Negros e Índios Terapeutas ~
As manifestações espíritas de negros e índios são comuns,
não raro intervindo nos processos de cura. Isso causa espécie a pessoas ainda
impregnadas de antigos preconceitos. “Como podem esses espíritos primários
ainda apegados à era do barro – dizia-nos famoso jornalista – manifestarem-se
como orientadores e terapeutas num meio de civilização superior?” Acontece que
a população espiritual da Terra é semelhante à sua população encarnada. Não
existem discriminações injustas no tocante às possibilidades de intercâmbio
espiritual. O que vale no espírito não é a sua qualificação social, mas a sua
condição moral. O processo da reencarnação elimina os motivos dos preconceitos
terrenos. Um negro velho, que se manifesta como tal, poderia também
manifestar-se apenas como espírito, ou até mesmo como espírito de uma
encarnação de amarelo ou de branco por que já passara. Na Inglaterra
super-civilizada do século passado o famoso escritor, médico e historiador
Arthur Conan Doyle gostava de conversar mediunicamente com espíritos de negros
e índios. A entidade hoje considerada, pelos espíritas ingleses, como
orientadora do movimento espírita britânico é precisamente Silver Birch, um
índio. A sua prudência e sabedoria tornaram-se proverbiais. No Brasil as
manifestações de negros e índios são altamente consideradas no meio culto. Um
episódio curioso deve ser lembrado como altamente significativo. O
cirurgião-dentista católico, Dr. Urbano de Assis Xavier, começou a sofrer
inesperadamente de ocorrências mediúnicas, que atribuiu a manifestações epileptóides.
Um espírito de negro velho, que dava o nome de Pai Jacó, aconselhou-o a
procurar em Matão (SP) o farmacêutico Cairbar Schutel, de origem alemã, director
de um jornal e uma revista espíritas. Schutel resolveu submetê-lo a uma experiência
mediúnica, mas disse: “Não me agrada a presença desse preto velho”. Realizada a
experiência, Schutel disse a Urbano: “Nunca gostei dessas manifestações de negros
e índios, mas o seu Pai Jacó encheu-me as medidas, revelando um conhecimento
doutrinário que me assombrou.” Mais tarde Pai Jacó explicou a Schutel que ele
havia sido um médico holandês em encarnação anterior, mas na última viera como
negro. E como nela aprendera e desenvolvera a virtude da humildade, preferia
manifestar-se como preto velho.
A famosa médium Yvonne Pereira relata o caso de um índio
brasileiro que a auxiliava nos seus desprendimentos mediúnicos, salvando-a de
dificuldades diversas. Um ilustre magistrado da Justiça Paulista recebia, ele
mesmo, como médium nos seus trabalhos regulares de Espiritismo, o espírito de
um índio. São muitos os casos dessa natureza, e as explicações a respeito,
dadas pelos próprios espíritos manifestantes, reportam-se sempre às aquisições
de virtudes morais que fizeram em encarnações humildes. Parece haver também,
nessas manifestações, por sua constância e regularidade, uma acção programada
no sentido de mostrar a iniquidade das discriminações raciais. O espírito
moralmente elevado não se prende aos tolos condicionamentos e preconceitos dos
homens. No Brasil e em toda a América a influência das religiões primitivas de
negros e índios são bem marcantes. A terapêutica ingénua dos rituais negros e
das beberagens indígenas domina
praticamente toda a medicina popular. As crendices mais primitivas gozam de
enorme prestígio. As manifestações de espíritos de negros e índios têm
contribuído, de maneira ambivalente, para o repúdio e a procura das
organizações espíritas. A peneira doutrinária, usada sempre por pessoas de
nível cultural acima do vulgar, vai aos poucos corrigindo os excessos do
sincretismo religioso, já bastante pesquisado e estudado pelos nossos sociólogos.
A mentalidade espírita, já desenvolvida em extensas camadas da população, vai
demarcando as linhas evolutivas do processo de depuração. Cabe aos líderes
espíritas acelerarem esse processo, com uma difusão mais acentuada e segura dos
princípios doutrinários, através das obras fundamentais de Allan Kardec. Negros
e índios têm o mesmo direito de colaborar nesta hora de transição, como brancos
e amarelos. Mas sem a orientação segura do pensamento doutrinário, nas bases
sólidas, lógicas e altamente culturais de Kardec, estaremos ameaçados de cair
nos barrancos do caminho pelas mãos pretensiosas de cegos condutores de cegos.
Essa exigência de Kardec nas actividades espíritas é tão
natural como a de Cristo no desenvolvimento do Cristianismo. Porque ambos
encarnaram, em suas manifestações ônticas e existenciais, cada qual a seu
tempo, os princípios fundamentais da revolução conceptual cristã-espírita que
ora se realiza de maneira decisiva na preparação da Era Cósmica. Esta não é uma
afirmação gratuita, pois visível no processo histórico, nas revelações da
pesquisa espírita mundial, nas manifestações de entidades espirituais
superiores e na constatação dos examinadores conscientes cultural e
espiritualmente capacitados das coordenadas cristãs e espíritas no mundo.
Kardec não é dogma, é razão. Temos de nos orientar pela sua obra, porque não
existe outra que coloque os problemas cristãos e espíritas com tanta clareza e
segurança, sem mistificações e alucinações, impondo-se a todas as mentes
racionais e clarividentes que tomaram contacto, em todo o mundo, com a obra
kardeciana. É ingénuo ou pretensioso, louco ou megalómano todo aquele que se
atreve a tocar na obra de Kardec com a intenção estúpida de adaptá-la aos
tempos actuais, para os quais ela foi especialmente elaborada. Essas criaturas
insensatas e auto-convencidas de uma lucidez que não possuem, da qual jamais
deram a mínima prova, só fizeram até hoje confundir as mentes submissas, acostumadas
ao pastoreio clerical. Viciadas a submeter-se aos reformadores providenciais
que ensanguentaram a Terra, essas criaturas desviam-se do roteiro cristão e
espírita.
