Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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terça-feira, 13 de maio de 2025

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (XII)

A vida universal ~ 🌈

   Esta imortalidade das almas, de que o sistema do mundo físico constitui a base, pareceu imaginária aos olhos de certos pensadores de sobreaviso; qualificaram-no ironicamente de imortalidade viajante e não perceberam que só ela era verdadeira frente ao espectáculo da Criação. No entanto, é fácil fazer entender toda a sua grandeza, diria quase toda a sua perfeição.

   Que as obras de Deus sejam criadas pelo pensamento e pela inteligência; que os mundos sejam a residência dos seres que os contemplam e que descobrem sob o seu véu o poder e a sabedoria do que os formou, foi questão que deixou de ser o poder duvidosa para nós; mas se as almas que os povoam são solidárias, é o que importa saber.

   A inteligência humana, com efeito, tem dificuldade em reconhecer esses globos radiosos que cintilam no espaço como simples massas de matéria inerte e sem vida; tem dificuldade em imaginar que existem, nessas regiões longínquas, magníficos crepúsculos e noites esplêndidas, sóis fecundos e dias repletos de luz, vales e montanhas onde as múltiplas criações da natureza desenvolveram toda a sua pompa luxuriante; tem dificuldade em imaginar, digo eu, que o espectáculo divino, onde a alma se pode embeber como se da sua própria vida se tratasse, esteja despojado de existência e privado de qualquer ser com peso que o pudesse contemplar.

   Mas a esta ideia eminentemente justa da Criação é preciso acrescentar a da humanidade solidária e é nisso que consiste o mistério da eternidade futura.

   Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e a esses mundos foram dados os elos de uma fraternidade ainda não apreciada por vós. Se estes astros que se harmonizam nos seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não é de forma nenhuma por seres desconhecidos uns dos outros, mas sim por seres marcados na fronte pelo mesmo destino, que têm de se encontrar momentaneamente consoante as suas funções na vida e reencontrar-se segundo as suas simpatias mútuas; é a grande família dos Espíritos que povoam as terras celestes; é o grande esplendor do Espírito divino que abraça a vastidão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual.

   Por que estranha aberração se julgou ser preciso recusar à imortalidade as vastas regiões do éter, quando a encerravam num limite inadmissível e numa dualidade absoluta? O verdadeiro sistema do mundo deveria então anteceder a verdadeira doutrina dogmática e a ciência a teologia? Desviar-se-ia esta enquanto a sua base assentasse sobre a metafísica? A resposta está dada e mostra-nos que a nova filosofia se sentará triunfante sobre as ruínas da antiga, porque a sua base se terá elevado vitoriosa sobre erros antigos.

/…
(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – A vida universal (de 53 a 57), 34º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Deus na Natureza ~


~ O Destino dos Seres e das Coisas ~
~ Plano da Natureza ~ O Instinto e a Inteligência ~
(I)

  A construção lenta e progressiva dos seres e a formação das espécies duradouras estabelecem a presença permanente da causa criadora e proclamam, de forma eloquente, a sua sabedoria e inteligência.

  Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para estudarmos a da família, penetraremos nos mistérios do instinto e, ainda aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente caracterizado.

  Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que DescartesLeibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de observar in natura, directamente, a vida e costumes dos animais. É, sobretudo, pela observação directa que nos podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espécies vivas, que lhes assegura a conservação e, basta constatar os sinais evidentes desta lei universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios da Criação.

  Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os animais possuem uma e o outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam, reflectem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por processos análogos aos da inteligência humana; com a segunda, operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado dos seus actos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.

  Eis como nos fala Buffon de um orangotango ainda novo, por ele observado: – “Vi-o dar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, pegar um guardanapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o ir buscar uma chávena, pôr-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este esfriasse para então o beber. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não fazia mal a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.”

  O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango notável pela inteligência: meigo, amante de carícias, principalmente das crianças, com elas brincava procurando imitar tudo quanto via, etc. Assim é que, sabia manejar a chave do seu compartimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se acontecia pendurarem a chave na chaminé, lá trepava por meio de uma corda presa ao tecto e que lhe servia comummente de balanço. Certa vez, deram um nó na corda, para fazê-la mais curta e, ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava a impaciência e petulância próprias da espécie, antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.

  O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancião, que era também um observador sagaz e profundo.

  Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio. Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objecto de sua curiosidade. Quando nos íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tirou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento, como procurando imitar o meu velho amigo.

  Depois, por si mesmo restituiu-lhe a bengala. É evidente que ele também sabia observar...

  Cuvier, por sua vez, observou factos não menos curiosos. O seu orangotango se divertia trepando as árvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o irem buscar e ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que consideremos este acto, não será possível negá-lo como resultante de uma combinação de ideias, para reconhecer que o animal possui a faculdade de generalizar.

  De facto, o orangotango, aqui, concluía de si para outrem: mais de uma vez, o abalo violento dos corpos, em que se apoiara, tê-lo-ia espavorido, levando-o a concluir que este mesmo medo atingiria a outrem, ou – para melhor dizer com Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra geral”.

  Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência, observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número de ursos lá existentes, foi resolvida a eliminação de dois exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e se puseram em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar na iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam comendo os bolos, à medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a revogação da sentença.

  Plutarco afirma ter visto um cão atirar pedrinhas dentro de uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de como o cão pudesse induzir que o peso das pedras haveria de fazer subir e transbordar o conteúdo.

  Buffon escreveu belas páginas sobre a inteligência do cão, mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos da espécie canina, exemplos de inteligência, habilidade raciocínio, julgamento, e também de afeição, devotamento, bondade e reconhecimento, dignos de serem apontados como modelo a uma grande parte do género humano.

  Poder-se-ia escrever uma série de volumes e nem assim se esgotaria o acervo de factos comprobatórios da inteligência animal, notadamente do cão. De resto, os adversários estão connosco em admitir estes factos. Citemos aqui o exemplo interessante de uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o ninho na cumeeira de uma casa. Um dia, entra por lá um bando de companheiras e travam longa discussão pela posse do ninho. Reunidas no forro da casa e não longe do ninho disputado, fizeram uma algazarra infernal. Depois de algum tempo, enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspeccionar o ninho, se dissolveu a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho começado, entrando logo a construir outro em lugar quiçá mais adequado.”

  Um facto ainda mais notável veio à baila recentemente. Nos arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg, as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira adúltera. Mataram-na às bicadas e atiraram-na fora do ninho (*).

  Agassiz, mais que ninguém, exalta as faculdades intelectuais dos animais. Depois de mostrar as dificuldades que ainda não permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e faculdades humanas e animais, emite ele as seguintes ideias: – “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal quanto no homem e, eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes apreender diferenças específicas, naturais, ainda que as haja e, grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência fora, certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limitadas às suas respectivas capacidades, individualidades tão definidas como no homem. Os criadores de cavalos, os guardadores de animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.

  E aí temos argumentos dos mais fortes a favor da existência de um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por excelência e faculdades superiores, coloca o homem em plano eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibilidade desse princípio nos outros seres vivos (**).

  Quem se atreveria hoje a pôr em dúvida a inteligência animal? Só um tímido espírito de sistema, temeroso das consequências desta verdade, em relação a umas tantas crenças, pode fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes de tudo, esta verdade, a fim de mais livremente podermos falar do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o instinto não existe.

