Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VII Síntese dos druidas. As Tríades; objecções e comentários

  Das profundezas dos tempos, a síntese dos druidas se apresenta como um dos mais altos pináculos que o pensamento filosófico pode atingir. Ainda que ensinada de modo secreto, ela se traduzia bem claramente nos propósitos e nos actos dos iniciados gauleses e, sobretudo, nos cantos bárdicos, para provocar entre os autores gregos e latinos sentimentos de admiração e respeito.

  Com efeito, Aristóteles não escreveu no seu livro Mágica que “a filosofia nasceu com os celtas e que antes de ser conhecida na Grécia ela foi cultivada entre os gauleses, por aqueles que se chamavam druidas e semnoteus”? Este último termo, para os gregos, significava “adoradores de Deus”.

  Diodoro de Sicília dizia que havia, entre os gauleses, filósofos e teólogos “julgados dignos das maiores honras”. Étienne de Bizâncio, Suídas e Sotion conferem igualmente aos druidas o título de filósofos.

   Diógenes de Laerte e Polyhistor sustentavam que a filosofia tinha existido fora da Grécia antes de aparecer nas suas escolas, e citavam como prova os druidas, que agiam como se fossem predecessores dos filósofos propriamente ditos.

  Lucano chega a afirmar que os druidas eram os únicos que conheciam a verdadeira natureza dos deuses.

  Ao tratar das analogias que existem entre a filosofia dos druidas e a escola de Pitágoras, Jean Reynaud assim se exprime: “Não somente a antiguidade não hesita em aproximar os druidas da escola de Pitágoras, como também ela os incorpora completamente.” (i)

  Jâmblico, na sua obra Vida de Pitágoras, nos ensina que o filósofo era instruído entre os celtas. Polyhistor, que é uma das maiores autoridades históricas sobre os povos antigos, informa no seu livro Símbolos que Pitágoras tinha entrado em contacto com os druidas e com os brâmanes. São Clemente, que nos transmitiu a opinião desse historiador, aceitava isso sem dificuldades, tanto é que ele a julgava justificada pela semelhança das doutrinas druídica e pitagórica. Valério Máximo declara que “os gauleses com as suas bragas (calções) pensavam a mesma coisa que o filósofo Pitágoras com sua manta”.

   No primeiro lugar da lista dos autores latinos, encontramos o próprio César, este grande inimigo de nossa raça. Apesar de sua intenção evidente de se realçar aos olhos da posteridade, apesar do espírito de difamação que o inspirava, não foi ele quem, nos seus Comentários da Guerra das Gálias, (ii) afirmou que os druidas ensinavam muito das coisas do Universo e de suas leis, sobre as formas, as dimensões da Terra e o movimento dos astros, sobre o destino das almas, os seus renascimentos em outros corpos humanos?

  Horácio, Florus e muitos outros escritores, sabe-se, testemunharam a alta ciência e a filosofia dos druidas, a profundeza dos seus ensinos. Lembramos também as opiniões dos escritores cristãos desses tempos: Cirilo, Clemente de Alexandria, Orígenes e certos sacerdotes da igreja que distinguem, com cuidado, os druidas das “multidões dos idólatras” e lhes atribuem também a qualidade de filósofos. É por todos esses motivos que as Tríades, que são um resumo da síntese dos druidas, nos aparecem como um monumento digno de toda a nossa atenção e não como uma obra imaginária, como a consideram tantos críticos superficiais.

  O Druidismo, como todas as grandes doutrinas, tinha duas facetas, dois aspectos. Um, exterior, cheio de figuras, imagens e símbolos, era a religião popular ao alcance das multidões. A outra, profunda e oculta, era a doutrina reveladora das altas verdades e das leis superiores, reservada àqueles cujo grau de evolução os tornava aptos a compreender e a apreciar a sua beleza. Assim, essa doutrina se religa às outras grandes revelações, budista e cristã, todas provenientes, na sua essência, de uma mesma fonte única e grandiosa. (iii)

   Nos países célticos, ela não era transcrita em língua vulgar, porque isso a tornaria conhecida por todos; entretanto, os druidas possuíam uma escrita simbólica vegetal, chamada escritura “ogham”, que eles usavam, e cuja solução somente os iniciados possuíam. Há resquícios desse facto na Irlanda e no País de Gales.