A história recente das loucuras de reformadores insensatos
está diante de nós no panorama actual do mundo. Os que rejeitam Kardec para
aceitar renovadores grotescos de sua obra fazem o papel dos porcos do
Evangelho, que refugam as pérolas da verdade porque só desejam o milho da
vaidade. Não podem provar os seus dons de profecia, porque só possuem as
alucinações de uma vaidade desmedida. As teclas falsas de suas pianolas grotescas
só não ferem os ouvidos entorpecidos pela ignorância.
Negros e índios dotados de humildade, não apegados às suas
religiões de origem selvagem, formam na linha humilde dos voluntários de
boa-vontade que nada querem para si mesmos e tudo almejam de verdadeiro e bom,
de legítimo e puro para toda a Humanidade. Igualam-se na simplicidade natural
dos povos primitivos. Levados à lei de adoração, deslumbram-se com as manifestações
dos espíritos superiores e mostram-se sensíveis à doutrinação espírita. A
bondade natural do homem antes da queda social da teoria de Rousseau renasce
nesses espíritos que aprenderam a solidariedade tribal na selva. Aprenderam na
educação tribal, que as pesquisas antropológicas e pedagógicas revelaram ser
sempre tocada de bondade e paciência, o respeito pelos companheiros e aliados,
só considerando como maldosas as criaturas inimigas. Essa ingenuidade selvagem,
desenvolvida no contacto com a natureza, como observou Ernesto Bozzano em Popoli Primitive e Manifestazzioni
Supernormale, permite as relações paranormais entre homens e espíritos,
numa cosmossociologia semelhante à que Durkhaem assinalou na condição natural
das cidades gregas antigas, em que deuses e homens conviviam em plena Natureza.
Dessa maneira, os espíritos de negros e índios utilizam-se também, quando
permitido pelos espíritos superiores, de sua terapêutica primitiva e natural,
misturando práticas das selvas da América e da África. É a contribuição
paranormal ou espírita à medicina folclórica ou popular.
Essa miscigenação cultural, amplamente difundida em toda a
América, não corre por conta dos negros e índios, mas dos brancos que, por
interesses subalternos e de maneira cruel os arrancaram de suas nações para
submetê-los à escravidão. Espíritos europeus arrogantes, que se encharcaram de
orgulho nas civilizações de guerras de conquistas, reencarnam-se nas selvas
para obterem a cura de suas deformações morais e preferem, nas suas relações de
pós-morte com os brancos, apresentar-se como negros ou índios, pois, como disse
um deles a Yvonne Pereira, “não gostaria de apresentar-se como bandoleiro,
assaltante e assassino que foi nas civilizações ditas refinadas”.
O Espiritismo explica a complexidade desse problema e revela
a sua grandeza moral no desenvolvimento espiritual da humanidade. É
precisamente no plano social terreno, onde a dispersão da unidade humana gera
as discriminações, que a reintegração na unidade se vai processar no difícil
aprendizado do princípio do amor ao próximo. Negros, amarelos, vermelhos,
pardos e brancos desenvolvem as suas aptidões humanas de maneira progressiva,
em comum no processo existencial, tendendo sempre para o restabelecimento da
unidade. Todas as características do homem, desde a sua constituição física, o
desenvolvimento corporal, os desejos, a vontade e as aspirações, até a
estrutura da consciência, são do mesmo padrão em todas as raças e sub-raças de
cada era do mundo. Cassirer podia acrescentar à sua teoria da noite e do dia,
dos homens nocturnos e dos homens diurnos, a teoria da miscigenação universal
para a restauração da unidade espiritual e material das espécies num futuro já
hoje perceptível. A fragmentação platónica dos arquétipos na matéria se
apresenta, à luz do Espiritismo, como um processo de dinamização das
potencialidades arquetípicas dos seres na multiplicidade, para uma volta
enriquecida à unidade dinâmica visualizada da teoria de Geley. Por isso Léon Denis considerou, em seu livro O Génio
Céltico e o Mundo Invisível, o Espiritismo, na sua expressão teórica, como
doutrina, e na sua realidade prática, como uma síntese factual do Todo
Universal. E isso muito antes de A Grande
Síntese de Ubaldi e da obra de Teilhard de Chardin sobre o processo da
evolução humana. A visão do Druida de Lorena, como Conan Doyle chamava a Denis,
foi uma precognição espantosa, como as que ocorriam no mundo celta.
O homem, com todo o seu orgulho, não passa de um fragmento
de ser. A lenda socrática dos andróginos, que Zeus cortou em duas metades,
equivale à lenda bíblica de Adão e Eva, criados separadamente para se ligarem
na parelha humana. A grandeza do homem não está no seu físico, que não passa de
uma metade biológica, necessitando da outra metade para reproduzir-se. Toda a
grandeza do homem está no seu espírito, que cria por si mesmo, acima e além das
exigências materiais. É no espírito que as unidades perdidas se reencontram e
se refundem, como na lenda balzaquiana de Seraphite,
o ser total.
/…
José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Negros e Índios Terapeutas, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar
de névoa, pintura de Caspar David
Friedrich)
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