  Há, certamente, uma grande diferença entre actos instintivos e actos racionais. Não que esses dois caracteres da força viva se encontrem isolados (nada o está na Natureza), mas por não se encontrarem na mesma graduação e não se poderem confundir. Não devemos insistir, maioritariamente aqui, a respeito dos factos de ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos factos inerentes ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência universal presidindo à vida em geral e que não explicam de modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos animais em que se deparam.

  Chama-se instinto ao conjunto das directivas que impelem o animal, obedecendo a uma necessidade constante. O instinto é inato, actua à revelia da instrução, inexperiente e invariavelmente e, não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da inteligência. Tanto mais notáveis são os fenómenos do instinto quanto mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer uma ideia nítida do instinto – dizia Georges Cuvier – senão admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações inatas constantes, que os obrigam a proceder como levados por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto, podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.”

  Frédéric Cuvier consagrou parte da vida a descobrir a linha que separa o instinto da inteligência. Pode dizer-se, sem paradoxo, que não há linhas divisórias na Natureza. Aqui, porém, não se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que diz o Sr. Flourens, das laboriosas observações do esforçado naturalista.

  O castor é um mamífero da ordem dos roedores, isto é, da ordem menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravilhoso, qual o de construir uma cabana sobre a água, com calçadas e diques e, tudo à mercê de uma indústria que demandaria inteligência elevadíssima, se de inteligência dependesse.

  O essencial, portanto, fora provar essa independência e foi isso o que fez F. Cuvier. Com castores muito novos, educados longe de seus pares e, por conseguinte, nada havendo com eles ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitários, postos numa jaula expressamente destinada à experiência e de forma a dispensá-los do seu trabalho peculiar construtivo, não se cobriram de o realizar, impelidos por uma força maquinal cega, ou seja um puro instinto.

  A mais completa antítese separa o instinto da inteligência. No instinto tudo é cego, necessário, invariável; na inteligência é tudo elevado, condicional, modificável. O castor que constrói uma cabana, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto. O cão e o cavalo, que chegam a compreender o sentido de algumas palavras e nos obedecem, o fazem por inteligência.

  No instinto é tudo inato: o castor constrói sem haver aprendido. Dir-se-ia que o faz por uma fatalidade, dirigido por uma força constante e incoercível.

  Na inteligência é tudo resultado da experiência e da instrução: o cão obedece quando ensinado. E aí tudo é livre, o cão obedece porque quer.

  Finalmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável que o castor utiliza ao construir a cabana não pode ele utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, na inteligência, tudo se generaliza, uma vez que essa mesma maleabilidade de atenção e de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para fazer diversas coisas.

  Distinção que se impunha, esta. Na história da Natureza importa reconhecer em cada qual o que lhe pertence e exactamente o que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção tendenciosa. Descartes e Buffon (este contraditório, às vezes) negam aos animais qualquer partícula de inteligência. Condillac e G. Leroy, ao contrário, chegam a conceder-lhes operações intelectuais das mais elevadas. É um erro duplo. Os animais não são plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender que isso que designamos como instinto não passa de “indolência do espírito para livrar-se dos penosos esforços que o estado da alma animal reclama”. Não a tem, tampouco, Sachus, quando adita que “não há necessidade imediata, resultante da organização intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão, como todos os grandes problemas da Natureza, é difícil de resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto noutras questões sucede, o homem se tem protegido mais com palavras que com ideias. Quando não se compreende o acto inteligente de um animal, é comum ligar-se ao embaraço, utilizando a palavra instinto, assim como um véu lançado ao objecto que se quer examinar; mas, à parte este processo ilusório, restam factos que não são certamente resultado de reflexão, nem de julgamento. Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto é um hábito hereditário. Esta explicação não transfere o instinto para os domínios da inteligência e, ainda menos, para os domínios do materialismo puro. Tampouco está demonstrado seja o instinto um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem no ar e que, chegando à terceira fase da sua maravilhosa existência, se entreabrem aos beijos da luz e aos eflúvios do amor.

  Célere, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes da próxima estação, quando surgem as pequenas lagartas e, isso depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já dormem na poeira o sono da morte. Que voz teria ensinado a estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem, hão de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e as folhas em que hajam de depositar os seus ovos? Os pais? Mas, se os não conhecem? Será, então, das folhas e talos que lhes advém a memória?

  Que memória, porém, se elas viveram três existências após essa época longínqua e substituíram os alimentos inferiores pelo manjar delicado das corolas olentes? Eis aqui, porém, outras espécies que protestam, ainda mais vivamente, contra as explicações humanas. Os necróforos (nome lúgubre) morrem imediatamente após a postura e as gerações jamais se conhecem. Nenhum ser desta espécie viu a mãe nem verá os filhos e, contudo, as mães têm grande cuidado em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para que aos filhos não falte alimento logo ao nascer. Em que parte aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de insectos que em tudo se lhes assemelham? Há outras espécies nas quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e para o insecto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os filhos carnívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem o hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse desta lei não poderia subsistir, visto que os rebentos morreriam de fome logo após o nascimento. A estes insectos podemos juntar os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa condição, a fêmea que vai desovar busca uma presa conveniente, tendo o cuidado de não a matar, limitando-se a feri-la de paralisia irremediável. Coloca, depois, sobre cada ovo um certo número desses enfermos incapazes de se defenderem da larva que os há de devorar, mas com vida bastante para que o corpo não se corrompa. Em algumas famílias acresce o cuidado pela alimentação da presa, até à eclosão da larva.

  Os nossos elementos de argumentação, neste particular, são tão numerosos que seria impossível reuni-los a todos. Limitamo-nos, assim, a citar alguns exemplos, convidando o leitor a tirar da letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o da abelha xilófaga, com a qual o Sr. Milne-Edwards entreteve recentemente, na Sorbonne, a curiosidade dos seus ouvintes.

  Essa abelha que vemos adejar na Primavera, que vive solitária e pouco sobrevive à postura, não viu nunca os genitores e não viverá o tempo suficiente para assistir ao nascimento das pequeninas larvas vermiformes, desprovidas de patas e incapazes, não só de se protegerem, como de angariar alimento. E, contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano, numa habitação bem fechada, sob pena de se extinguir a espécie.

  Como, então, supor que a abelha gestante, antes de pôr o primeiro ovo, tenha podido adivinhar as necessidades da prole futura e o que deve fazer para lhe assegurar o bem-estar? Tivesse ela em partilha a inteligência humana e, nada soubera a tal respeito, visto que todo o raciocínio requer premissas. Este insecto, que nada pôde aprender, tudo prepara e opera sem hesitação, como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência racional a norteasse. Apenas lhe despontam as asas e logo a xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas, broca um tronco de madeira exposto ao Sol, escava uma longa galeria e vai depois buscar, longe, no pólen das flores, o néctar açucarado. É o cibo do recém-nascido e que lhe há de bastar, o “quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.

  Uma vez provida a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando com terra a serragem prudentemente guardada e fazendo como que uma argamassa, de maneira que o leito dessa primeira cela se transforme em tecto de uma segunda despensa e berço da larva a nascer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de alguns andares, no qual cada alojamento recolhe um ovo e servirá, mais tarde, à larva desse ovo.