  O ensino era, sobretudo, oral, transmitido de boca em boca, sob a forma de estrofes, em versos inumeráveis, e foi mais tarde popularizado pelos bardos que eram iniciados.

  Na época em que as Tríades tomaram a forma de escrita, o Cristianismo tinha penetrado na Gália. É possível, como supõem certos críticos, que a sua redacção tenha sofrido a influência dele em alguns pontos. No seu conjunto, essa obra-prima não esconde a sua originalidade potente, principalmente na tabela que oferece do progresso vital, desde o fundo do abismo, “Annoufn”, até às alturas sublimes do “Gwynfyd”.

  O Cristianismo emudeceu sobre essa evolução dos seres inferiores, especialmente no que se refere à vida rudimentar em todos os graus abaixo do homem, e isso é uma lacuna enorme na explicação das leis da vida. (iv)

  Censura-se que as Tríades não tenham sido traduzidas e publicadas em francês, a não ser durante o último século. Isto nada prova contra a sua antiguidade e demonstra somente a indiferença dos franceses a respeito de nossas reais origens, pois não é verdade que sejamos latinos. Nós compreendemos que se seja apaixonado, entre nós, pela magnífica floração da literatura e da arte greco-latina, que muito contribuiu para suavizar a aspereza dos celtas, sem os alterar. Nós reconhecemos a parte, grande e legítima, que lhes pertence na constituição de nossa língua, apesar de esta conter ainda muitos elementos célticos. Mas essas não são razões para negar os nossos antepassados, que eram melhores do que os gregos e os romanos e sabiam mais no que se refere ao que há de mais essencial a conhecer, aqui em baixo: as altas leis espirituais e os verdadeiros destinos do ser.

   Enquanto se dá toda a importância merecida às tradições gregas e latinas, pode-se pasmar da incúria universitária quanto aos textos célticos. Nos cursos que seguimos no colégio de França e na Sorbonne, os senhores d’Arbois de Jubainville e Gaidoz se queixavam amargamente da necessidade de se acompanhar as suas explicações em livros alemães, reproduzindo o original celta, por não haver obras francesas, enquanto que existem traduções inglesas das Tríades e de cantos bárdicos há mais de mil anos. (v) A penúria de documentos poderia bem ser uma penúria de iniciativa e de boa vontade.

  As Tríades, por sua profunda originalidade, por seu contraste chocante com todas as formas de Paganismo, trazem em si mesmas a sua garantia de autenticidade. Deplora-se sempre, com razão, a destruição da biblioteca de Alexandria, queimada por ordem do califa Omar, e a perda de tantos documentos preciosos relativos à antiguidade oriental. Mas por que os críticos passam em silêncio um evento paralelo, qual seja a destruição, por ordem de Cromwell, da biblioteca Céltica, fundada pelo Conde de Pembroke, no castelo de Rhaglan (País de Gales) e tão rica em manuscritos relacionados com a época bárdica?

  Quanto às analogias constatadas entre a doutrina dos druidas, a dos brâmanes e a pitagórica, a explicação que a elas se dá pelas viagens de Pitágoras nas Gálias e na Índia, nos parece pouco verosímil naquelas épocas distantes onde as deslocações apresentavam tantas dificuldades. É mais simples, mais lógico, atribuir essas semelhanças às revelações idênticas que provêm do mundo invisível.

  De facto, Pitágoras tinha a sua médium, Théoclea, que ele esposou na velhice. Os druidas possuíam os seus videntes, as suas profetisas, e recebiam inspirações, como afirma Allan Kardec. (vi) De sua parte os brâmanes conheciam todos os meios de se comunicarem com os Pitris (espíritos).

  Os dois mundos, visível e invisível, sempre se corresponderam, e nessa época de fé ardente e de pensamento meditado, nos santuários da natureza, a comunhão era mais fácil, mais intensa e mais profunda. É somente na Idade Média que a Inquisição, o fanatismo católico, montando as fogueiras e condenando ao fogo, sob pretexto de feitiçaria, os médiuns e os videntes, rompeu o laço entre os dois mundos. Ele se reformou nos nossos dias, e nós sabemos, por nós mesmos, que grandes ensinos podem vir das esferas superiores para a humanidade.

