Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 28 de maio de 2016

o grande desconhecido ~


amor e família em novos tempos |

Ninguém colocou melhor o problema da família do que Allan Kardec, pois não se apoiou apenas na pesquisa das aparências formais, mas penetrou na substância da questão, no plano das causas determinantes. Por isso nos oferece um esquema tríplice das formações da família do nosso tempo, a saber:

a) a família carnal, formada a partir dos clãs primitivos, evoluindo nas miscigenações raciais, através de inumeráveis conflitos ao longo das civilizações progressivas, na fermentação dialéctica do amor e do ódio. Os grupos assim formados subdividem-se, nas reencarnações progressivas, em inumeráveis subgrupos, que também crescerão e se subdividirão na temporalidade, ou seja, na imensa esteira do tempo, que, segundo Heideggeracolhe o espírito. São essas as famílias consanguíneas, que se desfazem com a morte.

b) a família mista, carnal e espiritual, em que os conflitos do amor e do ódio entram em processo de solução, nos reajustamentos das lutas e experiências comuns, definindo-se e ampliando-se as afinidades espirituais entre diversos grupos, absorvendo elementos de outras famílias, nas coordenadas da evolução colectiva. O condicionamento da família, nas relações endógenas e necessárias da vivência em comum, quebra a pouco e pouco as arestas do ódio e das antipatias, restabelecendo na medida do possível as relações simpáticas que se ampliarão no futuro. A desagregação provocada pela morte permitirá reajustes mais eficazes nas sucessivas reencarnações dos grupos.

c) a família espiritual, resultante de todos esses processos reencarnatórios, que aglutinará os espíritos afins no plano espiritual, nas comunidades dos espíritos superiores que se dedicam ao trabalho de assistência e orientação aos dois tipos de família anteriores, mesclando-as de elementos que nelas se reencarnam para modificá-las com o seu exemplo de amor e dedicação ao próximo. Essa família não perece, não se desfaz com a morte, crescendo constantemente para a formação de Humanidades Superiores. É fácil, usando-se as medidas da Escala Espírita em O Livro dos Espíritos, identificar nas famílias terrenas a presença de vários tipos descritos na referida escala, percebendo-se claramente as funções que exercem no processo evolutivo em família.

A concepção espírita da família, como se vê, é muito mais complexa e de importância muito maior que a das religiões cristãs, que conferem eternidade e inviolabilidade ao sacramento do matrimónio, mas não podem impedir que, na morte, o marido vá parar às garras do Diabo, a esposa estagiar no Purgatório e os filhos inocentes curtir a sua orfandade nos jardins do céu. A concepção jurídica e terrena da família não vai além dos interesses materiais de uma existência. O mesmo se dá com a concepção sociológica, que faz da família a base da sociedade, ambas perecíveis e transitórias. As pessoas que acusam o Espiritismo de aniquilar a família através da reencarnação revelam a mais completa ignorância da Doutrina ou o fazem por má-fé, na defesa de interesses religiosos-sectários.

A família nasce do amor e dele se alimenta. Não é apenas a base da sociedade, mas de toda a Humanidade. É na família que as gerações se encontram, transmitindo as suas experiências de uma para a outra. Combater a instituição da família, negar a sua necessidade e a sua eficácia no desenvolvimento dos povos e dos mundos é revelar miopia ou cegueira espiritual, na cultura ou desequilíbrio mental e psíquico, falta de ajustamento à realidade, esquizofrenia não raro catatónicaIsso é evidente no estado de alienação em que essa atitude se manifesta, em pessoas amargas ,ressentidas ou extremamente pretensiosas, que desejam mostrar-se originais. Em geral, são criaturas carentes de afectividade. Quando se desligam da família natural ligam-se a grupos de criaturas afins, engajam-se noutras famílias ou tornam-se misantropas destinadas à neurastenia ou à loucura. O instinto gregário da espécie é uma exigência da evolução humana, a que ninguém pode furtar-se sem pagar pelo seu egoísmo.