  “Admira – diz Edwards – como diante de factos tão significativos e numerosos ainda haja quem nos venha dizer que todas as maravilhas da Natureza não passam de obras do acaso ou, então, de consequências das propriedades gerais da matéria; desta Natureza que faz a substância da pedra como da madeira e que os instintos da abelha, assim como as mais altas expressões da genialidade humana, não são mais que resultado de um jogo de forças físicas ou químicas, as mesmas que determinam o congelamento da água, a combustão do carvão e a queda dos corpos... Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito, que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência positiva, só podem ser repelidas pela verdadeira Ciência. O naturalista não poderia acreditá-lo.

  “Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde se esconde o débil insecto, nele ouvimos distintamente a voz da Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”

  Em todas as províncias da vida – acrescentamos nós – a mão do Criador inteligente e previdente se revela aos olhos que sabem verdadeiramente ver. E sempre que a dúvida nos perturbe, nada melhor se nos impõe que o estudo acurado da Natureza, porquanto todos os que tiverem consigo o sentimento do belo e do verdadeiro, perante o espectáculo maravilhoso da Criação, logo terão dissipadas as nuvens qual floração de luz.

/…
(*) Temos numerosos documentos comprobatórios da inteligência dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo precedente, acrescentemos que a dar crédito a uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme as espécies. Antes da revoada matinal, uma discussão muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois de assente uma resolução é que se opera a debandada. Conta-se, também, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para uma outra, que, procurando alentá-la, ficou a seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e tonalidades vocais muito variadas. O cão alegre late de modo muito diverso de quando está raivoso. A linguagem mímica e sónica dos insectos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio das antenas e movimentos de asas, é, como sabemos, muito rica e variada. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês com Dupont de Nemours, mas a verdade é que se não pode negar que os animais se permutem nas suas impressões. Eles têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender as nossas palavras, ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês não compreende um alemão, nem um chinês.
(**) Contribuitions to the Natural History of the United States of North America volume 1 – 1ª parte.

(Referências: – Leis que presidem à conservação das espécies. – Faculdades instintivas especiais. – Não se explica o instinto pela suposição de hábitos hereditários. – Distinção fundamental entre os factos instintivos e os racionais. – Desígnio nas obras da Natureza. – Ordem geral e as harmonias universais. – Qual a distinção geral do mundo? – Magnitude do problema. – Insuficiência da razão humana.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Quarta Parte (4); O Destino dos Seres e das Coisas, (2) Plano da Natureza, O Instinto e a Inteligência (1 de 3), 34º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Deus na Natureza ~


~ O Destino dos Seres e das Coisas ~
~ Plano da Natureza ~ Construção dos Seres Vivos ~

  Certa altura, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi uma dezena de meninas que corriam e brincavam debaixo da copa frondosa de velhas tílias. Qual bando tagarela de aves inquietas, corriam e gargalhavam debaixo daquelas frondes seculares, que, indubitavelmente, viram por ali passar sucessivas gerações infantis. Que pensariam a respeito, aquelas árvores imóveis? Quantos sóis teriam visto passar-lhes por sobre as copas verdes? Sonhariam, por acaso, com os esplendores da prístina vegetação que tão gloriosamente vestiu a Terra nos seus dias primaveris? Teriam elas uma vaga consciência da importância do reino vegetal e da grandeza do seu papel no sistema geral da vida terrena? Talvez... Mas, seguramente, o que não suspeitariam era da opinião que a seu respeito me manifestara uma daquelas lindas crianças, quando, metendo-me no seu brinquedo, lhe perguntei para que serviam aquelas grandes tílias...

  – Para brincar à cabra-cega quando a tarde está bonita – respondeu naquele timbre de franqueza que revela as convicções profundas.

  E logo depois, como a completar o seu pensamento de filha amorosa: – elas servem, também, para a mamã fazer chá. – E disse-o, oferecendo-me um raminho branco e cheiroso, que caíra de um galho...

  Uma noite, em Paris, um tal M. C., a quem falávamos da imensidão do céu e da infinidade dos Mundos, entre os quais a Terra vale por átomo insignificante, respondeu-nos ele com uma ingenuidade menos perdoável que a anterior, visto provir de um adulto:

  – Pregais ideias desastrosas, quando dizeis que a Terra não é privilegiada, nem pode ser superior aos astros; pois a verdade é que ela forneceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o da Santa Virgem, e só isso bastaria para graduá-la acima de todos os astros, autorizando-nos a afirmar que todos os astros foram feitos para ela (ii).

  Simultaneamente, outra boa criatura, que é o Sr. Le Prieur, possuído das melhores intenções, presumia que as marés eram dadas ao oceano a fim de facilitar a entrada dos navios nos portos (iii).

  A isto, aditava Voltaire, que também não havia razão para duvidar fossem as pernas criadas para enfiar as botas e o nariz para sustentar os óculos; pois – discorria ainda (iv) –, para nos podermos certificar das verdadeiras causas, não há como desatender à continuidade dos seus efeitos, em todos os tempos e lugares. Igualmente inútil fora agradecer a Deus o ter feito passar os grandes rios pelas grandes cidades e encalhar os navios nas regiões polares, para assim fornecer aos Groelandeses a lenha com que se aquecessem. Sente-se quão ridículo fora presumir que a Natureza houvesse, de todos os tempos, trabalhado para ajustar-se às nossas invenções artísticas e arbitrárias, mas se evidentemente os narizes não foram feitos para os óculos, foram-no para o olfacto e isso desde que há homens.

  Assim, também, não tendo sido as mãos engendradas para gáudio dos luveiros, destinam-se, evidentemente a todos os usos que o metacarpo, as falanges digitais e os movimentos musculares do punho nos facultam.

  Teólogos há que aplicam a causalidade finalista para justificar a existência de animais nocivos, qual o fazem com as enfermidades e misérias humanas, tudo carregando em conta do pecado original.

  No parecer de Meyer e Stilling, os répteis e os insectos daninhos e venenosos são fruto da maldição que inquina a Terra com os terrícolas. As formas não raro monstruosas de tais seres devem representar a figura do pecado e da perfeição.

  O autor das Cartas a Sofia, O Sr. Aimé Martin, nos sugere a crença de que prevendo o Eterno que o homem não poderia habitar a zona tórrida, nela formou as mais altas montanhas, para aí lhe proporcionar um clima agradável. Mais adiante acrescentava que “se a chuva escasseava nas regiões arenosas, era porque aí se tornaria inútil”.

  Na baixa Normandia é usual despejar-se o cálice do conhaque no café, e eu muitas vezes tive oportunidade de conjecturar que, se ao bom Deus agradou fosse a aguardente mais leve que o café, não seria senão para que ele pudesse arder à tona e desse, assim, mais um aroma à excelente fusão colonial. Há ainda um número infinito de factos não menos importantes, que nos fazem amar as causas finais. Talvez devamos advertir que nem todos se podem atribuir a Deus, e alguns antes parecem artes do diabo, como, por exemplo, o de que nos falava um epicurista amigo, isto é – a condensação nas vidraças, da evaporação nocturna, a formar uma discreta cortina de certas carruagens fechadas.