  Um dos caracteres distintivos do Druidismo se encontra no seu conhecimento antecipado e aprofundado desse mundo invisível, assim como das forças ocultas da natureza, dessas potências secretas pelas quais se revela o dinamismo divino. Isto que nós sabemos actualmente, graças aos espíritos, das grandes correntes de ondas que percorrem o Universo e que são como artérias da vida universal, correntes de onde derivam as forças fluídicas e magnéticas, os druidas o obtinham das mesmas fontes, reservando o seu uso ao campo psíquico.

  A nossa débil ciência começa a descobrir a sua importância e as aplicações para fim industrial, sem prever as consequências mórbidas e os efeitos destrutivos que elas podem acarretar nas mãos de uma humanidade muito pouco evoluída.

  Um conhecimento mais preciso do ser, de sua natureza e de seu destino se correlacionava a essas concepções de ordem geral. Conforme as Tríades, há três fases, ou círculos, de vida: no “Annoufn”, ou círculo da necessidade, o ser começa sob a forma mais simples; no “Abred” ele se desenvolve, vida após vida, no seio da humanidade e adquire a consciência e o livre-arbítrio; finalmente, no “Gwynfyd” ele desfruta da plenitude da existência e de todos os seus atributos; libertado das formas materiais e da morte, ele evolui para a perfeição superior e atinge o círculo da felicidade.

  As Tríades 12, 13 e 14 assim se exprimem:

  12 – Três círculos de vida:

  o círculo de “Ceugant”, onde não há nenhum outro a não ser Deus, nem vivo nem morto, e ninguém, a não ser Deus, que possa atravessá-lo;

  o círculo de “Abred” (das transmigrações), onde cada estado germina da morte e o homem o atravessa no presente;

  o círculo de “Gwynfyd”, onde cada estado germina da vida e o homem a ele viajará no céu.

  13 – Três estados dos vivos:

  o estado da necessidade no “Annoufn” (abismo ou profundeza escura);

  o estado de liberdade na humanidade;

  o estado de amor, ou o “Gwynfyd”, no céu.

  14 – Três necessidades de toda a existência na vida:

  o começo no “Annoufn”;

  a travessia do “Abred”;

  a plenitude no “Gwynfyd”.

  E sem essas três necessidades ninguém pode existir, excepto Deus.

  Os nascimentos não são, então, um efeito do acaso, mas formas da grande lei da evolução. A vida actual é para cada ser a resultante de suas vidas anteriores e a preparação de suas vidas futuras; ele recolhe os frutos bons ou maus do passado e, segundo os seus méritos ou os seus deméritos, sobe ou desce na via da ascensão. O seu destino está sempre em harmonia com o seu valor moral e o seu grau de progresso.

  Renan, em seus artigos sobre a poesia céltica, na Revue des Deux Mondes, ressalta a distinção que se deve fazer entre as duas doutrinas, céltica e romana. Segundo os druidas, o ser individual possui em si mesmo o seu princípio de independência e de liberdade, o seu génio próprio, as suas forças evolutivas. No Catolicismo é sobretudo pela graça, isto é, por um favor do Alto, que o ser se aperfeiçoa e se eleva.

  Mas essas doutrinas não são inconciliáveis, porque o celta conhece o estreito vínculo que o une ao mundo invisível e aos seres que o povoam. Daí, para ele, o culto dos espíritos dos antepassados e, por extensão, o sentimento de uma solidariedade que o religa à imensa cadeia da vida que se desenrola desde as profundezas do “Annoufn”, o abismo, até às prestigiosas alturas do “Gwynfyd”.

  A doutrina céltica se dirige sobretudo às almas valentes que se esforçam para escalar os altos cumes, a todos aqueles que vêem na vida uma luta constante contra os instintos inferiores, que consideram a prova como uma purificação e evoluem em direcção à luz, em direcção à suprema beleza.

  O Cristianismo é o espírito benévolo que se inclina sobre o sofrimento humano, é a Providência que consola, sustenta, reabilita, é a mão tutelar que guia a ovelha desgarrada e a traz ao aprisco. Essas duas doutrinas se completam entre si e se harmonizam para formar um móvel de perfeição.