Os ideólogos da solidão individual esquecem-se de que todas as tentativas nesse sentido fracassaram ao longo da História. Esparta morreu de inanição por falta de relações da família, enquanto Atenas cresceu e se projectou num futuro glorioso, pela solidez de seu sistema da família. Roma caiu nas mãos dos bárbaros quando as suas famílias se entregaram à degeneração. Os próprios nómadas jamais dispensaram o seu sistema de famílias ambulantes. Anarquistas e socialistas delirantes, que sonhavam com sociedades anti-sociais, formadas de indivíduos avulso e dotadas de grandes depósitos de crianças avulsas – os filhos do Estado – morreram protegidos pelo carinho dos familiares. Robinson Crusoe é a imagem do homem arrebatado ao seu meio, sem perspectivas. Sartre, que rompeu com a tradição da família e demonstrou os inconvenientes da convivência, fazendo uma tentativa de misantropia estóica, nunca dispensou a companhia de Simone de Beauvoir e o cosmopolitismo parisiense, formulou o célebre veredicto: Os outros são o inferno, mas jamais os dispensou. Escrevia no Café de Fiori e quando visitou a URSS exigiu a inclusão no programa oficial de horas de solidão absoluta, mas nessas horas se ralava inquieto, segundo o testemunho de Simone. O homem é relação e a família é o meio de relação em que ele absorve a seiva humana que o faz homem.

Não há interesse maior para a criatura humana no mundo que o seu semelhante, porque é nele que nos realizamos.

Uma paisagem solitária é um motivo edénico de contemplação, e quando alguém aparece, como Sartre observou, imediatamente nos tira a liberdade e nos transforma em objecto. Mas o próprio acto de objectivar-nos permite-nos recuperar a nossa subjectividade dispersada na paisagem. Essa dinâmica de projecção e retroacção revela ao mesmo tempo a natureza dialéctica do ser, estável no somático e instável na psique. Dessa dialéctica resulta a síntese total da consciência estética, em que o real objectivo e o irreal subjectivo se fundem na percepção estética do amor.

Por isso, no Espiritismo o amor não é instinto (necessidade orgânica) nem desejo ou simples fazer sexual (sensorialidade) mas a aspiração suprema de beleza e espiritualidade nas perspectivas da transcendência. A superação de objectivo e subjectivo se resolve na globalidade do Amor. Por isso o Apóstolo João, no seu Evangelho, define o Ser Supremo na conhecida frase: Deus é Amor. As definições da Filosofia como Amor da Sabedoria (Pitágoras) e Sabedoria do Amor (Platão) revelam a intuição, já na Antiguidade, dessa total globalidade do Amor que o Espiritismo viria a explicar mais tarde. O desenvolvimento dessa globalidade processa-se na família, em que a afectividade desabrocha para a posterior floração do Amor no processo existencial. As famílias a e b da teoria kardeciana, que explicitamos no nosso esquema, preparam o ser, projectado na existência, para a odisseia das almas viajoras de Plotino, que vão subir e descer pela escada de Jacob nas reencarnações sucessivas, em busca do arquétipo da família e, em que as famílias desse padrão superior se integrarão progressivamente no plano divino das humanidades espirituais que constituirão no Infinito a Humanidade Cósmica. Essa a razão por que René Hubert, filósofo e pedagogo francês contemporâneo, sustenta que os fins da Educação consistem no estabelecimento, na Terra, da República dos Espíritos, através da Solidariedade de consciências.

A Educação em Família é o germe afectivo e puro de que decorre todo o processo educacional do homem. Com o amparo da família, na solidariedade doméstica do lar, por mais obscuro e humilde, é que se realiza a fotossíntese inicial da atmosfera de solidariedade e amor das gerações que modelam o futuro. Cabe aos espíritas implantar na Terra uma nova Educação, com base nos dados da pesquisa espírita e segundo o esquema da Pedagogia Espírita. Essa Pedagogia, iniciada por Hubert (que não é espírita) fundamenta-se nos princípios doutrinários do Espiritismo e destina-se a preparar as novas gerações para a Era Cósmica que se aproxima. Os professores espíritas de todos os graus do ensino têm um dever supremo a cumprir, nesta fase de transição do nosso planeta: procurar compreender os princípios educacionais do Espiritismo e trabalhar pelo desenvolvimento da Educação Espírita.

Estamos a entrar na Era Cósmica, numa sequência natural do desenvolvimento da Era Tecnológica, tudo se encadeia no Universo, como assinala O Livro dos Espíritos. Com o avanço científico e técnico dos últimos séculos, e particularmente do nosso, a Terra amadureceu para a conquista do espaço sideral. O impacto dos nossos primeiros contactos com outros mundos já produziu profundas modificações, de que ainda não demos conta, em mundividência. As pesquisas espaciais continuam, ampliando a nossa visão da realidade cósmica. Uma nova civilização está a surgir aos nossos olhos, debaixo dos nossos pés e sobre as nossas cabeças. Mas para que isso aconteça, sem perdermos de todo o equilíbrio cultural, já bastante abalado, temos de cuidar seriamente da renovação dos nossos instrumentos culturais básicos, a saber:

a) a Economia, que deve tornar-se universal, rompendo os diques e as barreiras de um mundo pulverizado, para lhe dar a unidade necessária e a flexibilidade possível para o atendimento dos povos e de suas camadas diversificadas, afastando do planeta os privilégios e os desperdícios, a penúria e a fome. A civilização humana e perfeita, ensina O Livro dos Espíritos, é aquela em que ninguém morre de fome. A duras penas, a nova mentalidade económica já está definindo-se em todas as nações civilizadas, mas o egoísmo das camadas privilegiadas ainda impede a compreensão das exigências de fraternidade e humanismo dos novos tempos.