  Segundo Bernardin de Saint-Pierre, os vulcões, localizados sempre perto dos mares, destinam-se a consumir as matérias corrompidas que carreiam e que poderiam infeccionar a atmosfera. As tempestades têm a virtude de refrescar a mesma atmosfera, etc. Pensava ele, também, que as pulgas nasciam pretas para que as pudéssemos distinguir na brancura de nossa pele e então puni-las. A plumagem retinta dos corvos, na opinião do Sr. Martin, é para que as perdizes e as lebres, de que se alimentam no Inverno, possam percebê-los, de longe, sobre a neve. O eloquente autor do Génio do Cristianismo diz que se vendo, qual pequena flama azulada, fugir a serpente ondulante, facilmente nos convencemos de que foi ela quem seduziu a primeira mulher. O autor das Cartas pré-citadas também afirma que os insectos venenosos são feitos para que o homem desconfie deles.

  É claro que o ideal religioso e a doutrina da Providência nem sempre foram bem servidos pelos seus prosélitos. Quando se apoiam tais sentimentos em motivos assim pueris, e frívolos, corre-se o risco de comprometer a causa perante os semi-sábios, o que vale dizer, a maioria dos espíritos. Tentativas que tais, não logram senão caricaturar o Ser supremo. A propósito de uns tantos filósofos do seu tempo, dizia Duclos: “Essa gente acabará levando-me à missa.” Hoje, diante da opinião de uns tantos devotos, também chegamos a imaginar que esta gente acabará fazendo-nos duvidar da Providência.

  São ideias que pecam, não apenas por falsidade, mas pelo imperdoável estigma do ridículo. Assemelham-se àqueles camponeses de que nos fala Riehl (v), incapazes de ver no mundo outras belezas além das roupas domingueiras das alentadas conterrâneas, que também vestem as imagens em certos dias festivos.

  O próprio Fénelon não se furta à censura. Assim é que nos representa o Sol como regulando expressamente o trabalho e o repouso, as necessidades e os prazeres. Graças ao seu movimento diurno e anual, um único sol basta para toda a Terra. Se fosse maior, à mesma distância, abrasaria, pulverizaria o mundo; se menor, a Terra congelaria, tornar-se-ia inabitável. Se, do mesmo tamanho, estivesse mais afastado, deixaríamos de viver, à mingua de calor. Que compasso, pois, abrangendo no seu círculo o céu e a Terra, teria assinalado medidas tão exactas? De facto, ele não beneficia menos as regiões das quais se afasta, do que o faz àquelas de que se aproxima por favorecê-las com os seus raios... Destarte, a Natureza adornada de diversas maneiras oferece simultaneamente tão variados espectáculos que não dá tempo ao homem para desgostar-se do que possui. Mas, entre os astros diviso a Lua, que parece compartilhar com o Sol o cuidado de nos aclarar. Ei-la que surge, então, com o seu cortejo estelar, no momento exacto em que o Sol vai irradiar noutro hemisfério.”

  Lícito é, certamente, pôr em dúvida o valor absoluto deste raciocínio, pois a partilha uniforme dos dias e das noites só se verifica no equador, para diminuir progressivamente e desaparecer nos pólos, com todas as suas virtudes e benefícios. Se lá, nos pólos, algum dia escreverem para glorificar a Providência, hão de ver que lhe renderão graças pelos dias e noites semestrais.

  Em Mercúrio, ou em Neptuno, hão de concluir que o Sol também está à distância conveniente à eclosão da vida ambiente. Em Júpiter, louvarão o Criador por lhes ter concedido quatro luas, tanto quanto em Saturno agradecerão a dádiva de um anel, que reúne o útil ao agradável, etc.

  Diante de tais argumentos não há que admirar tenha a causalidade final caído no mais absoluto descrédito. Eis aí, contudo – dizia J. B. Biot (vi) – a que extremos levaram a mania, hoje tão comum, de explicar o como e o porquê de todas as coisas naturais, conforme o imperfeito e vago sentimento utilitário que delas possamos ter. Cada qual, assim, regula a previdência da Natureza ao nível das suas luzes, tornando-a mais ou menos louca, na pauta da própria ignorância. Isso nada representaria, uma vez que tais sonhos fossem inculcados pelo seu justo valor e não pretendessem insinuá-los como verdades, como artigos de fé, ao ponto de considerarem os seus autores uma impiedade, quando os tachamos de absurdos.

  “É preciso – opina Montaigne – julgar com muita moderação as coisas divinas. O em que mais se acredita é justamente o que menos se conhece; nem haverá pessoas mais autorizadas do que aquelas que nos contam fábulas, como sejam os alquimistas, os adivinhos, quiromantes, médicos, id gezus omneaos quais de bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de indivíduos que se metem a interpretar e controlar os desígnios de Deus, gabando-se de encontrar as causas de cada acidente e de ver, nos segredos da vontade divina, a razão incompreensível da sua obra. Esbarrados a cada canto, atirados de um lado para o outro, mercê da variedade e discordância contínua dos episódios, nem assim deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o mesmo lápis o preto e o branco.”

  Por terem sido escritas há quatrocentos anos, estas judiciosas palavras do venerando ancião não deixam de exprimir uma verdade que tem aplicação a cada momento. Elas merecem ser juntas à comparação que o mesmo autor faz do homem com o ganso, que se gloria de ser o “favorito da Natureza” – comparação já por nós desenvolvida (vii) a propósito da vaidade humana, que, sem delonga, construiu o Universo nos moldes da sua fantasia.

  Desde que o homem se deixa arrastar pelo natural pendor de tudo referir a si, torna-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para fazê-lo entrar nos seus planos estreitos e mesquinhos.

  O Sol já não é, então, mais que um seu mísero servo; as estrelas não passam de ornamento para decoração do seu cenário e servindo-lhe de roteiro na exploração dos mares. Se a atracção luno-solar, duas vezes por dia, levanta as águas oceânicas, é apenas para facilitar a entrada no Havre dos navios que chegam de Nova-Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho excreta o tanino, é para que possamos ter bons couros. Se o bicho-da-seda fia a seda no seu casulo, é para ofertar belos estojos para as mulheres elegantes. O rouxinol saúda a aurora? Então é para o encanto auditivo de quem o ouve. A Natureza inteira, enfim, foi criada visando o homem, e toda ela concorre para ajudá-lo e o fazer feliz.

  É evidente que quando se chega a tais excentricidades, a causalidade final fica singularmente prejudicada. Pretender que tudo tenha sido expressamente criado para o homem é abusar muito ingenuamente da nossa posição.

  Antes de tudo, é preciso distinguir a Natureza em duas partes bem diferentes: o Céu e a Terra.

  O Céu é o espaço infinito, a multidão incalculável de mundos, o conjunto; a Terra, uma gota d'água no oceano, um grão de areia, um átomo. Que o Céu se tenha criado para o habitante da Terra, é ideia absurda, inconcebível. O Céu não conhece a Terra e o homem, por sua vez, não conhece a mínima partícula do Céu. As estrelas são sóis, centros de sistema de outras terras habitadas. Contamo-las por milhões e certificámo-nos de que o nosso planeta lhes é absolutamente desconhecido e insignificante, em relação a elas que ocupam no espaço domínios tão vastos que a própria luz leva milhares de anos para atravessá-los. De maneira que, se o nosso globo deixasse hoje de existir, o seu desaparecimento não seria matematicamente percebido pelos mundos siderais.