  Tudo o que vem de Deus é perfeito, eis por que as três grandes revelações – a oriental, a cristã e a céltica – são idênticas na sua fonte, contudo elas se difundem, se diferenciam e às vezes se desnaturam por obra dos homens. (vii)

  O que impressiona entre os adeptos do Druidismo é a sua fé profunda, a sua confiança absoluta num futuro sem limites. Acima das contingências humanas, mais alto que o nosso livre-arbítrio, fonte ao mesmo tempo de nossa miséria e de nossa grandeza; eles crêem, eles sabem que uma lei de sabedoria e de harmonia reina no mundo e que, finalmente, o Bem triunfará sobre o Mal. É isso o que exprimem as Tríades 43 e 44:

  43 – Três coisas se reforçam dia a dia, visto que a maior soma de esforços vai, sem cessar, em direcção delas: o amor, a ciência, a plena justiça.

  44 – Três coisas se enfraquecem cada dia, porque a maior soma de esforços vai contra elas: o ódio, a deslealdade, a ignorância. (viii)

  Desta certeza decorriam, para os nossos antepassados, essa firmeza nas provações, essa coragem nos combates, que os tornavam legendários e os faziam marchar para o perigo e para a morte como se fossem a uma festa.

  Essas qualidades viris de nossa raça estão bem debilitadas actualmente, sob as forças deletérias e persistentes do materialismo. Observou-se, porém, o seu reaparecimento nas horas memoráveis das guerras do Marne e de Verdun. O novo espiritualismo vem reanimá-las nas nossas almas na medida compatível com o nosso grau de civilização.

 /...

(i) Jean Reynaud, L’Esprit de la Gaule, pp. 13 e 14.
(ii) Obra citada, tomo VI, capítulo XIV.
(iii) Ver mensagem do espírito Allan Kardec no fim desta obra.
(iv) Ver escala druídica e espírita na Revue Spirite, abril de 1858, tópico “O Espiritismo entre os Druidas”. (N.T.)
(v) Ocorre o mesmo a respeito de outras matérias, por exemplo, quanto ao americanismo ou à história da América antes de Cristóvão Colombo.
(vi) Um caso semelhante é o de Sócrates, que era médium e recebia directamente a grande doutrina sem recorrer a viagens, como ele o declara no fim da obra Gorgias, segundo Platão.
(vii) Ver mensagem nº 1, no capítulo XIII.
(viii) Tradução de Llevelyn Sion.




LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – O Druidismo Capítulo VII – Síntese dos druidas, As Tríades; objecções e comentários (1 de 2) 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

domingo, 18 de maio de 2014

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Negros e Índios Terapeutas ~

As manifestações espíritas de negros e índios são comuns, não raro intervindo nos processos de cura. Isso causa espécie a pessoas ainda impregnadas de antigos preconceitos. “Como podem esses espíritos primários ainda apegados à era do barro – dizia-nos famoso jornalista – manifestarem-se como orientadores e terapeutas num meio de civilização superior?” Acontece que a população espiritual da Terra é semelhante à sua população encarnada. Não existem discriminações injustas no tocante às possibilidades de intercâmbio espiritual. O que vale no espírito não é a sua qualificação social, mas a sua condição moral. O processo da reencarnação elimina os motivos dos preconceitos terrenos. Um negro velho, que se manifesta como tal, poderia também manifestar-se apenas como espírito, ou até mesmo como espírito de uma encarnação de amarelo ou de branco por que já passara. Na Inglaterra super-civilizada do século passado o famoso escritor, médico e historiador Arthur Conan Doyle gostava de conversar mediunicamente com espíritos de negros e índios. A entidade hoje considerada, pelos espíritas ingleses, como orientadora do movimento espírita britânico é precisamente Silver Birch, um índio. A sua prudência e sabedoria tornaram-se proverbiais. No Brasil as manifestações de negros e índios são altamente consideradas no meio culto. Um episódio curioso deve ser lembrado como altamente significativo. O cirurgião-dentista católico, Dr. Urbano de Assis Xavier, começou a sofrer inesperadamente de ocorrências mediúnicas, que atribuiu a manifestações epileptóides. Um espírito de negro velho, que dava o nome de Pai Jacó, aconselhou-o a procurar em Matão (SP) o farmacêutico Cairbar Schutel, de origem alemã, director de um jornal e uma revista espíritas. Schutel resolveu submetê-lo a uma experiência mediúnica, mas disse: “Não me agrada a presença desse preto velho”. Realizada a experiência, Schutel disse a Urbano: “Nunca gostei dessas manifestações de negros e índios, mas o seu Pai Jacó encheu-me as medidas, revelando um conhecimento doutrinário que me assombrou.” Mais tarde Pai Jacó explicou a Schutel que ele havia sido um médico holandês em encarnação anterior, mas na última viera como negro. E como nela aprendera e desenvolvera a virtude da humildade, preferia manifestar-se como preto velho.