b) a Moral, que tem de romper os seus padrões envelhecidos de egoísmo e sociocentrismo, moldados em preconceitos de vaidadeambição e prepotência, para elevar-se a novos padrões de humanismo, respeito por todos os direitos humanos, até hoje sempre espezinhados na Terra dos Homens, essa expressão de Saint-Exupéry que é um novo chamado à nossa consciência em termos evangélicos. Altruísmo – interesse pelos outros humildade, fraternidade, tolerância e compreensão, amor, são essas as novas palavras de uma moral realmente cristã. A violência terá de ser expulsa da Terra dos Homens, com o seu cortejo de brutalidadesÉ necessário que o conceito de não-violência se transforme na marca do homem, no signo que o distingue do bruto, do primata inconsciente. A honra e a dignidade humanas são incompatíveis com a estupidez dos broncos, inadmissíveis num sistema de civilização. Como adverte Fredric Wertham, a violência é um cancro social, que corrói e destrói toda a estrutura de uma civilização. O homem verdadeiramente homem deve ter vergonha e horror da violência. Ser violento é ser amoral, pois quem não respeita os outros não respeita a si mesmo.

c) a Educação, que tem de renovar os seus conceitos básicos sobre o seu objecto, o educando. Em primeiro lugar a educação em família, que deve basear-se na afectividade, nas relações de amor e compreensão entre pais e filhos. Educação com violência é domesticação. O mundo da criança não é o mesmo do adulto e este tem de descer a esse mundo, voltar à sua própria infância para não esmagar a infância dos filhos. As pesquisas entre os povos selvagens mostraram que a essência da educação é o amorSem amor não se educa, deforma-se. Nos povos selvagens a educação não foi deformada pela ideia do pecado, pelo mito da queda do homem, que envolvera o mundo de violências redentoras capazes de aterrorizar um brutamontes, quanto mais uma criança. Kardec ensina que a criança, embora tenha o seu passado em geral lamentável, nasce vestida com a roupagem da inocência para tocar ocoração dos pais e despertar-lhes o amor e a ternura, de que ela necessita para o desenvolvimento das suas potencialidades humanasSe fazemos o contrário, despertamos na criança o seu passado de erros e depois a condenamos pelos seus instintos. Essa tese kardeciana é hoje dominante nos meios pedagógicos. Como dizia Gandhi, não se pode levar uma criatura ao bem pelos caminhos do mal. Os povos selvagens são mais civilizados que os povos civilizados, no tocante a esse problema, pois intuem com pureza e ingenuidade o verdadeiro sentido da educação. Educar é um acto de amor, diz Kerschensteiner nos nossos dias, endossando o pensamento de todos os grandes pedagogos e educadores da Grécia antiga e do mundo moderno, a partir de Rousseau.

Mas a Educação Espírita tem ainda uma função essencial a desenvolver: o desenvolvimento das faculdades paranormais do educando, preparando-o para as actividades cósmicas da nova era. O Espiritismo foi o revelador dessas faculdades humanas que o passado confundiu com manifestações doentias ou sobrenaturais. O Espiritismo foi a primeira Ciência a mostrar experimentalmente esse engano fatal, de que resultou para a Humanidade terríveis tragédias. Cento e trinta anos antes das descobertas parapsicológicas nesse sentido, a Ciência Espírita demonstrou que as funções anímicas e psico-anímicas da criatura humana eram normais, pertenciam à própria natureza do homem. As pesquisas actuais no Cosmos revelaram que o desenvolvimento das faculdades psi é indispensável ao bom êxito das incursões no espaço sideral. A Educação Espírita é a única que pode enfrentar essas exigências dos novos tempos, cuidando do desenvolvimento dessas faculdades de maneira racional, sem os prejuízos dos falsos conceitos e dos temores infundados das formas de educação religiosas e leigas do nosso tempo.

