advertência de Jesus, que
parece temerária aos inscientes: “O que xinga o seu irmão de raca está condenado ao fogo do inferno.”
A palavra raca é uma injúria
grandemente ofensiva, mas o castigo parece exagerado. Devemos lembrar que o
fogo do inferno não é eterno, como querem os teólogos, mas que a dor da
consciência fora da matéria queima como fogo. Tivemos a oportunidade de
conviver alguns dias com um assassino que matara o seu adversário à facada, pelas
costas. Era um homem de formação protestante, que continuava apegado ao
Evangelho e se justificava com passagens vingativas da Bíblia, apoiadas por
Deus. Repeliu as nossas explicações de que a Bíblia é uma colectânea de livros
judeus e nos disse, com assustadora firmeza: “Se ele me aparecesse agora
redivivo, eu o mataria de novo.” Episódios como este nos mostram como os
sentimentos humanos podem perdurar nos espíritos encarnados ou desencarnados,
de maneira assustadora. O ódio desse homem não se extinguira com o sangue do
inimigo. Nenhuma sombra de remorso transparecia nos seus olhos carregados de
ódio e ameaças. Faltava-lhe, porém, o conhecimento das leis morais. Mais tarde,
segundo nos disseram, o seu coração se abrandou. Tivera um sonho com o
adversário morto, que lhe pedia perdão, em lágrimas, por havê-lo levado ao
desespero do crime.
As tragédias dessa espécie, em que a vítima geralmente é
responsável pelo crime, por motivos de sua intransigência, são em maior número
do que supomos. Torna-se bem claro, nesses casos, o processo dialéctico da
evolução humana. Nesse criminoso aparentemente insensível havia um coração
profundamente ferido pela intransigência do adversário. Questões formais de
honra, de direitos violados, de prepotência e humilhação torturaram a mente do
assassino e o levaram ao crime. Cometido este, decorridos amargos anos de
prisão, com a família na miséria e enxovalhada pela mancha criminosa, a vítima
transformada em carrasco não conseguia perdoar o morto. Os instintos animais,
em fermentação na sua afectividade e na sua consciência, não lhe permitiam se abrir
para a compreensão da gravidade do seu acto. Ao mesmo tempo, o assassinado, nos
planos espirituais inferiores, remoía o seu ódio e a sua frustração, acusando o
assassino de lhe haver tirado a vida. A troca de vibrações mentais entre ambos
mantinha-os na mesma luta. Somente a interferência da misericórdia divina
conseguira abrir uma fresta de luz na mente do assassinado, para que ele caísse
em si e reconhecesse a sua culpabilidade. Para a sociedade terrena a tragédia
terminara nas grades de uma prisão, mas para o mundo espiritual ela prosseguia.
Na consciência do assassinado a visão da realidade até então oculta despertava
os instintos espirituais, os anseios de superação das condições animalescas a
que se entregara na carne. A Educação para a Morte teria libertado ambos na
própria vida carnal, levando-os à compreensão de que não eram feras em luta na
selva, mas criaturas humanas dotadas de potencialidades divinas. Não lhes
haviam faltado os socorros espirituais da intuição e do chamado terreno no
campo religioso. Um era protestante e o outro católico, ambos tiveram contacto
com os Evangelhos desde a infância, mas a reacção hipnótica dos interesses
mundanos os havia imantado fortemente à matéria, fazendo-os esquecer a natureza
espiritual da criatura humana. As religiões, por seu lado, imantadas às
interpretações dogmáticas, não puderam ampará-los com a explicação racional da
situação que enfrentavam. No entanto, há dois mil anos, Jesus já advertia: “Ai
de vós, escribas e fariseus hipócritas!”
/…
José Herculano Pires – Educação para a Morte,
O Mandamento Difícil, 17º
fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo,
pintura de William-Adolphe
Bouguereau)
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