A famosa médium Yvonne Pereira relata o caso de um índio brasileiro que a auxiliava nos seus desprendimentos mediúnicos, salvando-a de dificuldades diversas. Um ilustre magistrado da Justiça Paulista recebia, ele mesmo, como médium nos seus trabalhos regulares de Espiritismo, o espírito de um índio. São muitos os casos dessa natureza, e as explicações a respeito, dadas pelos próprios espíritos manifestantes, reportam-se sempre às aquisições de virtudes morais que fizeram em encarnações humildes. Parece haver também, nessas manifestações, por sua constância e regularidade, uma acção programada no sentido de mostrar a iniquidade das discriminações raciais. O espírito moralmente elevado não se prende aos tolos condicionamentos e preconceitos dos homens. No Brasil e em toda a América a influência das religiões primitivas de negros e índios são bem marcantes. A terapêutica ingénua dos rituais negros e das beberagens indígenas domina praticamente toda a medicina popular. As crendices mais primitivas gozam de enorme prestígio. As manifestações de espíritos de negros e índios têm contribuído, de maneira ambivalente, para o repúdio e a procura das organizações espíritas. A peneira doutrinária, usada sempre por pessoas de nível cultural acima do vulgar, vai aos poucos corrigindo os excessos do sincretismo religioso, já bastante pesquisado e estudado pelos nossos sociólogos. A mentalidade espírita, já desenvolvida em extensas camadas da população, vai demarcando as linhas evolutivas do processo de depuração. Cabe aos líderes espíritas acelerarem esse processo, com uma difusão mais acentuada e segura dos princípios doutrinários, através das obras fundamentais de Allan Kardec. Negros e índios têm o mesmo direito de colaborar nesta hora de transição, como brancos e amarelos. Mas sem a orientação segura do pensamento doutrinário, nas bases sólidas, lógicas e altamente culturais de Kardec, estaremos ameaçados de cair nos barrancos do caminho pelas mãos pretensiosas de cegos condutores de cegos.

Essa exigência de Kardec nas actividades espíritas é tão natural como a de Cristo no desenvolvimento do Cristianismo. Porque ambos encarnaram, em suas manifestações ônticas e existenciais, cada qual a seu tempo, os princípios fundamentais da revolução conceptual cristã-espírita que ora se realiza de maneira decisiva na preparação da Era Cósmica. Esta não é uma afirmação gratuita, pois visível no processo histórico, nas revelações da pesquisa espírita mundial, nas manifestações de entidades espirituais superiores e na constatação dos examinadores conscientes cultural e espiritualmente capacitados das coordenadas cristãs e espíritas no mundo. Kardec não é dogma, é razão. Temos de nos orientar pela sua obra, porque não existe outra que coloque os problemas cristãos e espíritas com tanta clareza e segurança, sem mistificações e alucinações, impondo-se a todas as mentes racionais e clarividentes que tomaram contacto, em todo o mundo, com a obra kardeciana. É ingénuo ou pretensioso, louco ou megalómano todo aquele que se atreve a tocar na obra de Kardec com a intenção estúpida de adaptá-la aos tempos actuais, para os quais ela foi especialmente elaborada. Essas criaturas insensatas e auto-convencidas de uma lucidez que não possuem, da qual jamais deram a mínima prova, só fizeram até hoje confundir as mentes submissas, acostumadas ao pastoreio clerical. Viciadas a submeter-se aos reformadores providenciais que ensanguentaram a Terra, essas criaturas desviam-se do roteiro cristão e espírita.