  O átomo terrestre turbilhona, célere, em torno do Sol, como a docilidade da funda nas mãos de um gigante. Mil revoluções siderais se completam simultaneamente, no infinito, em todas as latitudes imagináveis e distantes deste átomo... Quando, pois, o homem pretende a imensidade opulenta dos céus desdobrada no vácuo em sua exclusiva intenção; quando fala de princípio e fim do mundo, como se se referisse à sua pessoa, equipara-se a uma formiga que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro, traçado para oferecer-lhe belas perspectivas. As árvores floridas foram destinadas ao prazer da vista e aquela casinha branca, lá mais longe, não foi construída senão para lhe servir de ponto de referência; e finalmente: o proprietário deste campo não cogitou senão dela – formiga inteligente – quando organizou o seu habitat com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desígnio manifesto. Se, secundariamente, nos restringirmos à Terra, a ideia de uma finalidade criadora é aqui mais particularista e não haverá absurdidade em pretender o homem tenha sido ela construída e organizada para sede da vida e da inteligência. Pode mesmo acrescentar-se que, no plano terreno, o homem é o ser mais elevado. Só ele recebeu o dom da inteligência. Se desaparecesse da Terra, é de crer que esta perderia a sua razão de ser no concerto universal, a menos que não viesse outra raça intelectual suceder-lhe, o que leva a crer tenha sido mesmo destinada para ser habitada.

  Temos precisamente demonstrado, numa obra anterior, que os mundos foram construídos para morada do espírito.

  Considerando, porém, o homem como o último ser nascido entre os seres terrícolas, cujo surgimento sucessivo obedeceu à lei geral do progresso e considerando-o como o mais perfeito da escala, a pressupor-se o centro final – ou pelo menos actual – da evolução terrestre, negamos-lhe, contudo, o direito de atribuir a Deus as suas mesquinhas concepções e supor que as suas mínimas combinações domésticas participaram do plano divino e eterno. Nem é fora de si que ele deverá procurar a razão de sua grandeza: é mesmo naquilo que o distingue, isto é, no seu valor intelectual. Se, por sua inteligência, se apropriou de uns tantos serviços que lhe pode prestar a Natureza, não há confundir essa apropriação com o plano geral.

  A estrela polar não foi criada para nortear navios, mas o navegador soube utilizar-se da sua posição peculiar. O carvalho não foi feito para aproveitar aos cortumes, mas o fabricante descobriu, com a sua inteligência, as propriedades do tanino no tratamento das peles. A púrpura, molusco gastrópodo do Mediterrâneo, não nasceu para tingir o manto real dos potentados, mas a indústria teve como extrair um colorido brilhante das suas conchas. O carneiro, o bicho-da-seda, as aves de pluma, as plantas têxteis, o algodoeiro, o linho, o cânhamo, as minas de ouro, prata, chumbo e níquel, as safiras, rubis, esmeraldas, etc.; tudo enfim – seres e coisas – que a Natureza oferece ao homem, não foi criado nem posto no mundo com fins particularistas, e se o homem se tem progressivamente apropriado dos elementos, é claro que o deve às suas faculdades electivas, à sua inteligência e não a um plano primordial necessário, que se tinha de executar fatalmente e, por assim dizer, à revelia da escolha da indústria humana.

  Expõe-se o homem a cair em erro grosseiro, quando tudo refere a si, mediante um processo incompleto. Mas, negar um plano à Criação só pelo facto de esse plano não se reportar exclusivamente ao homem, é cair noutro erro. Voltaire deplora em belos versos o terremoto de Lisboa e pergunta, com azedume, onde está essa Potência amiga do homem e de que tanto se fala.

  Rousseau responde-lhe, então, que a culpa é só dos homens, pois ninguém lhes mandou edificar num solo assim. Nem um nem outro têm razão. O homem enganou-se no seu egoísmo, nisso estamos de acordo, e até nos propomos evidenciar a fantasia desse método.

  Mas, a falsidade de método não é razão bastante para concluir que o objecto desse método não exista e que o fundo da doutrina seja um erro.

  Ora, isso é justamente o que fazem os materialistas, sem perceberem que se deixam seduzir por uma estranha confusão. Certo, a causalidade final, o conhecimento do plano da Criação, não é tão simples como imaginam os espíritos superficiais. É, assim, de extrema complexidade e apresenta dificuldades quase insuperáveis, mesmo para espíritos mais clarividentes. Nós não assistimos aos desígnios de Deus e não passamos de pobres ignorantes em face de tanta grandeza. Mas, com franqueza, em que pode a nossa incapacidade afectar o princípio das causas? Em que os nossos erros diminuem a ideia da omnipotência criadora? Considerais o homem um ser tão importante para armar este dilema: – ou a Natureza gravita para o homem, ou se conserva em repouso.

  Esqueceis, assim, os vossos próprios princípios e o habitual desdém pelas aspirações humanas, para nos colocar na alternativa de crer que a destinação de tudo converge os seus raios para nós, ou que não haja nenhum desígnio na unidade universal! Mas, não... A verdade é que deixais o ser humano bastante envolto nas gangas da matéria, para o evidenciardes de um jacto no seu aspecto superior. Tendo-o eclipsado muito na sua intelectualidade para poderdes, de improviso, formular essa alternativa. Mas, como explicar a vossa absoluta negação de qualquer plano da Natureza?

  Ei-la aqui, esta grande, pretensa explicação, mediante a qual imaginam suprimir toda a ideia de finalidade geral e particular! Vamos ver que essa explicação é tão frágil quanto as alegações opostas às eternas verdades, e que esses mesmos homens que nos acusam de forjadores de hipóteses, mais não fazem, na verdade, que substituir hipóteses por hipóteses mais complicadas. A diferença principal, entre nós, está em que eles se atolam no seu labirinto escuro, enquanto nós caminhamos em linha recta para o alvo luminoso.
[...]

  Não queremos retomar neste capítulo a questão primária da origem da vida no nosso globo, bem como do seu entretenimento e progresso sob o guante de leis providenciais. Examinámos esta questão sob todos os seus aspectos num capítulo sobre a origem dos seres e chegamos à conclusão inatacável (ver Segunda Parte) de que a vida terrestre é constituída por uma força, única e central para cada ser, condicionando a matéria segundo um tipo do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Vimos que a lei do progresso nos seres organizados, da planta ao homem, atesta a inteligência divina e evidencia a presença constante de Deus na Natureza, jamais induzindo à negação de uma potência criadora.

  No nosso caso particular (Plano da Natureza – construção de seres vivos), temos uma afirmação ainda mais directa da acção inteligente na maravilhosa organização dos corpos animados, atento a que esta acção é igualmente necessária nos casos em que as espécies se houvessem sucessivamente transformado em ascensão zoológica (hipótese que está longe de ser admitida) e, naqueles em que o primeiro casal de cada espécie fosse o produto de uma força particular, que não nos é dado apreciar. Temos, assim, o direito de fechar esta controvérsia da adaptação de cada espécie ao seu género de vida com a declaração de que, mesmo supondo uma progressão natural, instintiva, lenta e insensível; uma plasticidade normal do organismo e obediência cega de cada espécie às forças dominantes, a hipótese materialista nada adianta com isso. A apropriação da matéria organizada às causas exteriores demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria nos desígnios e nos feitos do Criador. Se, como acima lhes perguntávamos, os seres fossem de ferro ou de mármore, haveria críticos que com isso se contentariam. E contudo, que sucederia? Qualquer mudança de clima, de temperatura, de ambiente, de alimentação, resultaria numa paragem mortal para essas espécies inflexíveis. O junco verga, enquanto que o carvalho é fustigado pelo aquilão.