Cabe assim ao Espiritismo renovar totalmente a cultura actual, reestruturar a Civilização Tecnológica nos rumos da Civilização do Espírito. Esse o fardo leve do Cristo que pesa sobre a consciência de todos os espíritas verdadeiros, nesta hora do mundo, e particularmente sobre a consciência dos educadores espíritas. Nessa civilização o amor não será fonte de decepções, desajustes e tragédias. A Família não se estruturará em preconceitos provindos dos tempos de barbárie, mas na moral evangélica pura, feita de amor e respeito pelas exigências da vida. O amor verdadeiro e espontâneo, puro como água da fonte, livre de interesses secundários, fará da família a fonte de amor que elevará a Terra na Escala dos Mundos. Isto não é sonho nem profecia, é o programa espírita para o Mundo de Amanhã, e que cabe aos espíritas realizar a partir de hoje, sem perda de tempo.

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 5 Amor e Família em Novos Tempos, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 17 de maio de 2016

~~~Párias em Redenção~~~


SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~
(II)

  Casquinada aparvalhante explodiu no perseguidor e Girólamo despertou de súbito, atónito, saindo a correr, cambaleante pelas forças debilitadas, até ao leito, no qual se arrojou, amolentado.

  As lutas do enfermo prosseguiram em ritmo de dor, embora o desvelo da esposa e dos servos. Paulatinamente diminuíram as agressões obsidentes e, transcorrido um mês, voltara-lhe a cor da face e as melhoras pareciam prenunciar a cura total.

  Interiormente, porém, o moço experimentava crescente pavor. Os movimentos inusitados surpreendiam-no dolorosamente e qualquer intromissão não anunciada fazia-o explodir de ira. Percebia-se-lhe o desgoverno dos nervos. Acordava a gritar, debatendo-se, agónico, com muita constância. Todos lhe notavam o carácter mau – dado que, anteriormente, escondia os sentimentos na polidez –, revelando-se insuportável amo e péssima companhia. Inutilmente, Beatriz o cercava de carinhos. Repelia-a muitas vezes, fazendo-a receá-lo.

  As atitudes desencontradas e que ele dava mostras intimidavam-na. Não poucas vezes, envolvido pela lubricidade, era fascinante e sabia conquistá-la; todavia, no interlúdio, fazia-se acerbo e a afastava, grosseiro, como se estivesse nas raias da loucura. Logo depois, recuperava-se e tornava, desculpando-se, dizendo-se perturbado, enfermo. A jovem Condessa mandara notificar os pais, solicitando providências, na dura situação em que se encontrava.

  Nos dias do Outono agradável, enquanto os agregados e servos colhiam uvas para prepararem os capitosos vinhos, os ventos chegavam anunciando a mudança da temperatura e as velhas árvores se descoloriam, deixando-se carregar pelas lufadas contínuas, nas quais perdiam as folhas queimadas, o nobre saía a cavalo, galopando, revendo as terras da propriedade, alvitrando ordens, sugerindo modificações. Sempre, porém, aconteciam cenas pungentes entre ele e os empregados ou os aldeães que trabalhavam nas vinhas. Retornava colérico, grosseiro, intragável. Em outras oportunidades, quedavam-se horas de silêncio, introvertido…

  Atendendo ao apelo da filha, os Condes Castaldi vieram de Siena, trazendo o médico e Carlo, para uma ligeira estada no Solar di Bicci.

  A alegria experimentada com a presença dos sogros se esfumou quando Girólamo identificou, num dos acompanhantes, o adversário insuportável. Tinha-o já esquecido. Vendo-o, acudiram-lhe as lembranças contraditórias que situavam o florentino no palco de muitas das suas actuais aflições. Desejou expulsá-lo, mas, incontinenti, lembrou-se de que talvez ali pudesse solucionar o problema desagradável que, então, enfrentaria com destemor.

  Fazendo-se cortês quanto lhe permitia o estado de saúde, convidou os familiares e o médico a entrarem e, as horas sucederam-se aprazíveis, amenas.

  Carlo, exultante pelo ensejo e febricitado pelas expectativas, tão impiedoso quanto o contendor, fez-se conquistar pelos servos e cavalariços da herdade, interessando-se por saber quais os fâmulos mais antigos, os que conheceram o duque e seus familiares, como se desejasse, afavelmente, conhecer o passado do clã. Não teve dificuldade em informar-se da veracidade da história, embora não houvesse mais ninguém que, contemporâneo à época da desgraça, ali se conservasse. Nas cercanias, é claro, moravam muitos aldeães que bendiziam a Senhora duquesa e ainda lhe choravam a morte, lamentando o horror que se abatera sobre o burgo, infelicitando quase todos. Veio, assim, posteriormente, a identificar de fora, do pátio, a parte superior da recâmara em que Lúcia e as crianças tiveram a vida ceifada, sem que os seus gritos abafados houvessem ecoado pelas várias janelas que espiam para imensa entrada e o largo patamar.

  Mal se instalou, a Condessa de Castaldi convidou a filha a um exame da situação em que se encontrava o seu jovem marido. A inexperiente senhora, sem esconder a aflição que lhe dominava o íntimo, narrou:

  – Tenho fortes razões para duvidar do juízo de Girólamo. Desde que retornamos de Siena, apesar de vê-lo recuperar-se fisicamente, contrista-me constatar que ele perde a razão a cada dia que passa. Embora não seja dotado de um carácter generoso, sempre soube portar-se como cavalheiro. Progressivamente, vem sofrendo de irascibilidade, tornando-se genioso e perverso. Nesses momentos, transfigura-se e uma expressão de alucinado toma-lhe o belo rosto, deformando-o. Investe, então, furioso, contra tudo e todos… Já não é o mesmo esposo, tendo deixado há longo tempo de cumprir com os seus deveres conjugais… O que antes eu acreditava fosse consequência da enfermidade verifico, apavorada, tornando-se uma obsessão tormentosa. As alternâncias do seu temperamento chocam-me, e estou, também, por arrebentar as peias da convenção e do respeito que lhe tenho. Chego a temer que nos estados que assume ele não trepidaria em agredir-me…

  – Concordo, então, quanto à gravidade do caso, – alvitrou a genitota. – Não há razão, porém, para alarme, por enquanto. Estamos com o Dr. Michele e, depois que ele seja convenientemente tratado, tudo se normalizará.

  – Não me parece fácil, mamãe, – considerou a jovem. – Um mau presságio me aflige nos últimos tempos. Pelos dias do palio, enquanto o meu marido estava viajando – e eu ignorava que ele estivesse em Siena –, fui sacudida por inusitada aflição, como se as sombras que vivem na Morte rondassem o meu lar, ameaçando-nos a paz… Receei enlouquecer…

  – Filha, que disparates são esses? – interveio a mãe. – Se o teu confessor for informado dessas ideias, que pensará de ti e da nossa família? Certamente andas a ouvir as superstições dessas gentes…

  – Não é verdade, mamãe, – acudiu, pressurosa –, estou no meu perfeito juízo e, por isso mesmo, são grandes os meus receios… Este solar me desagrada. Nunca me atrevi a contar a qualquer pessoa o que acontece. Agora…

  – Estás, também, doente, minha filha, – interrompeu a Condessa, com preocupação. – O clima deve estar fazendo-te mal.

  – Ouça-me, antes, mamãe – rogou a jovem atribulada –, para compreender com maior segurança. Aos primeiros dias da minha ventura conjugal, fosse porque estivesse inebriada, parecia-me viver a verdadeira felicidade. Paulatinamente, porém, comecei a notar que os servos evitavam a ala onde aconteceu a tragédia. Interrogando Margherita e impondo-lhe ordens, ela narrou-me que os servos e aias domésticos escutavam sons estranhos: gargalhadas, gritos, e imprecações provindas da peça onde culminou o funesto acontecimento. Fiquei estarrecida, porque eu também tinha a desagradável sensação de perceber esses estranhos movimentos. A princípio, atribuía ao vento ou a ruídos de fora os estranhos sons, porém, acurando a observação, constatei que procediam da recâmara nefasta…

   – Estás impressionada, filha querida, – intercedeu a ouvinte. – Lamentavelmente, esses aldeães são muito ignorantes e supersticiosos, vivendo em experiências de magias incomodando os mortos, que estão muito bem mortos. Estranho-te com esses pensamentos.

  – Também eu me estranho, – concordou, ensimesmada, a jovem, reflectindo em torno das ocorrências afligentes que de forma desconcertante seguiam curso no solar –, porém, estou segura de que alguém aqui está a perseguir-nos e tenho a certeza de que a doença de Girólamo “não é de Deus”… (i) Vejo-o desvairar, possesso, assumindo personalidade estranha: gargalha, estertora, apavora-se, como se desejasse fugir, sem poder… Desperta a gritar, segurando a garganta como se estivesse a esganar-se. Há algo, minha mãe, e eu temo.

  A moça estava pálida. As mãos tremiam e o choro estava por arrebentar as comportas dos olhos e explodir abundante.

  Buscando acalmá-la, a genitora tomou-a nos braços e perguntou:

  – Tens orado, minha filha? Não achas que necessitas de ouvir um confessor para que ele te ajude e liberte dessas impressões?

  – Não são impressões pueris e enganosas como possam parecer. Estou segura da existência dos mortos rondando esta casa, que foi palco de insucessos pavorosos. Você não ignora que na Toscana é popular o dito: “Os que morrem assassinados ficam vagando e afligindo-se até se libertarem da desgraça que os consome.” (ii) Eu creio firmemente que os assassinados aqui, aqui continuam.

  – Se prossegues com essas ideias… – revidou a genitora, segurando-lhe as mãos. – Estás gelada, minha filha! Que se passa nesta casa, Deus meu!?

  – Calma, mamãe! Ouça-me até ao fim. Às vésperas do palio, conforme eu lhe dizia, subitamente senti-me mal. Encontrava-me na açoteia, fitando ao longe, quando escutei blasfémias e objurgatórias azedas de alguém que me odiava, expulsando-me daqui. Gritei pela minha aia e ambas rezamos o terço, advindo muita serenidade, logo após. Você sabe da minha contrição e confiança em São Francisco e a ele roguei por mim e pelo meu lar. Senti, então, uma como aragem de paz e, conquanto abalada, fui conduzida ao leito e dormi. Logo após, sonhei com a Senhora duquesa: vi-a nitidamente, expressando a face da Madonna. Havia no seu belo semblante indefinível tristeza. Ela falou-me. No momento, eu a escutei e entendi; logo, porém, dissipou-se tudo na minha memória. Não a esqueci mais; e embora a angústia que me constringe, experimento, também, uma presença subtil como se ela, que é muito amada pelos que vivem neste burgo, estivesse a proteger-me, em nome de São Francisco. Será isso possível?

  – Não tenho dúvidas, – redarguiu, então, com tino, a senhora. – Inteirando-se das desgraças que aqui se consumaram há quase um decénio, teu pai, que era amigo do duque, foi informado de que a duquesa era para essas gentes locais um verdadeiro anjo de bondade. Muito voltada para Deus, como tu mesma, era devota do Povarello, a quem amava com extremos de arrebatamento. Com certa regularidade, o marido a conduzia à Úmbria e de todos era sabido o amor que se nutriam reciprocamente. Desde que ela morreu, ele não mais fruiu qualquer felicidade.

  – E Assunta, mamãe? – interpelou a jovem Cherubini. – você ouviu falar alguma vez dessa mulher?

  – Não, filha, nunca.

  – Essa mulher servia a casa, na época dos acontecimentos. Originária de Chiusi, descendia dos antigos etruscos. Após os fúnebres sucessos, desapareceu, rumando a Florença e de lá sumiu definitivamente. Os servos receberam a visita de um irmão seu, que veio procurar meu marido para inteirar-se do que acontecera, como se Girólamo soubesse de alguma coisa… Por ignota força, parece-me sabê-la envolvida na desgraça…

  – Deixa o passado e pensa no presente. Necessitas esquecer tudo isso para pensar na saúde do teu esposo.

  – Reconheço; no entanto, uma coisa esclarece a outra.

  – Todavia, isso perturba-te, sem levar-nos a lugar nenhum. É melhor esquecer o que não se pode rectificar e viver o que se pode e deve gozar.

  Ficou, então, concertado que Girólamo necessitava de muita assistência do médico e que deveriam passar uma larga temporada em Siena, especialmente naquela quadra do ano, já se fazia propícia às chuvas.

/…

(i) Expressão com que as pessoas mal informadas sobre os problemas espirituais e mediúnicos referindo-se às obsessões, fazendo conexões com velhas objuratórias da ignorância religiosa do passado.
(ii) “Quelli che muotono assassinati restano vegando e affliggendosi fino alia liberazione della loro disgrazia che li consuma.”


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (2 de 3) 30º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

terça-feira, 10 de maio de 2016

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – A Terra ~

  Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do universo sideral e da inteligência da mecânica celeste, por demonstrar o ascendente da força sobre a matéria, podem colher ao exame dos corpos terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a minudência do infinitamente pequeno. A força rege identicamente os movimentos atómicos e as órbitas imensas das esferas siderais. Muda de objecto, muda de nome na classificação dos homens, mas não deixa de ser sempre a mesma força, isto é: a atracção universal. Chamam-lhe coesão, quando agrupa os átomos que constituem as moléculas e, gravitação, quando impulsiona os astros em torno do centro comum de sua gravidade. O nome humano não altera, porém, o facto físico.

  As moléculas, de constituição substancial, são formadas por uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em Química chamados simples. Cada molécula é um modelo de simetria e representa um tipo geométrico. Assim, por exemplo, a molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado é um sólido geométrico, regular, um heptaedro de base quadrada, composto de 7 átomos SH2O4Os corpos simples, para formar os compostos, não se podem combinar senão em números proporcionais, determinados e invariáveis. Sabemos que se designam sob o nome de equivalentes os números que exprimem quantidades ponderáveis dos diversos corpos susceptíveis de entrarem, elas ou os seus múltiplos, nas combinações químicas e aí se substituírem mutuamente, para formar compostos quimicamente análogos.

  Cem partes de oxigénio, em peso, combinam-se, por exemplo, com 12,50 de hidrogénio, para formar a água. Esta será sempre, sempre composta nessa proporção e ninguém poderá, absolutamente, juntar à combinação da molécula de água uma partícula a mais de qualquer dos componentes. A água formada pela combustão de uma chama é, identicamente, a mesma das fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxigénio se combinarão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro. Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é forçada a obedecer. A Natureza tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo, como se dizia outrora. E não só esses equivalentes representam numericamente todas as combinações de corpos com o oxigénio, como todas as desses corpos entre si; de modo que, no nosso exemplo, se o ferro se combinar com o hidrogénio, será sempre na proporção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente do hidrogénio). De resto, todas essas combinações obedecem a regras geométricas e a cristalização dos corpos pode sempre ser levada a um dos seis tipos fundamentais: – o cubo, os dois prismas rectos, o rombóide e os dois prismas oblíquos.

