Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Deus na Natureza ~


~ a 
origem dos seres ~
(II de III)

 Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na Terra, não há ninguém com autoridade para declarar proscrita a acção do Criador. Suponhamos que os primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar e que as variedades sucessivas fossem como que a árvore das espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros pais de cada família tivessem despertado à voz de comando de um grande mágico e, teremos, que estas conjecturas não afectam, de todo, a base da Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem trazidas de outros mundos nas asas de qualquer mensageiro celeste. Quanto à formação ou transformação das espécies, não é por sua vez melhor conhecida que a origem da vida, qual o confessa Charles Lyell: “O que sabemos da Paleontologia (i) não é nada em comparação com o que falta aprender.”

  Examinemos, agora, com este geólogo eminente (ii), quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint-Hilaire acerca da progressão e transformação das espécies. Os homens superficiais facilmente imaginam que a Ciência está organizada com regras absolutas e nenhuma dificuldade encontra na sua marcha ascendente. Nada menos exacto. Nem mesmo as grandes definições têm carácter absoluto. Os zoólogos, por exemplo, não se entendem sobre os vocábulos, espécie e raça. Sucedeu o que Lamarck predissera – disse Lyell –: quanto mais se multiplicam as novas formas, menos nos capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espécie. De facto, zoólogos e botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca para definir a espécie, como também para certificar se ela realmente existe na Natureza, ou se não passa de simples abstracção da inteligência humana. Pretendem uns que ela seja constante dentro de certos limites de variabilidade, restritos e intransponíveis; querem-na outros susceptível de modificações indefinidas e ilimitadas. Desde os tempos de Linnaeus até ao começo deste século, acreditava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:

  “A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se de seres a eles semelhantes”.

 Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas, enquanto que outras não passavam de variedades, aditou o factor tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condições de vida não experimentem alterações capazes de lhes variar os hábitos, caracteres e formas.” Finalmente, chega ele a concluir que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar existe da criação primordial, sendo todos derivados de formas preexistentes, as quais, depois de se terem reproduzido, por séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, experimentado variações graduais e consequentes a mudanças de clima e do reino animal, adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora considerados novas espécies.

  Em apoio dessa opinião apresenta o contraste das plantas agrestes com as cultivadas, dos animais selvagens com os domésticos, a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a estrutura, os caracteres fisiológicos e até os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência da alimentação e do regime de vida diferentes.

  Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente submetidas a alterações, passando de um a outro período, mas, também, que houvesse um progresso constante do mundo orgânico, desde os primitivos aos tempos modernos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligência às maiores expressões do racionalismo humano. Para ele, o aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos organicamente mais evoluídos. Um professor da Universidade de Cambridge (i) deu-nos um resumo conciso e racional desta teoria (iii).

  “Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre – diz ele – o traço de uma progressão na organização das formas viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de mamíferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em grande parte de géneros desconhecidos) encontram-se bastante espalhados em todas as velhas camadas terciárias e abundam (frequentemente com formas genéricas conhecidas) nas partes superiores da mesma série; e, por fim, temos que a aparição do homem na superfície do solo é um facto recente.”

  Esse desenvolvimento histórico, das formas e funções da vida orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indiciar uma evolução gradativa da energia criadora, a manifestar-se por uma tendência progressiva para o tipo mais elevado da organização animal.

  Hugh Miller (iv) também nota o facto extraordinário de ser a ordem adoptada por Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as quatro classes de vertebrados segundo as suas relações mútuas e categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O cérebro, cujo volume em relação ao da medula está na razão de dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relação média de dois e meio por um, ou seja, o réptil. Em seguida, vem a relação de três por um, que é a das aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos. Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte e três por um, o cérebro do homem, que raciocina e calcula.

  O cérebro poderia não ser mais que uma florescência da espinal medula. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a faculdade de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem dúvida, podem fazer-se sérias objecções à doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e animais menos perfeitos e surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o embrião monocotiledóneo e os vegetais endógenos, depois do embrião monocotiledóneo e dos vegetais exógenos (o das coníferas de caule glanduloso), bem como a perfeição das mais antigas criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos répteis, o aparecimento da boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a nossa tese da presença de “Deus na Natureza”, contudo, simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado actual da Ciência, como hipótese indispensável, que, embora destinada a sofrer de futuro muitas e grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente aniquilada.

  Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais firmes sustentáculos da transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo) guardem singular reserva quanto à progressão e, que os maiores apologistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser verdadeiras e conciliarem-se essas duas teorias? Uma e a outra representam-nos em definitivo os tipos de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do peixe, a mais simples forma, para os mamíferos placentários, até chegar ao último elo da série, aos mamíferos antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau afigura-se, portanto, nesta hipótese, uma parte integrante da mesma série contínua de actos desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra, por isso que entra na mesma e única série das manifestações da potência criadora.