  Longe, pois, de ver ausência de pensamento e desígnio nesta flexibilidade maravilhosa do organismo vivo, nesta faculdade imperecível de tirar o melhor partido das circunstâncias mais incómodas, vencer obstáculos e plantar, a despeito de tudo, o estandarte da vida no solo mais agreste e mais ingrato, o que reconhecemos é o depoimento irrecusável da causa omnipotente, que, a partir dos primeiros tempos, houve por bem que os mundos se embalassem harmonicamente na amplidão do infinito e fossem envolvidos nas carícias da vida.

  A inteligência criadora e ordenadora, que denominamos Deus, permanece, portanto, como lei primordial e eterna, força intrínseca, universal, constituindo a unidade viva do mundo. Toda a dificuldade desaparece, substituindo-se a ideia de plano geral à de causalidade humana. Órgãos e funções, espécies e indivíduos, é tudo conduzido na mesma direcção.

  O Universo é o desdobrar de um só pensamento e a unidade de tipo é sensível sob todas as formas particulares da vida terrestre. Em que direcção nos conduz o pensamento eterno?

  É o que tentaremos entrever, ao terminar este estudo sobre a finalidade dos seres e das coisas.

/…
(ii) Ver Bibliographie Catholique, Mars 1866, página 225.
(iii) Spectacle de la Nature.
(iv) Dictionnaire Fhilosophique.
(v) Die Burgeliche Geseltschaft.
(vi) Mélanges Scientifiques et Litteraires.
(vii) Mundos Reais e Mundos Imaginários parte 2ª, capítulo 5º.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Quarta Parte (4); O Destino dos Seres e das Coisas, (1) Plano da Natureza, [...] Construção dos Seres Vivos, 33º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*)
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (X)

Os desertos do espaço 🌈

  Um deserto imenso, sem fronteiras, estende-se para lá do aglomerado de estrelas de que acabámos de falar e envolve-o. Ermos se sucedem a ermos e as planícies incomensuráveis do vazio estendem-se ao longe. Encontrando-se os amontoados de matéria cósmica isolados no espaço como ilhas flutuantes de um imenso arquipélago, se quisermos apreciar de qualquer maneira a ideia da enorme distância que separa a pilha de estrelas de que fazemos parte das aglomerações mais próximas, é preciso sabermos que estas ilhas estelares estão disseminadas e são raras no vasto oceano dos céus e que a extensão que as separa umas das outras é incomparavelmente maior do que aquela que lhes mede as dimensões respectivas.

  Ora, lembramo-nos que a nebulosa estelar mede, em números redondos, mil vezes a distância das estrelas mais próximas tomada como unidade, quer dizer uns cem mil triliões de léguas. A distância que se estende entre elas, sendo muito mais vasta, não poderia ser expressa em números acessíveis ao entendimento do nosso espírito; só a imaginação nas suas mais elevadas concepções é capaz de ultrapassar esta imensidão prodigiosa, os seus ermos mudos e privados de qualquer aparência de vida e considerar de qualquer maneira a ideia desta infinidade relativa.

  No entanto, este deserto celeste que envolve o nosso Universo sideral e que parece estender-se como os confins longínquos do nosso mundo astral, é abarcado pela vista e pelo poder infinito do Altíssimo que, para lá destes céus dos nossos céus, desenvolveu a trama da sua Criação ilimitada.

  Para lá destas vastas solidões, com efeito, os mundos resplandecem na sua magnificência assim como nas regiões acessíveis às investigações humanas; para além destes desertos, vogam no límpido éter esplêndidos oásis e renovam constantemente as cenas admiráveis da existência e da vida. Ali, desenvolvem-se os longínquos agregados de substância cósmica que o olho profundo do telescópio entrevê através das regiões transparentes do nosso céu, essas nebulosas a que chamais irresolúveis e que vos aparecem como leves nuvens de poeira branca perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo. Ali, revelam-se e desenvolvem-se mundos novos cujas condições variadas e estranhas às que são inerentes ao vosso globo lhes dão uma vida que as vossas concepções não conseguem imaginar nem os vossos estudos constatar. É aí que resplandece em toda a sua plenitude o poder criador; para quem venha das regiões ocupadas pelo vosso sistema, ali estão em acção outras leis cujas forças regem as manifestações da vida e os caminhos novos que trilhamos nesses países estranhos abrem-nos perspectivas desconhecidas (**).

/…

(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)

(**) Dá-se em astronomia o nome de nebulosas irresolúveis àquelas a que não foi ainda possível distinguir as estrelas que as compõem. Tinham sido consideradas primeiro como montes de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos, mas hoje pensa-se geralmente que esta aparência se deve ao afastamento e que com instrumentos suficientemente fortes todas seriam resolúveis.

Uma comparação familiar pode dar uma ideia, apesar de muito imperfeita, das nebulosas resolúveis: são os grupos de faíscas projectadas pelo fogo-de-artifício no momento da sua explosão. Cada uma das suas faíscas representará uma estrela e o conjunto será a nebulosa ou o grupo de estrelas reunidas num ponto do espaço e submetidas a uma lei comum de atracção e movimento. Vistas a uma certa distância, estas faíscas mal se distinguem e o seu grupo tem o aspecto de uma pequena nuvem de fumo. Esta comparação não seria exacta caso se tratasse de matéria cósmica condensada.

A nossa Via Láctea é uma dessas nebulosas; conta com cerca de trinta milhões de estrelas ou sóis que ocupam nada menos de algumas centenas de triliões de léguas de extensão e no entanto não é a maior. Suponhamos somente uma média de vinte planetas habitados circulando à volta de cada sol, o que faria cerca de seiscentos milhões de mundos só para o nosso grupo.

Se nos pudéssemos transportar da nossa nebulosa para uma outra, estaríamos ali como no meio da nossa Via Láctea, mas com um céu estrelado com um aspecto totalmente diferente; e esta apesar das suas dimensões colossais em relação a nós, aparecer-nos-ia, ao longe, como um pequeno floco lenticular perdido no infinito. Mas antes de atingirmos a nova nebulosa, seríamos como o viajante que sai de uma cidade e percorre um vasto país desabitado antes de chegar a outra cidade; teríamos atravessado espaços incomensuráveis desprovidos de mundos e de estrelas, aquilo a que Galileu chama os desertos do espaço. À medida que fôssemos avançando, veríamos a nossa nebulosa a fugir atrás de nós, diminuindo de extensão à nossa vista ao mesmo tempo que à nossa frente, se apresentaria aquela para a qual nos dirigíamos, cada vez mais distinta, semelhante à massa de fagulhas do fogo-de-artifício. Transportando-nos em pensamento para as regiões do espaço, para além do arquipélago da nossa nebulosa, veremos à nossa volta milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas, contendo cada um milhões de sóis e centenas de mundos habitados.