A história recente das loucuras de reformadores insensatos está diante de nós no panorama actual do mundo. Os que rejeitam Kardec para aceitar renovadores grotescos de sua obra fazem o papel dos porcos do Evangelho, que refugam as pérolas da verdade porque só desejam o milho da vaidade. Não podem provar os seus dons de profecia, porque só possuem as alucinações de uma vaidade desmedida. As teclas falsas de suas pianolas grotescas só não ferem os ouvidos entorpecidos pela ignorância.

Negros e índios dotados de humildade, não apegados às suas religiões de origem selvagem, formam na linha humilde dos voluntários de boa-vontade que nada querem para si mesmos e tudo almejam de verdadeiro e bom, de legítimo e puro para toda a Humanidade. Igualam-se na simplicidade natural dos povos primitivos. Levados à lei de adoração, deslumbram-se com as manifestações dos espíritos superiores e mostram-se sensíveis à doutrinação espírita. A bondade natural do homem antes da queda social da teoria de Rousseau renasce nesses espíritos que aprenderam a solidariedade tribal na selva. Aprenderam na educação tribal, que as pesquisas antropológicas e pedagógicas revelaram ser sempre tocada de bondade e paciência, o respeito pelos companheiros e aliados, só considerando como maldosas as criaturas inimigas. Essa ingenuidade selvagem, desenvolvida no contacto com a natureza, como observou Ernesto Bozzano em Popoli Primitive e Manifestazzioni Supernormale, permite as relações paranormais entre homens e espíritos, numa cosmossociologia semelhante à que Durkhaem assinalou na condição natural das cidades gregas antigas, em que deuses e homens conviviam em plena Natureza. Dessa maneira, os espíritos de negros e índios utilizam-se também, quando permitido pelos espíritos superiores, de sua terapêutica primitiva e natural, misturando práticas das selvas da América e da África. É a contribuição paranormal ou espírita à medicina folclórica ou popular.

Essa miscigenação cultural, amplamente difundida em toda a América, não corre por conta dos negros e índios, mas dos brancos que, por interesses subalternos e de maneira cruel os arrancaram de suas nações para submetê-los à escravidão. Espíritos europeus arrogantes, que se encharcaram de orgulho nas civilizações de guerras de conquistas, reencarnam-se nas selvas para obterem a cura de suas deformações morais e preferem, nas suas relações de pós-morte com os brancos, apresentar-se como negros ou índios, pois, como disse um deles a Yvonne Pereira, “não gostaria de apresentar-se como bandoleiro, assaltante e assassino que foi nas civilizações ditas refinadas”.

O Espiritismo explica a complexidade desse problema e revela a sua grandeza moral no desenvolvimento espiritual da humanidade. É precisamente no plano social terreno, onde a dispersão da unidade humana gera as discriminações, que a reintegração na unidade se vai processar no difícil aprendizado do princípio do amor ao próximo. Negros, amarelos, vermelhos, pardos e brancos desenvolvem as suas aptidões humanas de maneira progressiva, em comum no processo existencial, tendendo sempre para o restabelecimento da unidade. Todas as características do homem, desde a sua constituição física, o desenvolvimento corporal, os desejos, a vontade e as aspirações, até a estrutura da consciência, são do mesmo padrão em todas as raças e sub-raças de cada era do mundo. Cassirer podia acrescentar à sua teoria da noite e do dia, dos homens nocturnos e dos homens diurnos, a teoria da miscigenação universal para a restauração da unidade espiritual e material das espécies num futuro já hoje perceptível. A fragmentação platónica dos arquétipos na matéria se apresenta, à luz do Espiritismo, como um processo de dinamização das potencialidades arquetípicas dos seres na multiplicidade, para uma volta enriquecida à unidade dinâmica visualizada da teoria de Geley. Por isso Léon Denis considerou, em seu livro O Génio Céltico e o Mundo Invisível, o Espiritismo, na sua expressão teórica, como doutrina, e na sua realidade prática, como uma síntese factual do Todo Universal. E isso muito antes de A Grande Síntese de Ubaldi e da obra de Teilhard de Chardin sobre o processo da evolução humana. A visão do Druida de Lorena, como Conan Doyle chamava a Denis, foi uma precognição espantosa, como as que ocorriam no mundo celta.

