SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~
(II)
Casquinada aparvalhante explodiu no perseguidor e Girólamo despertou de súbito, atónito, saindo a correr, cambaleante pelas forças debilitadas, até ao
leito, no qual se arrojou, amolentado.
As lutas do enfermo prosseguiram em ritmo de dor, embora o
desvelo da esposa e dos servos. Paulatinamente diminuíram as agressões
obsidentes e, transcorrido um mês, voltara-lhe a cor da face e as melhoras
pareciam prenunciar a cura total.
Interiormente, porém, o moço experimentava crescente pavor. Os
movimentos inusitados surpreendiam-no dolorosamente e qualquer intromissão não
anunciada fazia-o explodir de ira. Percebia-se-lhe o desgoverno dos nervos. Acordava
a gritar, debatendo-se, agónico, com muita constância. Todos lhe notavam o carácter
mau – dado que, anteriormente, escondia os sentimentos na polidez –,
revelando-se insuportável amo e péssima companhia. Inutilmente, Beatriz o
cercava de carinhos. Repelia-a muitas vezes, fazendo-a receá-lo.
As atitudes desencontradas e que ele dava mostras
intimidavam-na. Não poucas vezes, envolvido pela lubricidade, era fascinante e
sabia conquistá-la; todavia, no interlúdio, fazia-se acerbo e a afastava,
grosseiro, como se estivesse nas raias da loucura. Logo depois, recuperava-se e
tornava, desculpando-se, dizendo-se perturbado, enfermo. A jovem Condessa
mandara notificar os pais, solicitando providências, na dura situação em que se
encontrava.
Nos dias do Outono agradável, enquanto os agregados e servos
colhiam uvas para prepararem os capitosos vinhos, os ventos chegavam anunciando
a mudança da temperatura e as velhas árvores se descoloriam, deixando-se
carregar pelas lufadas contínuas, nas quais perdiam as folhas queimadas, o
nobre saía a cavalo, galopando, revendo as terras da propriedade, alvitrando
ordens, sugerindo modificações. Sempre, porém, aconteciam cenas pungentes entre
ele e os empregados ou os aldeães que trabalhavam nas vinhas. Retornava colérico,
grosseiro, intragável. Em outras oportunidades, quedavam-se horas de silêncio,
introvertido…
Atendendo ao apelo da filha, os Condes Castaldi vieram de
Siena, trazendo o médico e Carlo, para uma ligeira estada no Solar di Bicci.
A alegria experimentada com a presença dos sogros se esfumou
quando Girólamo identificou, num dos acompanhantes, o adversário insuportável. Tinha-o
já esquecido. Vendo-o, acudiram-lhe as lembranças contraditórias que situavam o
florentino no palco de muitas das suas actuais aflições. Desejou expulsá-lo,
mas, incontinenti, lembrou-se de que talvez ali pudesse solucionar o problema
desagradável que, então, enfrentaria com destemor.
Fazendo-se cortês quanto lhe permitia o estado de saúde,
convidou os familiares e o médico a entrarem e, as horas sucederam-se aprazíveis,
amenas.
Carlo, exultante pelo ensejo e febricitado pelas
expectativas, tão impiedoso quanto o contendor, fez-se conquistar pelos servos
e cavalariços da herdade, interessando-se por saber quais os fâmulos mais
antigos, os que conheceram o duque e
seus familiares, como se desejasse, afavelmente, conhecer o passado do clã. Não
teve dificuldade em informar-se da veracidade da história, embora não houvesse
mais ninguém que, contemporâneo à época da desgraça, ali se conservasse. Nas cercanias,
é claro, moravam muitos aldeães que bendiziam a Senhora duquesa e ainda lhe choravam a morte, lamentando o horror que se
abatera sobre o burgo, infelicitando quase todos. Veio, assim, posteriormente,
a identificar de fora, do pátio, a parte superior da recâmara em que Lúcia e as
crianças tiveram a vida ceifada, sem que os seus gritos abafados houvessem
ecoado pelas várias janelas que espiam para imensa entrada e o largo patamar.
Mal se instalou, a Condessa de Castaldi convidou a filha a
um exame da situação em que se encontrava o seu jovem marido. A inexperiente
senhora, sem esconder a aflição que lhe dominava o íntimo, narrou:
– Tenho fortes razões para duvidar do juízo de Girólamo. Desde
que retornamos de Siena, apesar de vê-lo recuperar-se fisicamente, contrista-me
constatar que ele perde a razão a cada dia que passa. Embora não seja dotado de
um carácter generoso, sempre soube portar-se como cavalheiro. Progressivamente,
vem sofrendo de irascibilidade, tornando-se genioso e perverso. Nesses
momentos, transfigura-se e uma expressão de alucinado toma-lhe o belo rosto,
deformando-o. Investe, então, furioso, contra tudo e todos… Já não é o mesmo
esposo, tendo deixado há longo tempo de cumprir com os seus deveres conjugais…
O que antes eu acreditava fosse consequência da enfermidade verifico,
apavorada, tornando-se uma obsessão tormentosa. As alternâncias do seu
temperamento chocam-me, e estou, também, por arrebentar as peias da convenção e
do respeito que lhe tenho. Chego a temer que nos estados que assume ele não
trepidaria em agredir-me…
– Concordo, então, quanto à gravidade do caso, – alvitrou a
genitota. – Não há razão, porém, para alarme, por enquanto. Estamos com o Dr.
Michele e, depois que ele seja convenientemente tratado, tudo se normalizará.
– Não me parece fácil, mamãe, – considerou a jovem. – Um mau
presságio me aflige nos últimos tempos. Pelos dias do palio, enquanto o meu marido estava viajando – e eu ignorava que
ele estivesse em Siena –, fui sacudida por inusitada aflição, como se as sombras que vivem na Morte rondassem o meu lar,
ameaçando-nos a paz… Receei enlouquecer…
– Filha, que disparates são esses? – interveio a mãe. – Se o
teu confessor for informado dessas ideias, que pensará de ti e da nossa família?
Certamente andas a ouvir as superstições dessas gentes…
– Não é verdade, mamãe, – acudiu, pressurosa –, estou no meu
perfeito juízo e, por isso mesmo, são grandes os meus receios… Este solar me
desagrada. Nunca me atrevi a contar a qualquer pessoa o que acontece. Agora…
– Estás, também, doente, minha filha, – interrompeu a
Condessa, com preocupação. – O clima deve estar fazendo-te mal.
– Ouça-me, antes, mamãe – rogou a jovem atribulada –, para
compreender com maior segurança. Aos primeiros dias da minha ventura conjugal,
fosse porque estivesse inebriada, parecia-me viver a verdadeira felicidade. Paulatinamente,
porém, comecei a notar que os servos evitavam a ala onde aconteceu a tragédia. Interrogando
Margherita e impondo-lhe ordens, ela narrou-me que os servos e aias domésticos
escutavam sons estranhos: gargalhadas, gritos, e imprecações provindas da peça onde
culminou o funesto acontecimento. Fiquei estarrecida, porque eu também tinha a
desagradável sensação de perceber esses estranhos movimentos. A princípio, atribuía
ao vento ou a ruídos de fora os estranhos sons, porém, acurando a observação,
constatei que procediam da recâmara nefasta…
– Estás
impressionada, filha querida, – intercedeu a ouvinte. – Lamentavelmente, esses
aldeães são muito ignorantes e supersticiosos, vivendo em experiências de
magias incomodando os mortos, que estão
muito bem mortos. Estranho-te com esses pensamentos.
– Também eu me estranho, – concordou, ensimesmada, a jovem,
reflectindo em torno das ocorrências afligentes que de forma desconcertante
seguiam curso no solar –, porém, estou segura de que alguém aqui está a perseguir-nos e tenho a certeza de que a doença
de Girólamo “não é de Deus”… (i) Vejo-o desvairar, possesso, assumindo
personalidade estranha: gargalha, estertora, apavora-se, como se desejasse
fugir, sem poder… Desperta a gritar, segurando a garganta como se estivesse a esganar-se.
Há algo, minha mãe, e eu temo.
A moça estava pálida. As mãos tremiam e o choro estava por
arrebentar as comportas dos olhos e explodir abundante.
Buscando acalmá-la, a genitora tomou-a nos braços e
perguntou:
– Tens orado, minha filha? Não achas que necessitas de ouvir
um confessor para que ele te ajude e liberte dessas impressões?
– Não são impressões pueris e enganosas como possam parecer.
Estou segura da existência dos mortos rondando esta casa, que foi palco de
insucessos pavorosos. Você não ignora que na Toscana é popular o dito: “Os que
morrem assassinados ficam vagando e
afligindo-se até se libertarem da desgraça que os consome.” (ii) Eu creio
firmemente que os assassinados aqui, aqui continuam.
– Se prossegues com essas ideias… – revidou a genitora,
segurando-lhe as mãos. – Estás gelada, minha filha! Que se passa nesta casa,
Deus meu!?
– Calma, mamãe! Ouça-me até ao fim. Às vésperas do palio, conforme eu lhe dizia,
subitamente senti-me mal. Encontrava-me na açoteia, fitando ao longe, quando escutei blasfémias e objurgatórias
azedas de alguém que me odiava, expulsando-me
daqui. Gritei pela minha aia e ambas rezamos o terço, advindo muita serenidade,
logo após. Você sabe da minha contrição e confiança em São Francisco e a ele
roguei por mim e pelo meu lar. Senti, então, uma como aragem de paz e,
conquanto abalada, fui conduzida ao leito e dormi. Logo após, sonhei com a Senhora
duquesa: vi-a nitidamente,
expressando a face da Madonna. Havia
no seu belo semblante indefinível tristeza. Ela falou-me. No momento, eu a
escutei e entendi; logo, porém, dissipou-se tudo na minha memória. Não a
esqueci mais; e embora a angústia que me constringe, experimento, também, uma
presença subtil como se ela, que é muito amada pelos que vivem neste burgo,
estivesse a proteger-me, em nome de São Francisco. Será isso possível?
– Não tenho dúvidas, – redarguiu, então, com tino, a
senhora. – Inteirando-se das desgraças que aqui se consumaram há quase um decénio,
teu pai, que era amigo do duque, foi
informado de que a duquesa era para
essas gentes locais um verdadeiro anjo de bondade. Muito voltada para Deus,
como tu mesma, era devota do Povarello,
a quem amava com extremos de arrebatamento. Com certa regularidade, o marido a
conduzia à Úmbria e de todos era sabido o amor que se nutriam reciprocamente. Desde
que ela morreu, ele não mais fruiu qualquer felicidade.
– E Assunta, mamãe? – interpelou a jovem Cherubini. – você ouviu
falar alguma vez dessa mulher?
– Não, filha, nunca.
– Essa mulher servia a casa, na época dos acontecimentos. Originária
de Chiusi, descendia dos antigos etruscos. Após os fúnebres sucessos,
desapareceu, rumando a Florença e de lá sumiu definitivamente. Os servos receberam
a visita de um irmão seu, que veio procurar meu marido para inteirar-se do que acontecera,
como se Girólamo soubesse de alguma coisa… Por ignota força, parece-me sabê-la
envolvida na desgraça…
– Deixa o passado e pensa no presente. Necessitas esquecer
tudo isso para pensar na saúde do teu esposo.
– Reconheço; no entanto, uma coisa esclarece a outra.
– Todavia, isso perturba-te, sem levar-nos a lugar nenhum. É
melhor esquecer o que não se pode rectificar e viver o que se pode e deve
gozar.
Ficou, então, concertado que Girólamo necessitava de muita assistência
do médico e que deveriam passar uma larga temporada em Siena, especialmente
naquela quadra do ano, já se fazia propícia às chuvas.
/…
(i) Expressão com que as pessoas mal informadas sobre os
problemas espirituais e mediúnicos referindo-se às obsessões, fazendo conexões
com velhas objuratórias da ignorância religiosa do passado.
(ii) “Quelli che muotono assassinati restano vegando e
affliggendosi fino alia liberazione della loro disgrazia che li consuma.”
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (2 de 3) 30º fragmento da
obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
Sem comentários:
Enviar um comentário