Tudo o que nos pode identificar com a imensidão do infinito e com a estrutura do Universo é útil para o alargamento das ideias tão reduzidas pelas crenças vulgares. Deus engrandece aos nossos olhos à medida que vamos compreendendo melhor a grandeza das suas obras e a nossa pequenez. Nós estamos longe, como se vê, dessa crença implantada pela Génese de Moisés, que faz da nossa pequena Terra imperceptível a principal criação de Deus e dos seus habitantes o objecto único da sua solicitude. Compreendemos a vaidade dos homens que julgam que tudo no Universo foi feito para eles e dos que se atrevem a discutir a existência do Ente supremo. Dentro de alguns séculos, espantar-se-ão por uma religião, feita para glorificar Deus o ter rebaixado a tão mesquinhas proporções e que tenha rejeitado, por ser concepção do Espírito do mal, as descobertas que só podiam aumentar a nossa admiração pela sua omnipotência, iniciando-nos nos mistérios grandiosos da Criação; ainda se admirarão mais quando souberem que foram rejeitados porque deviam emancipar o espírito dos homens e retirar a preponderância aos que se diziam representantes de Deus na Terra. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – Os desertos do espaço (de 45 a 47), 32º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(VI)

 O apanágio mais glorioso da natureza humana não passaria de grosseiro engodo, se pudesse prevalecer a teoria mecânica do Universo. A Verdade, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão os adversários nos alegam a sua conduta exemplar, inatacável.

 No caso, não se trata das consequências de sua vida pessoal e sim das de sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral. “O materialismo – diz judiciosamente Patrice Larroque (i) – para mais nada serve, senão para tirar à vida humana a sua gravidade e o seu valor, dando razão aos seres miseráveis, cuja habilidade consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias e fraquezas do próximo.”

 Queremos francamente acreditar que todos os materialistas, em o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos eco dos que os acusam de “viverem mergulhados na embriaguez e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora não crendo na existência de Deus e da alma. Não, não podemos deixar de confessar que, no seu próprio sistema, essa honestidade é apenas uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e benevolentes, afectuosos e moralizados, em suma, se praticam a caridade, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a integridade e a pureza de carácter à fortuna ilícita, não é devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia. Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de o serem.

 Pois, na verdade, que significa uma moralidade sem base, sem motivo e sem finalidade?

 Certo, não duvidamos possa haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. No que não cremos é numa moral independente da ideia de Deus. Se só existissem as verdades de ordem física, se fossem místicas as que possuímos como de ordem moral, a própria moral não passaria de utopia e a honestidade de mera tolice.

 Outras propensões, existem, porém, que não procedem da matéria.

 “O homem que passa os dias sofrivelmente a trabalhar, ou, antes, que não consome todo o tempo em prover a existência física – diz um grande astrónomo (ii) – experimenta necessidades nas quais não intervêm os sentidos, penas e gozos, que nada têm de comum com as misérias da vida. E, uma vez manifestadas com certa intensidade, ele não pode confundi-las com os apetites animais. Sente-as como de outra espécie e de uma ordem mais elevada. Mas isso não é tudo. O homem não é sensível somente aos jogos da imaginação, às suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. Não contempla o mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se fossem fenómenos seriados e apenas dignos de interesse pelas relações que mantêm com ele. Ao contrário, considera-os como sistematizados, dispostos e coordenados com desígnio. A harmonia das partes, a sagacidade das combinações, causam-lhe a mais viva admiração. Assim, é levado à conjectura de uma potência, de uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Pode chamar a essa potência, infinita, uma vez que lhe não percebe limite nas obras com que se lhe manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificências descobre e mais grandezas entrevê.

 “Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já como património de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos limites da Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes da carcaça, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar se convença ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma vida nova, na qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o voo, dotado de sentidos mais subtis, de faculdades mais altas, matará a sede na fonte de sabedoria que tão sequioso buscara na Terra?”

 A hipótese materialista exclui todas estas grandezas morais, todas estas altas aspirações e esperanças consoladoras. Os nossos adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos abstracção – diz o autor de Força e Matéria – de toda a questão de moral e de utilidade. A Natureza não existe para a Religião, nem para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos – vejam bem, ridículos – se fôssemos chorar como crianças só porque as nossas torradas têm pouca manteiga?” Que tal vos parecem as... torradas? Pelo que nos toca, confessamos não compreender o gracejo em assunto de tamanha relevância.

 Diante dos grandes factos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos da matéria. Como atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoológica, à faculdade de alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação das mãos a superioridade que desfruta em relação aos outros animais”.

 Como admitir que Büchner, apregoando a matéria como base de toda a força espiritual, de toda a grandeza terrestre e humana – que aquele mesmo que reconheceu a igualdade do espírito e da matéria e julgue honroso o título de materialista, pois ao materialismo é que o mundo deve a sua grandeza? (iii)

 Como afinar com Spencer nestas declarações:

 “O que denominamos quantidade de consciência é determinado pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente na exaltação que se dá quando introduzimos na circulação uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os alcalóides vegetais.” Como Compartilhar da opinião de Littré ao declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral, assim como a contractilidade o é dos músculos e, que o livre-arbítrio não é mais que simples modalidade do trabalho cerebral”? (iv)

 Como reduzir a proporções da Física e da Química orgânicas, a simples fenómenos de nutrição e assimilação, essas realizações magníficas do génio e da virtude?

 Terminando este capítulo, regressemos ao objectivo com que o encetámos e constatemos a inconsequência desses filósofos que imaginam, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito e a matéria, sem perceberem que apenas lançaram pedras no abismo. Descrevem eles o movimento atómico das substâncias, metamorfoses de combinações, processos de assimilação e desassimilação e pretendem que essas transformações que levam do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a explicar claramente a formação do pensamento. Posto isto, não temem acrescentar: – “Temos provas tão concretas desta verdade, que uma profissão de fé materialista não deve ser considerada apenas como premissa de grande alcance, nem como arrojada profecia, mas como fruto de uma convicção profundamente enraizada” (v).

 Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó filósofos e moralistas! que o homem é manufactura do seu alimento, da sua paternidade, do seu clima, do seu solo e da sua educação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria humana, não é, precisamente, a graduação do nível moral e intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar e, sim de como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o ferro é uma das maiores apoquentações da época e as raparigas muito necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste (já que sangue, cérebro, ovos e esperma, todas as partículas do corpo, em suma, que ocupam os mais altos postos na escala da vida devem à gordura fosforada (vi) o seu carácter mais essencial); (Carta 11ª) se tem bastante sal no espírito e açúcar no coração...

 A questão fundamental é alimentar-se bem e estabelecer uma conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos então, nos elementos deste último, os mais ricos de substâncias nutrientes e, sobretudo, os que primam por abundância de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engolir cabeças do dito.

 Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao nabo, às verduras, prefiramos o feijão, as ervilhas e as lentilhas. Eis os três restauradores do espírito! e eis como se escreve a respeito desses beneméritos legumes.

 Ouçamos esta tirada: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam a florescer nos nossos olhos, elas contêm aproximadamente tanta albumina (legumina) quanto o nosso sangue; e duas ou três vezes mais matérias adipógenas que legumina. Embora mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão e as lentilhas dão melhor resultado que as batatas. Elas são de molde a produzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas, atendendo às suas qualidades nutritivas, são mais baratos que as batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a madeira, quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha dão energias para o trabalho, pagam por si mesmos o seu custo; ao passo que um regime longo de batatas acarreta debilidade e decadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo” (vii).