O homem, com todo o seu orgulho, não passa de um fragmento de ser. A lenda socrática dos andróginos, que Zeus cortou em duas metades, equivale à lenda bíblica de Adão e Eva, criados separadamente para se ligarem na parelha humana. A grandeza do homem não está no seu físico, que não passa de uma metade biológica, necessitando da outra metade para reproduzir-se. Toda a grandeza do homem está no seu espírito, que cria por si mesmo, acima e além das exigências materiais. É no espírito que as unidades perdidas se reencontram e se refundem, como na lenda balzaquiana de Seraphite, o ser total.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Negros e Índios Terapeutas, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

o grande desconhecido ~

O GRANDE DESCONHECIDO |

Todos falam de Espiritismo, bem ou mal. Mas poucos o conhecem. Geralmente o consideram como uma seita religiosa comum, carregada de superstições. Muitos o vêem como uma tentativa de sistematização de crendices populares, onde todos os absurdos podem ser encontrados. Há os que o aceitam como nova Goécia, magia negra da Antiguidade disfarçada de Cristianismo milagreiro. Grandes cientistas se deixaram envolver nos seus problemas e se desmoralizaram. Outros entendem que podem encontrar nele a solução para todos os seus problemas, conseguir filtros de amor e os 13 pontos da Lotaria Desportiva. E na verdade os seus próprios adeptos não o conhecem. Quem se diz espírita arrisca-se a ser procurado para fazer macumba, despachos contra inimigos ou curas milagrosas de doenças incuráveis. Grandes instituições espíritas, geralmente fundadas por pessoas sérias, tornam-se às vezes verdadeiras fontes de confusão a respeito do sentido e da natureza da doutrina. O Espiritismo, nascido ontem, nos meados do século passado, é hoje o Grande Desconhecido dos que o aprovam e o louvam e dos que o atacam e criticam.

Durante muito tempo ele foi encarado com pavor pelos religiosos, que viam nele uma criação diabólica para a perdição das almas. Falar em fenómenos espíritas era provocar votos de esconjuro. Ler um livro espírita era pecado mortal, comprar passagem directa para o Caldeirão de Belzebu. Médicos ilustres chegaram a classificar o Espiritismo como fábrica de loucos. Quando começaram a surgir os hospitais espíritas para doenças mentais, alegaram que os espíritas procuravam curar loucos que eles mesmos faziam para aliviar as suas consciências pesadas. E quando viram que o Espiritismo realmente curava loucos incuráveis, diziam que os demónios se entendiam entre si para lograr o povo.

Hoje a situação mudou. Existem sociedades de médicos espíritas e as pesquisas de fenómenos mediúnicos invadiu as maiores Universidades do Mundo. Não se pode negar que a coisa é séria, mas definir o Espiritismo não é fácil. Porque ninguém o conhece, ninguém acredita que se precisa estudá-lo, pensam quase todos que se aprende a doutrina ouvindo espíritos. Os intelectuais espíritas são confundidos com médiuns. Quem escreve sobre Espiritismo não escreve, faz psicografia. Acham que para estudar a doutrina é preciso desenvolver a mediunidade e receber maravilhosas lições de Espíritos Superiores.

Não obstante, o Espiritismo é uma doutrina moderna, perfeitamente estruturada por um grande pensador, escritor e pedagogo francês, homem de letras e ciências, famoso por sua cultura e seus trabalhos científicos e que assinou as suas obras espíritas com o pseudónimo de Allan Kardec. Saber isso já é saber alguma coisa a respeito, mas está muito longe de ser tudo Doutrina complexa, que abrange todo o campo do Conhecimento, apresenta-se enquadrada na sequência epistemológica de:

a) Ciência – como pesquisa dos chamados fenómenos paranormais, dotada de métodos próprios, específicos e adequados ao objecto que investiga, tendo dado origem a todas as ciências do paranormal, até à Parapsicologia actual e ao seu ramo romeno, que se disfarça sob o nome pouco conhecido de Psicotrónica, para não assustar os materialistas.

b) Filosofia – como interpretação da natureza dos fenómenos e reformulação da concepção do mundo e de toda a realidade segundo as novas descobertas científicas; aceita Oficialmente no plano filosófico, consta do Dicionário Filosófico do Instituto de França; no Brasil, reconhecida pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, constando do volume Panorama da Filosofia em São Pauto, edição conjunta do Instituto e da Universidade de São Paulo, coordenação do Prof. Luiz Washington Vitta.