  Passemos agora à teoria da origem das espécies por meio da selecção natural.

  Esta teoria apresenta-nos grosso modo a acção da Natureza, observada na criação e educação dos animais domésticos. Sabem os criadores de animais que é possível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a Natureza, alterando no curso das eras as condições da vida, os traços geográficos de um país, o seu clima, a associação de animais e plantas e, por consequência, a alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas variedades mais bem adaptáveis à nova ordem das coisas. Desse modo, podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo original de sua ascendência.

  Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa procede de uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores cada vez mais altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjecturar que, na intercorrência de alguma calamidade sobreviveram os espécimes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem em sítios inacessíveis aos outros.

 Graças a ligeiras modificações, multiplicadas no curso de milhares de gerações e à transmissão, por hereditariedade, das aquisições novas, supõe-se uma divergência cada vez maior do tipo primitivo, até resultar numa nova espécie, ou num novo género, se mais longo o tempo decorrido. O autor dessa explicação fisiológica da origem das espécies, Sr. Charles Darwin, expõe ele próprio (v), como se segue, os factos gerais em que se baseia.

 Na domesticidade, constata-se uma grande variabilidade, que parece devida ao facto de ser o sistema reprodutor muitíssimo sensível às mudanças de condições de vida, deixando de reproduzir exactamente a forma matriz. A variabilidade das formas específicas é governada por um certo número de leis muito complexas, tais como a utilização ou a falta de exercício dos órgãos e a acção directa das condições físicas da vida. As nossas espécies domésticas sofreram modificações profundas, que se transmitiram por hereditariedade, durante períodos muito longos. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas condições de vida por períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma modificação já adquirida durante uma série quase infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a variabilidade, uma vez começando a manifestar-se, não cessa totalmente de operar, uma vez que novas variedades ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas mais antigas.

 Não é, porém, o homem que produz a variabilidade. Ele apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a novas condições de vida. Então, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas variedades e as acumular na direcção que nos aprouver. Assim, adaptamos animais ou plantas às nossas conveniências e até aos nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente e mesmo sem objectivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os indivíduos que, num dado tempo, lhe são os mais úteis. Certo é que se podem transformar os caracteres de uma espécie escolhendo-se de cada geração sucessiva as diferenças individuais; e esse processo selectivo foi o agente principal de produção das raças domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios que actuaram com tanta eficácia, no estado de domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de natureza. A conservação das raças e dos indivíduos favorecidos na luta perpétuamente renovada pelo meio ambiente, é factor poderosíssimo e, sempre activo, de selecção natural.

  A concorrência vital é uma consequência necessária da multiplicação, em razão geométrica mais ou menos elevada, de todos os seres organizados. A rapidez dessa progressão está provada não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de muitos animais e plantas durante uma série de estações particulares, ou quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.

  Um grão na balança pode determinar a variedade que deve crescer e a que tenha de diminuir. Como os indivíduos da mesma espécie são os que mais concorrem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra, mais severa. Ela é-o quase tanto entre as variedades da mesma espécie e, grave, ainda, entre as espécies do mesmo género. Mas a luta também pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma melhor adaptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante aperfeiçoamento, enfim, fará pender o prato da balança.

  Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá guerra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com maior êxito contra as condições físicas ambientais, hão de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou da sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória.

 Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo nas suas relações vitais possam ser conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher as variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a Natureza de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis da existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda a organização e os hábitos de cada criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o inútil? Parece não haver nenhum limite a esse poder, cujo efeito é a adaptação lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida.

 Cada espécie, dada a progressão geométrica de reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente e, multiplicando-se os descendentes modificados de cada espécie, tanto mais quanto se diversificam, nos hábitos e na estrutura, a lei de selecção natural apresenta, por sua vez, uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer espécie.

 Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas modificações, as mais leves diferenças características das variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças que caracterizam espécies do mesmo género. Variedades novas e mais perfeitas suplantarão e exterminarão inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais distintas.

  Pode objectar-se que no presente ninguém percebe tais mudanças.

  O teórico responde, porém, que, operando a selecção natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie tivesse sido criada independentemente.

  O testemunho geológico apoia a teoria da descendência modificada. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenário do mundo e, a soma das mudanças efectuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies, que representou papel tão importante na história do mundo orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de selecção natural, pois as formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies isoladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a cadeia das gerações regulares. A extensão gradual das formas dominantes e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem, depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da vida tivessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O carácter intermediário dos fósseis de cada formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela posição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande facto constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos actuais, integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários, atesta o parentesco e a descendência originais.