 O prolator deve ter assinado contracto com algum hortelão (ou talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes omnipotentes legumes. Que lhes faça bom proveito...

 Sob esse novo panegírico das ditas substâncias alimentares, o materialismo desliza suavemente e se insinua sem rumor. Compararam-no certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvidas) àquela coisa de que nos fala D. Basílio: um leve ruído resvalando pelo solo, qual andorinha que, prenunciando tempestades, pipila e passa, a espalhar no seu curso a semente envenenada...

 Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não será neles que havemos de procurar as manifestações do espírito humano.

 Quando, finalmente, concluem que a influência incontestável e incontestada do regime alimentar sobre o físico e o moral basta para justificar, em absoluto, a suserania da matéria, caem nos excessos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra no seu sistema e a torcerem os factos para os ajeitar aos seus estreitos moldes. Bastaria, contudo, que ponderassem um pouco mais, para não sustentarem semelhantes erros.

 Quaisquer que sejam o carácter, o propósito e a persistência de ânimo daqueles de quem aqui temos falado, os seus exemplos valem como protesto de afirmações tão insensatas.

 Eis aqui o grande missionário das Índias, Francisco de Xavier. Sigamo-lo na nau que o levou às Índias portuguesas, por ordem de D.João III, a descer o Tejo, envolto na sua estamenha remendada e só com a bagagem do seu breviário – ele, o generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.

 Em Goa, foi encontrar-se no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, no prosseguimento da abnegada missão, ei-lo a descer as costas de Comorim e a fundar uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas raças e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome, sede e torturas inauditas barraram a senda do peregrino da fé.

 Tudo vencia, porém, e avançava para diante como que impelido por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o suplício que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte detiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos como este, que se poderia concluir das teorias do feijão, das ervilhas e das lentilhas? Em que, como e, quando o regime alimentar teria governado a alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconhecidas aquela balança metódica que se oferece ao cidadão e que o capitalista preguiçoso pode encomendar ao seu Vatel? Que relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimodde la Reynière com um Inácio de Loyola e um Vicente de Paula? Os grandes exploradores, à cabeça dos quais se encontram um Dumont-d’Urville, um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as mais contrárias e variadas?

 Poder-se-á sustentar que, mudando de terra, de alimentação, de clima, de meio social, de outros elementos e até de corpo, dado a transformação molecular, mudassem também de alma, de fé e de coragem? Pois não é verdade que persistiram íntegros na consecução do ideal, através de vicissitudes tremendas e dos mais fortes obstáculos? (viii) Na verdade, insistirmos seria injuriar o leitor, os nossos sistemáticos adversários à parte, nenhum espírito sensato duvida que matéria e espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora que, se a assimilação corporal actua no nosso pensamento, assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso não impede que seja essa alma um ser pessoal, que chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes e, outras vezes se entrega serenamente ao estudo, enquanto o céu tempestuoso se funde em raios e trovões (ix).

 Entendam-nos bem e não venham interpretar infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituída de toda e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a alma humana seja completamente independente do organismo e nem mesmo estamos com Platão, ao pretender que o espírito é estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.

 Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a cantar. Quem duvidará de que, após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar?

 Então não sabemos, todos, que a nossa alma se impressiona com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra intimamente, proporcionando-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os encantos da música, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonantes, nunca vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Será que, nas vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca experimentastes o efeito da alimentação e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela qual terminastes a vossa tarefa, não tenha afectado os vossos sonhos?

 Numa palavra: será possível ao observador negar a influência permanente e variável que o mundo exterior, sociedade, relações, alimento, frio, luz, obscuridade, cidade ou aldeia e outras causas mil, de nós independentes, não influam nos nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? Não. Essas influências são reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais acentuada nos climas temperados e, sempre exuberante nas regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas na Inglaterra e na Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto é: enquanto na primeira o auditório se mantinha calmo, na segunda vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijecidos dos povos do Norte são menos vibráteis que os da gente dos países quentes. Lá, há menos sensibilidade na dor. Para sensibilizar um moscovita, quase precisamos esfolá-lo.” Mais adiante, porém, acrescenta que, entre as coisas que governam o homem, importa distinguir “a religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concordaremos com o autor de O Espírito das Leis, com restrições, isto é, no que concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas daí a admitir que só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que a alma é impressionada por causas situadas fora dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas proposições, quando, no fundo, imaginam que a alma não existe e os pensamentos não passam de produtos da substância cerebral, variáveis com as impressões recebidas. Eis ao que se reduz o homem!

 Abstraindo-nos de todas as provas precedentes acumuladas, a testificação da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da força pensante que nos anima.

 – O panteísmo, fazendo da alma uma partícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo absoluto.

 – O ateísmo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e a conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo.

 Poderíamos, portanto, proceder por eliminação, demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a única que concilia os diversos imperativos de nossa consciência. Assim, permitiu de sorte fossem os adversários batidos em todos os quadrantes e que a negação da personalidade ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa convicção.

 Concluindo o arrazoado sobre a existência da alma, afirmamos: a dignidade humana não permite um semelhante atentado ao que constitui o seu supremo farol; antes protesta contra essas tendências exageradas. As influências exageradas actuam mais ou menos em nós, conforme a nossa sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese, bem como a precedente, basta considerar a potencialidade da nossa força mental. Com ela, só, podemos afrontar todas essas influências e seguir desdenhosos, de cabeça erguida, por entre essas acções e reacções ambientes.

 Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado do céu, se chove ou se faz vento.

 Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas, pouco se nos dá o dia e o mês em que nos encontramos.

 Quando estudos sérios nos absorvem a atenção, esquecemo-nos de jantar e até de dormir.

 Quando o som das fanfarras atroa os ares e a cidade em alvoroço festeja a liberdade, não lembra saber se estamos em Julho ou em Fevereiro.

 Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa com a data e o barómetro.

 A vontade suserana não cogita dessas pretensas causas. As profundas emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde é condição excelente para bem pensar e sentir, não quer dizer que ela só por si promova o estado da alma. Há, na vida, horas mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes e, nas quais se esquecem as iguarias deleitosas aos paladares insaciáveis; horas que eclipsam câmaras sumptuosas, peles caras, jóias brilhantes, todos os prazeres do mundo, enfim, para só nos absorvermos em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, na Terra, fruíram esses momentos de felicidade, sabem que acima da esfera material existe uma região inacessível aos tormentos inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão com a beleza espiritual incriada.

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(ii) Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.
(iii) Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.
(iv) Dictionaire de Nysten, article Volonté.
(v) Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, página 57.
(vi) A propósito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos a esses entusiastas se imaginam que os pescadores da Picardia e da Bretanha, que comem muito pescado, se destacam por uma inteligência excepcional.
(vii) Moleschott – Loc. cit. conclus. t. 2º, página 225.
(viii) Moleschott ainda não se penitenciou do seu erro e continua sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse, até ao fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos que acabamos de citar, concebe-se que um observador de boa-fé proponha, por princípio geral, o seguinte conceito: – “Em toda a série animal vemos funções múltiplas da vida cerebral em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento do órgão; vemos a sensibilidade, o “julgamento”, a “consciência”, a coragem e o amor mudarem com o regime alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 na Universidade de Zurich.
(ix) A Filosofia não se deixa dominar por esses mistérios. O vitae philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus, a te opem pertimus”.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (6 de 6), 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon