Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 17 de maio de 2016

~~~Párias em Redenção~~~


SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~
(II)

  Casquinada aparvalhante explodiu no perseguidor e Girólamo despertou de súbito, atónito, saindo a correr, cambaleante pelas forças debilitadas, até ao leito, no qual se arrojou, amolentado.

  As lutas do enfermo prosseguiram em ritmo de dor, embora o desvelo da esposa e dos servos. Paulatinamente diminuíram as agressões obsidentes e, transcorrido um mês, voltara-lhe a cor da face e as melhoras pareciam prenunciar a cura total.

  Interiormente, porém, o moço experimentava crescente pavor. Os movimentos inusitados surpreendiam-no dolorosamente e qualquer intromissão não anunciada fazia-o explodir de ira. Percebia-se-lhe o desgoverno dos nervos. Acordava a gritar, debatendo-se, agónico, com muita constância. Todos lhe notavam o carácter mau – dado que, anteriormente, escondia os sentimentos na polidez –, revelando-se insuportável amo e péssima companhia. Inutilmente, Beatriz o cercava de carinhos. Repelia-a muitas vezes, fazendo-a receá-lo.

  As atitudes desencontradas e que ele dava mostras intimidavam-na. Não poucas vezes, envolvido pela lubricidade, era fascinante e sabia conquistá-la; todavia, no interlúdio, fazia-se acerbo e a afastava, grosseiro, como se estivesse nas raias da loucura. Logo depois, recuperava-se e tornava, desculpando-se, dizendo-se perturbado, enfermo. A jovem Condessa mandara notificar os pais, solicitando providências, na dura situação em que se encontrava.

  Nos dias do Outono agradável, enquanto os agregados e servos colhiam uvas para prepararem os capitosos vinhos, os ventos chegavam anunciando a mudança da temperatura e as velhas árvores se descoloriam, deixando-se carregar pelas lufadas contínuas, nas quais perdiam as folhas queimadas, o nobre saía a cavalo, galopando, revendo as terras da propriedade, alvitrando ordens, sugerindo modificações. Sempre, porém, aconteciam cenas pungentes entre ele e os empregados ou os aldeães que trabalhavam nas vinhas. Retornava colérico, grosseiro, intragável. Em outras oportunidades, quedavam-se horas de silêncio, introvertido…

  Atendendo ao apelo da filha, os Condes Castaldi vieram de Siena, trazendo o médico e Carlo, para uma ligeira estada no Solar di Bicci.

  A alegria experimentada com a presença dos sogros se esfumou quando Girólamo identificou, num dos acompanhantes, o adversário insuportável. Tinha-o já esquecido. Vendo-o, acudiram-lhe as lembranças contraditórias que situavam o florentino no palco de muitas das suas actuais aflições. Desejou expulsá-lo, mas, incontinenti, lembrou-se de que talvez ali pudesse solucionar o problema desagradável que, então, enfrentaria com destemor.

  Fazendo-se cortês quanto lhe permitia o estado de saúde, convidou os familiares e o médico a entrarem e, as horas sucederam-se aprazíveis, amenas.

  Carlo, exultante pelo ensejo e febricitado pelas expectativas, tão impiedoso quanto o contendor, fez-se conquistar pelos servos e cavalariços da herdade, interessando-se por saber quais os fâmulos mais antigos, os que conheceram o duque e seus familiares, como se desejasse, afavelmente, conhecer o passado do clã. Não teve dificuldade em informar-se da veracidade da história, embora não houvesse mais ninguém que, contemporâneo à época da desgraça, ali se conservasse. Nas cercanias, é claro, moravam muitos aldeães que bendiziam a Senhora duquesa e ainda lhe choravam a morte, lamentando o horror que se abatera sobre o burgo, infelicitando quase todos. Veio, assim, posteriormente, a identificar de fora, do pátio, a parte superior da recâmara em que Lúcia e as crianças tiveram a vida ceifada, sem que os seus gritos abafados houvessem ecoado pelas várias janelas que espiam para imensa entrada e o largo patamar.

  Mal se instalou, a Condessa de Castaldi convidou a filha a um exame da situação em que se encontrava o seu jovem marido. A inexperiente senhora, sem esconder a aflição que lhe dominava o íntimo, narrou:

  – Tenho fortes razões para duvidar do juízo de Girólamo. Desde que retornamos de Siena, apesar de vê-lo recuperar-se fisicamente, contrista-me constatar que ele perde a razão a cada dia que passa. Embora não seja dotado de um carácter generoso, sempre soube portar-se como cavalheiro. Progressivamente, vem sofrendo de irascibilidade, tornando-se genioso e perverso. Nesses momentos, transfigura-se e uma expressão de alucinado toma-lhe o belo rosto, deformando-o. Investe, então, furioso, contra tudo e todos… Já não é o mesmo esposo, tendo deixado há longo tempo de cumprir com os seus deveres conjugais… O que antes eu acreditava fosse consequência da enfermidade verifico, apavorada, tornando-se uma obsessão tormentosa. As alternâncias do seu temperamento chocam-me, e estou, também, por arrebentar as peias da convenção e do respeito que lhe tenho. Chego a temer que nos estados que assume ele não trepidaria em agredir-me…

  – Concordo, então, quanto à gravidade do caso, – alvitrou a genitota. – Não há razão, porém, para alarme, por enquanto. Estamos com o Dr. Michele e, depois que ele seja convenientemente tratado, tudo se normalizará.

  – Não me parece fácil, mamãe, – considerou a jovem. – Um mau presságio me aflige nos últimos tempos. Pelos dias do palio, enquanto o meu marido estava viajando – e eu ignorava que ele estivesse em Siena –, fui sacudida por inusitada aflição, como se as sombras que vivem na Morte rondassem o meu lar, ameaçando-nos a paz… Receei enlouquecer…

  – Filha, que disparates são esses? – interveio a mãe. – Se o teu confessor for informado dessas ideias, que pensará de ti e da nossa família? Certamente andas a ouvir as superstições dessas gentes…

  – Não é verdade, mamãe, – acudiu, pressurosa –, estou no meu perfeito juízo e, por isso mesmo, são grandes os meus receios… Este solar me desagrada. Nunca me atrevi a contar a qualquer pessoa o que acontece. Agora…

  – Estás, também, doente, minha filha, – interrompeu a Condessa, com preocupação. – O clima deve estar fazendo-te mal.

  – Ouça-me, antes, mamãe – rogou a jovem atribulada –, para compreender com maior segurança. Aos primeiros dias da minha ventura conjugal, fosse porque estivesse inebriada, parecia-me viver a verdadeira felicidade. Paulatinamente, porém, comecei a notar que os servos evitavam a ala onde aconteceu a tragédia. Interrogando Margherita e impondo-lhe ordens, ela narrou-me que os servos e aias domésticos escutavam sons estranhos: gargalhadas, gritos, e imprecações provindas da peça onde culminou o funesto acontecimento. Fiquei estarrecida, porque eu também tinha a desagradável sensação de perceber esses estranhos movimentos. A princípio, atribuía ao vento ou a ruídos de fora os estranhos sons, porém, acurando a observação, constatei que procediam da recâmara nefasta…

   – Estás impressionada, filha querida, – intercedeu a ouvinte. – Lamentavelmente, esses aldeães são muito ignorantes e supersticiosos, vivendo em experiências de magias incomodando os mortos, que estão muito bem mortos. Estranho-te com esses pensamentos.

  – Também eu me estranho, – concordou, ensimesmada, a jovem, reflectindo em torno das ocorrências afligentes que de forma desconcertante seguiam curso no solar –, porém, estou segura de que alguém aqui está a perseguir-nos e tenho a certeza de que a doença de Girólamo “não é de Deus”… (i) Vejo-o desvairar, possesso, assumindo personalidade estranha: gargalha, estertora, apavora-se, como se desejasse fugir, sem poder… Desperta a gritar, segurando a garganta como se estivesse a esganar-se. Há algo, minha mãe, e eu temo.

  A moça estava pálida. As mãos tremiam e o choro estava por arrebentar as comportas dos olhos e explodir abundante.

  Buscando acalmá-la, a genitora tomou-a nos braços e perguntou:

  – Tens orado, minha filha? Não achas que necessitas de ouvir um confessor para que ele te ajude e liberte dessas impressões?

  – Não são impressões pueris e enganosas como possam parecer. Estou segura da existência dos mortos rondando esta casa, que foi palco de insucessos pavorosos. Você não ignora que na Toscana é popular o dito: “Os que morrem assassinados ficam vagando e afligindo-se até se libertarem da desgraça que os consome.” (ii) Eu creio firmemente que os assassinados aqui, aqui continuam.

  – Se prossegues com essas ideias… – revidou a genitora, segurando-lhe as mãos. – Estás gelada, minha filha! Que se passa nesta casa, Deus meu!?

  – Calma, mamãe! Ouça-me até ao fim. Às vésperas do palio, conforme eu lhe dizia, subitamente senti-me mal. Encontrava-me na açoteia, fitando ao longe, quando escutei blasfémias e objurgatórias azedas de alguém que me odiava, expulsando-me daqui. Gritei pela minha aia e ambas rezamos o terço, advindo muita serenidade, logo após. Você sabe da minha contrição e confiança em São Francisco e a ele roguei por mim e pelo meu lar. Senti, então, uma como aragem de paz e, conquanto abalada, fui conduzida ao leito e dormi. Logo após, sonhei com a Senhora duquesa: vi-a nitidamente, expressando a face da Madonna. Havia no seu belo semblante indefinível tristeza. Ela falou-me. No momento, eu a escutei e entendi; logo, porém, dissipou-se tudo na minha memória. Não a esqueci mais; e embora a angústia que me constringe, experimento, também, uma presença subtil como se ela, que é muito amada pelos que vivem neste burgo, estivesse a proteger-me, em nome de São Francisco. Será isso possível?

  – Não tenho dúvidas, – redarguiu, então, com tino, a senhora. – Inteirando-se das desgraças que aqui se consumaram há quase um decénio, teu pai, que era amigo do duque, foi informado de que a duquesa era para essas gentes locais um verdadeiro anjo de bondade. Muito voltada para Deus, como tu mesma, era devota do Povarello, a quem amava com extremos de arrebatamento. Com certa regularidade, o marido a conduzia à Úmbria e de todos era sabido o amor que se nutriam reciprocamente. Desde que ela morreu, ele não mais fruiu qualquer felicidade.

  – E Assunta, mamãe? – interpelou a jovem Cherubini. – você ouviu falar alguma vez dessa mulher?

  – Não, filha, nunca.

  – Essa mulher servia a casa, na época dos acontecimentos. Originária de Chiusi, descendia dos antigos etruscos. Após os fúnebres sucessos, desapareceu, rumando a Florença e de lá sumiu definitivamente. Os servos receberam a visita de um irmão seu, que veio procurar meu marido para inteirar-se do que acontecera, como se Girólamo soubesse de alguma coisa… Por ignota força, parece-me sabê-la envolvida na desgraça…

  – Deixa o passado e pensa no presente. Necessitas esquecer tudo isso para pensar na saúde do teu esposo.

  – Reconheço; no entanto, uma coisa esclarece a outra.

  – Todavia, isso perturba-te, sem levar-nos a lugar nenhum. É melhor esquecer o que não se pode rectificar e viver o que se pode e deve gozar.

  Ficou, então, concertado que Girólamo necessitava de muita assistência do médico e que deveriam passar uma larga temporada em Siena, especialmente naquela quadra do ano, já se fazia propícia às chuvas.

/…

(i) Expressão com que as pessoas mal informadas sobre os problemas espirituais e mediúnicos referindo-se às obsessões, fazendo conexões com velhas objuratórias da ignorância religiosa do passado.
(ii) “Quelli che muotono assassinati restano vegando e affliggendosi fino alia liberazione della loro disgrazia che li consuma.”


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (2 de 3) 30º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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