c) Religião – como consequência das conclusões filosóficas, baseadas nas provas da sobrevivência humana após a morte e nas ligações históricas e genésicas do Cristianismo com o Espiritismo; considerado como a Religião em Espírito e Verdade, anunciada por Jesus, segundo os Evangelhos; religião espiritual, sem aparatos formais, dogmas de fé ou instituição igrejeira, sem sacramentos.

d) Essa sequência – obedece as leis da Gnosiologia, pelas quais o conhecimento começa nas experiências do homem com o mundo e se desenvolve nas ilações do pensamento, na cogitação filosófica e determina o comportamento humano dentro do quadro da realidade conhecida; como no Espiritismo essa realidade supera os limites da vida física, a moral se projecta no plano das relações do homem com a Divindade, adquirindo sentido religioso.

Colocado assim o problema, a complexidade do Espiritismo se torna facilmente compreensível. Tudo no Universo se processa mediante a acção e o controle de leis naturais, que correspondem à imanência de Deus no Mundo através de suas leis. Toda a realidade verificável é natural, de maneira que os espíritos e as suas manifestações não são sobrenaturais, mas factos naturais explicáveis, resultantes de leis que a pesquisa científica esclarece. O Sobrenatural só se refere a Deus, cuja natureza não é acessível ao homem neste estágio de sua evolução, mas o será possivelmente, quando o homem atingir os graus superiores de sua evolução. Todas as possibilidades estão abertas e franqueadas ao homem em todo o Universo, desde que ele avance no desenvolvimento de suas potencialidades espirituais, segundo as leis da transcendência.

Este volume procura dar uma visão geral do Espiritismo em forma de exposição livre, sem um esquematismo didáctico, mostrando as conotações da Doutrina com as posições culturais da actualidade. Não se trata da suposta actualização tentada por autores que desconhecem as dimensões do Espiritismo e não podem relacioná-la com os avanços científicos, tecnológicos, filosóficos e religiosos da actualidade. A actualização, no caso, é do método expositivo, que revela a plena actualidade da Doutrina e desenvolve alguns temas kardecianos em forma de exposição mais minuciosa, para melhor compreensão dos leitores. A actualização da linguagem e da terminologia doutrinárias nas obras de Kardec é uma pretensão descabida. Cada doutrina, científica ou filosófica, tem a sua própria terminologia, que só se transforma diante de novos factos ocorridos na pesquisa. Por outro lado, essas actualizações, como sabem os especialistas, geralmente se transformam em atentados à doutrina, pela falta de conhecimento dos que pretendem fazê-las. Uma doutrina actualiza-se na proporção em que evolui, com acréscimos reais de conhecimentos no desenvolvimento de seus princípios. Não existe, no mundo actual nenhum centro de pesquisas e estudos espíritas que tenha avançado legalmente além de Kardec, através da descoberta de novas leis da realidade espírita. O Espiritismo avança, pelos seus princípios e os seus conceitos, muito além da realidade actual. E mesmo que não avançasse, ninguém teria o direito de interferir na obra de Kardec, como na obra de qualquer outro cientista. É livre o direito de contestar através de outras obras, mas não há direito nenhum que permita a um pintamonos desfigurar as obras clássicas da cultura mundial.

Os capítulos deste livro correspondem a exposições doutrinárias feitas pelo autor em várias ocasiões, em palestras feitas com debates, até mesmo em numerosas Faculdades de Teologia católicas e protestantes, bem como em debates de televisão. Por isso, são capítulos escritos em linguagem livre, dando ao leitor a possibilidade de discutir os problemas consigo mesmo, tentando refutar as teses expostas. Esperamos que os meios espíritas, particularmente aproveitem estes capítulos para uma incursão mais corajosa nas possibilidades de conhecimento que o Espiritismo nos oferece em todos os campos das actividades humanas e em face dos múltiplos problemas que nos desafiam nesta hora de transição da cultura humana.

São anos de estudos, experiências, investigações e intuições espirituais que se acumulam nestas páginas, ao correr das teclas, mas sob rigoroso controlo da razão. Que no Espiritismo tudo deve ser rigorosamente submetido a apreciações e críticas racionais.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, O Grande Desconhecido 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)