Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 18 de maio de 2014

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Negros e Índios Terapeutas ~

As manifestações espíritas de negros e índios são comuns, não raro intervindo nos processos de cura. Isso causa espécie a pessoas ainda impregnadas de antigos preconceitos. “Como podem esses espíritos primários ainda apegados à era do barro – dizia-nos famoso jornalista – manifestarem-se como orientadores e terapeutas num meio de civilização superior?” Acontece que a população espiritual da Terra é semelhante à sua população encarnada. Não existem discriminações injustas no tocante às possibilidades de intercâmbio espiritual. O que vale no espírito não é a sua qualificação social, mas a sua condição moral. O processo da reencarnação elimina os motivos dos preconceitos terrenos. Um negro velho, que se manifesta como tal, poderia também manifestar-se apenas como espírito, ou até mesmo como espírito de uma encarnação de amarelo ou de branco por que já passara. Na Inglaterra super-civilizada do século passado o famoso escritor, médico e historiador Arthur Conan Doyle gostava de conversar mediunicamente com espíritos de negros e índios. A entidade hoje considerada, pelos espíritas ingleses, como orientadora do movimento espírita britânico é precisamente Silver Birch, um índio. A sua prudência e sabedoria tornaram-se proverbiais. No Brasil as manifestações de negros e índios são altamente consideradas no meio culto. Um episódio curioso deve ser lembrado como altamente significativo. O cirurgião-dentista católico, Dr. Urbano de Assis Xavier, começou a sofrer inesperadamente de ocorrências mediúnicas, que atribuiu a manifestações epileptóides. Um espírito de negro velho, que dava o nome de Pai Jacó, aconselhou-o a procurar em Matão (SP) o farmacêutico Cairbar Schutel, de origem alemã, director de um jornal e uma revista espíritas. Schutel resolveu submetê-lo a uma experiência mediúnica, mas disse: “Não me agrada a presença desse preto velho”. Realizada a experiência, Schutel disse a Urbano: “Nunca gostei dessas manifestações de negros e índios, mas o seu Pai Jacó encheu-me as medidas, revelando um conhecimento doutrinário que me assombrou.” Mais tarde Pai Jacó explicou a Schutel que ele havia sido um médico holandês em encarnação anterior, mas na última viera como negro. E como nela aprendera e desenvolvera a virtude da humildade, preferia manifestar-se como preto velho.

A famosa médium Yvonne Pereira relata o caso de um índio brasileiro que a auxiliava nos seus desprendimentos mediúnicos, salvando-a de dificuldades diversas. Um ilustre magistrado da Justiça Paulista recebia, ele mesmo, como médium nos seus trabalhos regulares de Espiritismo, o espírito de um índio. São muitos os casos dessa natureza, e as explicações a respeito, dadas pelos próprios espíritos manifestantes, reportam-se sempre às aquisições de virtudes morais que fizeram em encarnações humildes. Parece haver também, nessas manifestações, por sua constância e regularidade, uma acção programada no sentido de mostrar a iniquidade das discriminações raciais. O espírito moralmente elevado não se prende aos tolos condicionamentos e preconceitos dos homens. No Brasil e em toda a América a influência das religiões primitivas de negros e índios são bem marcantes. A terapêutica ingénua dos rituais negros e das beberagens indígenas domina praticamente toda a medicina popular. As crendices mais primitivas gozam de enorme prestígio. As manifestações de espíritos de negros e índios têm contribuído, de maneira ambivalente, para o repúdio e a procura das organizações espíritas. A peneira doutrinária, usada sempre por pessoas de nível cultural acima do vulgar, vai aos poucos corrigindo os excessos do sincretismo religioso, já bastante pesquisado e estudado pelos nossos sociólogos. A mentalidade espírita, já desenvolvida em extensas camadas da população, vai demarcando as linhas evolutivas do processo de depuração. Cabe aos líderes espíritas acelerarem esse processo, com uma difusão mais acentuada e segura dos princípios doutrinários, através das obras fundamentais de Allan Kardec. Negros e índios têm o mesmo direito de colaborar nesta hora de transição, como brancos e amarelos. Mas sem a orientação segura do pensamento doutrinário, nas bases sólidas, lógicas e altamente culturais de Kardec, estaremos ameaçados de cair nos barrancos do caminho pelas mãos pretensiosas de cegos condutores de cegos.

Essa exigência de Kardec nas actividades espíritas é tão natural como a de Cristo no desenvolvimento do Cristianismo. Porque ambos encarnaram, em suas manifestações ônticas e existenciais, cada qual a seu tempo, os princípios fundamentais da revolução conceptual cristã-espírita que ora se realiza de maneira decisiva na preparação da Era Cósmica. Esta não é uma afirmação gratuita, pois visível no processo histórico, nas revelações da pesquisa espírita mundial, nas manifestações de entidades espirituais superiores e na constatação dos examinadores conscientes cultural e espiritualmente capacitados das coordenadas cristãs e espíritas no mundo. Kardec não é dogma, é razão. Temos de nos orientar pela sua obra, porque não existe outra que coloque os problemas cristãos e espíritas com tanta clareza e segurança, sem mistificações e alucinações, impondo-se a todas as mentes racionais e clarividentes que tomaram contacto, em todo o mundo, com a obra kardeciana. É ingénuo ou pretensioso, louco ou megalómano todo aquele que se atreve a tocar na obra de Kardec com a intenção estúpida de adaptá-la aos tempos actuais, para os quais ela foi especialmente elaborada. Essas criaturas insensatas e auto-convencidas de uma lucidez que não possuem, da qual jamais deram a mínima prova, só fizeram até hoje confundir as mentes submissas, acostumadas ao pastoreio clerical. Viciadas a submeter-se aos reformadores providenciais que ensanguentaram a Terra, essas criaturas desviam-se do roteiro cristão e espírita.

