Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 28 de maio de 2016

o grande desconhecido ~


amor e família em novos tempos |

Ninguém colocou melhor o problema da família do que Allan Kardec, pois não se apoiou apenas na pesquisa das aparências formais, mas penetrou na substância da questão, no plano das causas determinantes. Por isso nos oferece um esquema tríplice das formações da família do nosso tempo, a saber:

a) a família carnal, formada a partir dos clãs primitivos, evoluindo nas miscigenações raciais, através de inumeráveis conflitos ao longo das civilizações progressivas, na fermentação dialéctica do amor e do ódio. Os grupos assim formados subdividem-se, nas reencarnações progressivas, em inumeráveis subgrupos, que também crescerão e se subdividirão na temporalidade, ou seja, na imensa esteira do tempo, que, segundo Heideggeracolhe o espírito. São essas as famílias consanguíneas, que se desfazem com a morte.

b) a família mista, carnal e espiritual, em que os conflitos do amor e do ódio entram em processo de solução, nos reajustamentos das lutas e experiências comuns, definindo-se e ampliando-se as afinidades espirituais entre diversos grupos, absorvendo elementos de outras famílias, nas coordenadas da evolução colectiva. O condicionamento da família, nas relações endógenas e necessárias da vivência em comum, quebra a pouco e pouco as arestas do ódio e das antipatias, restabelecendo na medida do possível as relações simpáticas que se ampliarão no futuro. A desagregação provocada pela morte permitirá reajustes mais eficazes nas sucessivas reencarnações dos grupos.

c) a família espiritual, resultante de todos esses processos reencarnatórios, que aglutinará os espíritos afins no plano espiritual, nas comunidades dos espíritos superiores que se dedicam ao trabalho de assistência e orientação aos dois tipos de família anteriores, mesclando-as de elementos que nelas se reencarnam para modificá-las com o seu exemplo de amor e dedicação ao próximo. Essa família não perece, não se desfaz com a morte, crescendo constantemente para a formação de Humanidades Superiores. É fácil, usando-se as medidas da Escala Espírita em O Livro dos Espíritos, identificar nas famílias terrenas a presença de vários tipos descritos na referida escala, percebendo-se claramente as funções que exercem no processo evolutivo em família.

A concepção espírita da família, como se vê, é muito mais complexa e de importância muito maior que a das religiões cristãs, que conferem eternidade e inviolabilidade ao sacramento do matrimónio, mas não podem impedir que, na morte, o marido vá parar às garras do Diabo, a esposa estagiar no Purgatório e os filhos inocentes curtir a sua orfandade nos jardins do céu. A concepção jurídica e terrena da família não vai além dos interesses materiais de uma existência. O mesmo se dá com a concepção sociológica, que faz da família a base da sociedade, ambas perecíveis e transitórias. As pessoas que acusam o Espiritismo de aniquilar a família através da reencarnação revelam a mais completa ignorância da Doutrina ou o fazem por má-fé, na defesa de interesses religiosos-sectários.

A família nasce do amor e dele se alimenta. Não é apenas a base da sociedade, mas de toda a Humanidade. É na família que as gerações se encontram, transmitindo as suas experiências de uma para a outra. Combater a instituição da família, negar a sua necessidade e a sua eficácia no desenvolvimento dos povos e dos mundos é revelar miopia ou cegueira espiritual, na cultura ou desequilíbrio mental e psíquico, falta de ajustamento à realidade, esquizofrenia não raro catatónicaIsso é evidente no estado de alienação em que essa atitude se manifesta, em pessoas amargas ,ressentidas ou extremamente pretensiosas, que desejam mostrar-se originais. Em geral, são criaturas carentes de afectividade. Quando se desligam da família natural ligam-se a grupos de criaturas afins, engajam-se noutras famílias ou tornam-se misantropas destinadas à neurastenia ou à loucura. O instinto gregário da espécie é uma exigência da evolução humana, a que ninguém pode furtar-se sem pagar pelo seu egoísmo.

Os ideólogos da solidão individual esquecem-se de que todas as tentativas nesse sentido fracassaram ao longo da História. Esparta morreu de inanição por falta de relações da família, enquanto Atenas cresceu e se projectou num futuro glorioso, pela solidez de seu sistema da família. Roma caiu nas mãos dos bárbaros quando as suas famílias se entregaram à degeneração. Os próprios nómadas jamais dispensaram o seu sistema de famílias ambulantes. Anarquistas e socialistas delirantes, que sonhavam com sociedades anti-sociais, formadas de indivíduos avulso e dotadas de grandes depósitos de crianças avulsas – os filhos do Estado – morreram protegidos pelo carinho dos familiares. Robinson Crusoe é a imagem do homem arrebatado ao seu meio, sem perspectivas. Sartre, que rompeu com a tradição da família e demonstrou os inconvenientes da convivência, fazendo uma tentativa de misantropia estóica, nunca dispensou a companhia de Simone de Beauvoir e o cosmopolitismo parisiense, formulou o célebre veredicto: Os outros são o inferno, mas jamais os dispensou. Escrevia no Café de Fiori e quando visitou a URSS exigiu a inclusão no programa oficial de horas de solidão absoluta, mas nessas horas se ralava inquieto, segundo o testemunho de Simone. O homem é relação e a família é o meio de relação em que ele absorve a seiva humana que o faz homem.

Não há interesse maior para a criatura humana no mundo que o seu semelhante, porque é nele que nos realizamos.

Uma paisagem solitária é um motivo edénico de contemplação, e quando alguém aparece, como Sartre observou, imediatamente nos tira a liberdade e nos transforma em objecto. Mas o próprio acto de objectivar-nos permite-nos recuperar a nossa subjectividade dispersada na paisagem. Essa dinâmica de projecção e retroacção revela ao mesmo tempo a natureza dialéctica do ser, estável no somático e instável na psique. Dessa dialéctica resulta a síntese total da consciência estética, em que o real objectivo e o irreal subjectivo se fundem na percepção estética do amor.

Por isso, no Espiritismo o amor não é instinto (necessidade orgânica) nem desejo ou simples fazer sexual (sensorialidade) mas a aspiração suprema de beleza e espiritualidade nas perspectivas da transcendência. A superação de objectivo e subjectivo se resolve na globalidade do Amor. Por isso o Apóstolo João, no seu Evangelho, define o Ser Supremo na conhecida frase: Deus é Amor. As definições da Filosofia como Amor da Sabedoria (Pitágoras) e Sabedoria do Amor (Platão) revelam a intuição, já na Antiguidade, dessa total globalidade do Amor que o Espiritismo viria a explicar mais tarde. O desenvolvimento dessa globalidade processa-se na família, em que a afectividade desabrocha para a posterior floração do Amor no processo existencial. As famílias a e b da teoria kardeciana, que explicitamos no nosso esquema, preparam o ser, projectado na existência, para a odisseia das almas viajoras de Plotino, que vão subir e descer pela escada de Jacob nas reencarnações sucessivas, em busca do arquétipo da família e, em que as famílias desse padrão superior se integrarão progressivamente no plano divino das humanidades espirituais que constituirão no Infinito a Humanidade Cósmica. Essa a razão por que René Hubert, filósofo e pedagogo francês contemporâneo, sustenta que os fins da Educação consistem no estabelecimento, na Terra, da República dos Espíritos, através da Solidariedade de consciências.

A Educação em Família é o germe afectivo e puro de que decorre todo o processo educacional do homem. Com o amparo da família, na solidariedade doméstica do lar, por mais obscuro e humilde, é que se realiza a fotossíntese inicial da atmosfera de solidariedade e amor das gerações que modelam o futuro. Cabe aos espíritas implantar na Terra uma nova Educação, com base nos dados da pesquisa espírita e segundo o esquema da Pedagogia Espírita. Essa Pedagogia, iniciada por Hubert (que não é espírita) fundamenta-se nos princípios doutrinários do Espiritismo e destina-se a preparar as novas gerações para a Era Cósmica que se aproxima. Os professores espíritas de todos os graus do ensino têm um dever supremo a cumprir, nesta fase de transição do nosso planeta: procurar compreender os princípios educacionais do Espiritismo e trabalhar pelo desenvolvimento da Educação Espírita.

Estamos a entrar na Era Cósmica, numa sequência natural do desenvolvimento da Era Tecnológica, tudo se encadeia no Universo, como assinala O Livro dos Espíritos. Com o avanço científico e técnico dos últimos séculos, e particularmente do nosso, a Terra amadureceu para a conquista do espaço sideral. O impacto dos nossos primeiros contactos com outros mundos já produziu profundas modificações, de que ainda não demos conta, em mundividência. As pesquisas espaciais continuam, ampliando a nossa visão da realidade cósmica. Uma nova civilização está a surgir aos nossos olhos, debaixo dos nossos pés e sobre as nossas cabeças. Mas para que isso aconteça, sem perdermos de todo o equilíbrio cultural, já bastante abalado, temos de cuidar seriamente da renovação dos nossos instrumentos culturais básicos, a saber:

a) a Economia, que deve tornar-se universal, rompendo os diques e as barreiras de um mundo pulverizado, para lhe dar a unidade necessária e a flexibilidade possível para o atendimento dos povos e de suas camadas diversificadas, afastando do planeta os privilégios e os desperdícios, a penúria e a fome. A civilização humana e perfeita, ensina O Livro dos Espíritos, é aquela em que ninguém morre de fome. A duras penas, a nova mentalidade económica já está definindo-se em todas as nações civilizadas, mas o egoísmo das camadas privilegiadas ainda impede a compreensão das exigências de fraternidade e humanismo dos novos tempos.

b) a Moral, que tem de romper os seus padrões envelhecidos de egoísmo e sociocentrismo, moldados em preconceitos de vaidadeambição e prepotência, para elevar-se a novos padrões de humanismo, respeito por todos os direitos humanos, até hoje sempre espezinhados na Terra dos Homens, essa expressão de Saint-Exupéry que é um novo chamado à nossa consciência em termos evangélicos. Altruísmo – interesse pelos outros humildade, fraternidade, tolerância e compreensão, amor, são essas as novas palavras de uma moral realmente cristã. A violência terá de ser expulsa da Terra dos Homens, com o seu cortejo de brutalidadesÉ necessário que o conceito de não-violência se transforme na marca do homem, no signo que o distingue do bruto, do primata inconsciente. A honra e a dignidade humanas são incompatíveis com a estupidez dos broncos, inadmissíveis num sistema de civilização. Como adverte Fredric Wertham, a violência é um cancro social, que corrói e destrói toda a estrutura de uma civilização. O homem verdadeiramente homem deve ter vergonha e horror da violência. Ser violento é ser amoral, pois quem não respeita os outros não respeita a si mesmo.

c) a Educação, que tem de renovar os seus conceitos básicos sobre o seu objecto, o educando. Em primeiro lugar a educação em família, que deve basear-se na afectividade, nas relações de amor e compreensão entre pais e filhos. Educação com violência é domesticação. O mundo da criança não é o mesmo do adulto e este tem de descer a esse mundo, voltar à sua própria infância para não esmagar a infância dos filhos. As pesquisas entre os povos selvagens mostraram que a essência da educação é o amorSem amor não se educa, deforma-se. Nos povos selvagens a educação não foi deformada pela ideia do pecado, pelo mito da queda do homem, que envolvera o mundo de violências redentoras capazes de aterrorizar um brutamontes, quanto mais uma criança. Kardec ensina que a criança, embora tenha o seu passado em geral lamentável, nasce vestida com a roupagem da inocência para tocar ocoração dos pais e despertar-lhes o amor e a ternura, de que ela necessita para o desenvolvimento das suas potencialidades humanasSe fazemos o contrário, despertamos na criança o seu passado de erros e depois a condenamos pelos seus instintos. Essa tese kardeciana é hoje dominante nos meios pedagógicos. Como dizia Gandhi, não se pode levar uma criatura ao bem pelos caminhos do mal. Os povos selvagens são mais civilizados que os povos civilizados, no tocante a esse problema, pois intuem com pureza e ingenuidade o verdadeiro sentido da educação. Educar é um acto de amor, diz Kerschensteiner nos nossos dias, endossando o pensamento de todos os grandes pedagogos e educadores da Grécia antiga e do mundo moderno, a partir de Rousseau.

Mas a Educação Espírita tem ainda uma função essencial a desenvolver: o desenvolvimento das faculdades paranormais do educando, preparando-o para as actividades cósmicas da nova era. O Espiritismo foi o revelador dessas faculdades humanas que o passado confundiu com manifestações doentias ou sobrenaturais. O Espiritismo foi a primeira Ciência a mostrar experimentalmente esse engano fatal, de que resultou para a Humanidade terríveis tragédias. Cento e trinta anos antes das descobertas parapsicológicas nesse sentido, a Ciência Espírita demonstrou que as funções anímicas e psico-anímicas da criatura humana eram normais, pertenciam à própria natureza do homem. As pesquisas actuais no Cosmos revelaram que o desenvolvimento das faculdades psi é indispensável ao bom êxito das incursões no espaço sideral. A Educação Espírita é a única que pode enfrentar essas exigências dos novos tempos, cuidando do desenvolvimento dessas faculdades de maneira racional, sem os prejuízos dos falsos conceitos e dos temores infundados das formas de educação religiosas e leigas do nosso tempo.

Cabe assim ao Espiritismo renovar totalmente a cultura actual, reestruturar a Civilização Tecnológica nos rumos da Civilização do Espírito. Esse o fardo leve do Cristo que pesa sobre a consciência de todos os espíritas verdadeiros, nesta hora do mundo, e particularmente sobre a consciência dos educadores espíritas. Nessa civilização o amor não será fonte de decepções, desajustes e tragédias. A Família não se estruturará em preconceitos provindos dos tempos de barbárie, mas na moral evangélica pura, feita de amor e respeito pelas exigências da vida. O amor verdadeiro e espontâneo, puro como água da fonte, livre de interesses secundários, fará da família a fonte de amor que elevará a Terra na Escala dos Mundos. Isto não é sonho nem profecia, é o programa espírita para o Mundo de Amanhã, e que cabe aos espíritas realizar a partir de hoje, sem perda de tempo.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 5 Amor e Família em Novos Tempos, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

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