  O autor invoca também em seu apoio a importância única dos caracteres embriológicos, observando que as afinidades reais dos seres organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de origem. O sistema natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o auxílio de caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância vital.

  Não despreza ele, tampouco, a analogia. A disposição dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória da tartaruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço da girafa e do elefante. Estes e outros factos semelhantes explicam-se por si mesmos na teoria da descendência lenta e sucessivamente modificada. A identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes aos primitivos antepassados de cada classe.

  A falta de exercício, às vezes auxiliada pela selecção natural, tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mudança de hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil.

  Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares.

  Pode, enfim, perguntar-se até onde se estende a doutrina da modificação das espécies.

 Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos laços de afinidade e igualmente classificados, em virtude dos mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin não pode duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos, pelo menos e, o reino vegetal de um número igual ou mesmo inferior.

  A analogia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um protótipo único; mas, que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afectados por influências nocivas.

  Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos conhecimentos actuais, a vesícula germinativa é uma só. De sorte que, cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem.

  Mesmo que consideremos as duas principais divisões do mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz pronunciados, ao ponto de divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio da selecção natural com divergência de caracteres, torna-se crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única. Tal consequência porém, funda-se principalmente na analogia e pouco importa seja ou não aceite. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como os articulados, os vertebrados, etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendência única (vi).

  Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.

  Se, enfim, a nossa legítima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de admiração e tristeza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido. Indubitavelmente, a nossa dignidade se sente ofendida diante da só possibilidade de uma tal jerarquiamas, se observarmos a Natureza, sem ideias preconcebidas, não parece que façamos excepção à lei geral? Muitos de nós preferem descender de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza não nos consultou a respeito.

  Pelo que nos toca, nunca dedicamos escassas horas ao estudo da Embriologia, que não ficássemos muito impressionados com as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio rudimentar das fases correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores.

  Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado, do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão representa uma imagem das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de se surpreender com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado longínquo?

  Não se ousa encarar de frente essa origem e, contudo, a questão é deveras importante para merecer um ímpeto de coragem. Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continuará a mostrar-nos um governo intelectual na marcha ascendente da Criação.

   A hipótese zoológica que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem anti-espiritualista. Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilizar o Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito de grandes prevenções, favoráveis à superioridade dos nossos primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes abastardados. De resto, não compreenderíamos como sábios dignos desse nome pudessem afagar o prazer pueril de fazer graça com o Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé.

  Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra nas classificações da História Natural. Pela sua perfectibilidade, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência racional, pelas suas faculdades espirituais, em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. O seu espírito não incide nos domínios do escalpelo. O seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu carácter intelectual. Descenda, pois, de uma ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afecta a alma. O mundo da inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que interferimos na filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela ciência zoológica. Se o nosso berço terrestre tivesse sido a manjedoura do estábulo rústico, qual o de Jesus de Nazaré, nem por isso a nossa vida e a nossa missão seriam menos santas e altaneiras. A superioridade está nas nossas faculdades intelectuais.

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(ii) Charles Lyell – The Antiquity of Man... A ancianidade do homem provada pela Geologia e anotações sobre a origem das espécies, por variação.
(iii) Professor Sedgwick – Discurse on the Studies of the University of Cambridge, 1850.
(iv) Edinburgh – Footprints of the Creator, 1849.
(v) On the Origine of Species by the mean of natural selection.
(vi) O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorosa a acepção do termo “paternidade” única, por um só indivíduo, ou casal único. “Mais incrível, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado comum e arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar que subsistisse um? Se um tal indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Nada impede admitir tenha tido esta matriz universal, numa de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes? Ou deveremos crer lhe tivessem estes desabrochado do seu seio? Todas as analogias levam antes a supor a Terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes, sem dúvida semelhantes. Células germinativas, nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais. Evidentemente, um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se formassem sucessivamente todos os organismos. Se se admitir a simplicidade desses germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de desenvolvimento deveriam apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, nada há de surpreendente ao princípio vital repousando em estado latente em cada germe. As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares do nosso planeta, ao mesmo tempo que começasse a divergência dos tipos necessariamente adaptados à diversidade pouco profunda dessas condições. À medida que as raças se tivessem fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo tempo em que cada qual visse diminuir os seus representantes. A posteridade crescente de um certo número de árvores primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam na luta universal, por efeito da inferioridade orgânica relativa.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (II de III), 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)