A história recente das loucuras de reformadores insensatos está diante de nós no panorama actual do mundo. Os que rejeitam Kardec para aceitar renovadores grotescos de sua obra fazem o papel dos porcos do Evangelho, que refugam as pérolas da verdade porque só desejam o milho da vaidade. Não podem provar os seus dons de profecia, porque só possuem as alucinações de uma vaidade desmedida. As teclas falsas de suas pianolas grotescas só não ferem os ouvidos entorpecidos pela ignorância.

Negros e índios dotados de humildade, não apegados às suas religiões de origem selvagem, formam na linha humilde dos voluntários de boa-vontade que nada querem para si mesmos e tudo almejam de verdadeiro e bom, de legítimo e puro para toda a Humanidade. Igualam-se na simplicidade natural dos povos primitivos. Levados à lei de adoração, deslumbram-se com as manifestações dos espíritos superiores e mostram-se sensíveis à doutrinação espírita. A bondade natural do homem antes da queda social da teoria de Rousseau renasce nesses espíritos que aprenderam a solidariedade tribal na selva. Aprenderam na educação tribal, que as pesquisas antropológicas e pedagógicas revelaram ser sempre tocada de bondade e paciência, o respeito pelos companheiros e aliados, só considerando como maldosas as criaturas inimigas. Essa ingenuidade selvagem, desenvolvida no contacto com a natureza, como observou Ernesto Bozzano em Popoli Primitive e Manifestazzioni Supernormale, permite as relações paranormais entre homens e espíritos, numa cosmossociologia semelhante à que Durkhaem assinalou na condição natural das cidades gregas antigas, em que deuses e homens conviviam em plena Natureza. Dessa maneira, os espíritos de negros e índios utilizam-se também, quando permitido pelos espíritos superiores, de sua terapêutica primitiva e natural, misturando práticas das selvas da América e da África. É a contribuição paranormal ou espírita à medicina folclórica ou popular.

Essa miscigenação cultural, amplamente difundida em toda a América, não corre por conta dos negros e índios, mas dos brancos que, por interesses subalternos e de maneira cruel os arrancaram de suas nações para submetê-los à escravidão. Espíritos europeus arrogantes, que se encharcaram de orgulho nas civilizações de guerras de conquistas, reencarnam-se nas selvas para obterem a cura de suas deformações morais e preferem, nas suas relações de pós-morte com os brancos, apresentar-se como negros ou índios, pois, como disse um deles a Yvonne Pereira, “não gostaria de apresentar-se como bandoleiro, assaltante e assassino que foi nas civilizações ditas refinadas”.

O Espiritismo explica a complexidade desse problema e revela a sua grandeza moral no desenvolvimento espiritual da humanidade. É precisamente no plano social terreno, onde a dispersão da unidade humana gera as discriminações, que a reintegração na unidade se vai processar no difícil aprendizado do princípio do amor ao próximo. Negros, amarelos, vermelhos, pardos e brancos desenvolvem as suas aptidões humanas de maneira progressiva, em comum no processo existencial, tendendo sempre para o restabelecimento da unidade. Todas as características do homem, desde a sua constituição física, o desenvolvimento corporal, os desejos, a vontade e as aspirações, até a estrutura da consciência, são do mesmo padrão em todas as raças e sub-raças de cada era do mundo. Cassirer podia acrescentar à sua teoria da noite e do dia, dos homens nocturnos e dos homens diurnos, a teoria da miscigenação universal para a restauração da unidade espiritual e material das espécies num futuro já hoje perceptível. A fragmentação platónica dos arquétipos na matéria se apresenta, à luz do Espiritismo, como um processo de dinamização das potencialidades arquetípicas dos seres na multiplicidade, para uma volta enriquecida à unidade dinâmica visualizada da teoria de Geley. Por isso Léon Denis considerou, em seu livro O Génio Céltico e o Mundo Invisível, o Espiritismo, na sua expressão teórica, como doutrina, e na sua realidade prática, como uma síntese factual do Todo Universal. E isso muito antes de A Grande Síntese de Ubaldi e da obra de Teilhard de Chardin sobre o processo da evolução humana. A visão do Druida de Lorena, como Conan Doyle chamava a Denis, foi uma precognição espantosa, como as que ocorriam no mundo celta.

O homem, com todo o seu orgulho, não passa de um fragmento de ser. A lenda socrática dos andróginos, que Zeus cortou em duas metades, equivale à lenda bíblica de Adão e Eva, criados separadamente para se ligarem na parelha humana. A grandeza do homem não está no seu físico, que não passa de uma metade biológica, necessitando da outra metade para reproduzir-se. Toda a grandeza do homem está no seu espírito, que cria por si mesmo, acima e além das exigências materiais. É no espírito que as unidades perdidas se reencontram e se refundem, como na lenda balzaquiana de Seraphite, o ser total.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Negros e Índios Terapeutas, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

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