  Para explicar não apenas as combinações, mas também todos os movimentos múltiplos que se operam nas transformações incessantes da matéria, nos fenómenos de contracção e dilatação, na manifestação das diversas propriedades dos corpos, admite-se que os átomos não se tocam, ainda nos corpos mais densos e mais sólidos, que estão isolados entre si e que, em razão de sua pequenez, os intervalos que os permeiam guardam a relatividade, proporcionalmente exacta, com os dos corpos celestes. Finalmente, assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidárioassim também os átomos oscilam em torno de sua respectiva posição, sem se afastarem dos limites regulados pela coesão ou pela afinidade molecular. Entre o mundo das estrelas e dos átomos não há diferença essencial. Engrossai esse cristal, essa simples molécula, suponde-a que desenvolvendo-se a ponto de atingir o volume do sistema planetário e mais – de uma nebulosa, e tereis um verdadeiro sistema, com as suas forças e movimentos. Se, ao contrário, supuserdes que o sistema planetário se contrai, que todas as distâncias se encurtam, que todos os corpos que o integram diminuem e chegam, finalmente, às proporções de um agregado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso, as medidas expressivas do infinitamente grande, ou pequeno, estão em nós e não na Natureza, uma vez que tudo referimos a nós, como a um ponto de comparação. As noções de grandeza são puramente relativas.

  A Natureza não tem essa maneira de ver.

  Os fenómenos do calor, da luz, do som, do magnetismo, explicam-se por esta concepção dos movimentos atómicos. Sob a influência dessas forças exteriores, as moléculas se retraem ou se dilatam e modificam os seus movimentos, tal como fazem os mundos, precipitando o curso no periélio e retardando-o nas longínquas regiões do afélio. Quando, por um choque, produzimos vibrações num corpo sonoro, as suas moléculas agitam-se em cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses átomos são de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de átomos encerrados num minúsculo cubo de matéria orgânica do tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconcebível de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de 21 zeros. Suposto quiséssemos proceder à contagem, na proporção de 1.000 por segundo, haveríamos de viver duzentos e cinquenta mil anos para completá-la!

  Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for, a substância dos corpos é um pequeno mundo, um mundo analítico, no seio do qual o infinitamente pequeno é regulado por leis tão rigorosas quanto as do infinitamente grande, o sideral. Quando sabemos que uma polegada cúbica de trípole contém quarenta mil milhões de gálios fósseis; quando imaginamos que na classe dos infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo diâmetro não excede um milésimo de milímetro e que esses minúsculos seres se movem na água, ágeis, providos de aparelhos de locomoção, de músculos e de nervos; que se alimentam e possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem, combatem a presa nos abismos da gota de água, com velocidade e força comparáveis à de um cavalo a galope; quando consideramos, enfim, que esses pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos, já nos não custa crer que as moléculas de gelatina e albumina, que os constituem, são de uma tenuidade inimaginável e que os átomos componentes se integram sem metáfora na nossa ideia do infinitamente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram, são invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos em formação, das quais se encontram eles geometricamente associados, não mudam mais, ainda que passando de um ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres da Natureza e que a todos os encadeia sob o império de uma comunhão substancial, pela comunicação permanente das coisas entre si, da atmosfera com as plantas e todos os seres que respiram, das plantas com os animais, da água com todas as substâncias organizadas, pela nutrição e assimilação que perpetuam a cadeia das existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem, mudam de proprietário a cada instante, mas conservam essencialmente a sua natureza intrínseca. Reconhecemos, com os nossos adversários, que a molécula de ferro não varia, quer quando, incorporada ao meteorito, percorre o Universo, quer quando retine no trilho ou na roda do vagão, ou ainda quando, em glóbulo sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois, o habitáculo transitório das moléculas, elas conservam a sua natureza e propriedades essenciais. Os átomos são os infinitamente pequenos, sempre separados entre si e, todavia, encadeados por essa mesma força invisível que retém as esferas nas suas órbitas. Toda a matéria, orgânica ou inorgânica (visto ser idêntica) obedece primacialmente a essa força. As suas mínimas partículas são como astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos afigura pesada e densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que a avassala e rege o mineral, pesa os elementos, ordena as combinações, traça regras absolutas e, governando discricionariamente, faz dela uma escrava imbele, maleável e submissa às leis primígenas que consagram a estabilidade do mundo. É indubitável que os estados da matéria são regulados por leis. Já admirastes, alguma vez, os processos característicos da cristalização? Nunca examinastes ao microscópio a formação das estrelas de neve e das moléculas cristalinas de gelo? Nesse mundo invisível, como no universo visível, cada movimento, cada associação se efectua sob a direcção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas linhas e sucessões. Jamais as leis humanas lograram obediência tão absolutamente passiva.

  Nunca geómetra algum construiu figura tão perfeita qual a que naturalmente reveste a mais insignificante molécula.

  As leis da Natureza regem o movimento dos átomos nos seres vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporando-se segundo as leis que organizam todas as coisas.

  A molécula de ácido carbónico, a exalar-se do peito opresso do moribundo no seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do jardim, à relva do prado, ao tronco da floresta. A molécula de oxigénio que se desprende dos últimos ramos do anoso carvalho vai incorporar-se ao cabelinho louro do recém-nascido, no seu berço de sonhos. Nada podemos mudar na composição dos corpos. Nada nasce, nada morre. Só a forma é perecível. Só a substância é imortal. Constituímo-nos da poeira dos antepassados, os mesmíssimos átomos e moléculas.

 Nada se cria, nada se perde.

 Uma vela que ardeu completamente deixa de existir para os olhos vulgares e nem por isso deixará de existir integralmente. Se lhe recolhêssemos as substâncias consumidas, reconstitui la-íamos com o seu peso anterior. Os átomos viajam de um a outro ser, guiados pelas forças naturais. O acaso não colhe nessas combinações e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e radiante, subsiste em sua grandeza, esta potência peculiar à Terra é unicamente devida à previdência e rigor das leis que organizam essas transmigrações e etapas atómicas, de guarnição em guarnição. Se a organização militar da França se atribui a um concelho inteligente, parece-nos que a organização química dos seres, aliás muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um pensamento director.

  No entanto, o papel que a lei desempenha no Universo anda por aí relegado à categoria de fábula pelo autor da Resposta às Cartas de Liebig. Em sua opinião, o grande químico não tem motivos para dizer que foi a lei que tudo construiu. (i)

  A lei não passaria de uma ideia geral, induzida de caracteres sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois das experiências, seguir-se-ia que ela na realidade não existe!

  “Enquanto acreditarem que a lei fez o mundo, em vez de a considerarem como resultante dele e por ele iluminando-se, a inteligência humana dormirá nas trevas e a ideia há de antepor-se à experiência.

  Para exilar da Natureza o espírito, particularmente o espírito geométrico, é preciso recusar à evidência o papel representado pelo número e obstinar-se a não ouvir a universal harmonia profusamente espalhada nas obras criadas. A harmonia não é tão-só a fraseologia musical escrita em partituras e executada por instrumentos humanos; não consiste apenas nessas obras-primas a justo título admiradas e afloradas nos belos dias de inspiração, dos cérebros dos Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o Universo com os seus acordes. Antes de tudo, diga-se, a música propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, formada pelo número; cada som é uma série de vibrações em quantidade definida e as relações harmónicas dos sons não são mais do que relações numéricas. A gama é uma escala de cifras e os tons, maior e menor, são criados pelos números, assim como os acordes não passam, também eles, de uma combinação algébrica. Depois, como a provar a exclusiva soberania do número, vemos que todo o compositor há de obedecer ao compasso. Estas observações fundamentais, sugeridas pelo estudo do som, têm aplicação não menos valiosa no concernente à luz.

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(i) Chemische Briefe, página 32.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II, A Terra 1 de 3, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)