Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 22 de março de 2022

o grande desconhecido ~


O Problema das Mistificações 

(I de II) 

Durante um século tudo se fez para reduzir o Espiritismo a um caso de truques e malabarismos. A Igreja insistia na tese diabólica. E os cientistas que se atreviam a enfrentar a questão com seriedade eram ridicularizados, ameaçados e perseguidos. Criou-se o preconceito negativo da doutrina e uma imagem falsa de Kardec. Todos os grandes médiuns (i), inclusive Daniel Douglas Home, que nunca foi espírita, eram sistematicamente caluniados. Cientistas eminentes, como Charles RichetWilliam CrookesFriederich ZöllnerRussel WallaceSchrenck-Notzing e tantos outros, incontestáveis luminares da Ciência, foram submetidos a ataques ferozes. Em 1935 Richet morria e os inimigos da verdade, cevados nos proventos da mentira, proclamaram por toda a parte que, com o grande fisiologista francês, Prémio Nobel de Medicina, morrera também a Metapsíquica, a goécia (i) moderna, ciência monstruosa de profanação dos túmulos. Não sabiam os espertalhões que, antes de morrer, a Metapsíquica já se havia reencarnado na Universidade de Duke (i) (EUA) em novo corpo e com o novo nome de Parapsicologia. Os Profs. Joseph Banks Rhine (americano) e William McDougall (inglês) eram os fundadores dessa nova escola científica de pesquisa dos fenómenos espíritas. Com recursos técnicos de pesquisa, aplicando o método quantitativo sob controlo estatístico dos resultados, a Parapsicologia rompeu, em dez anos de lutas e trabalhos exaustivos, todas as barreiras dos preconceitos, da ignorância e dos interesses subalternos e se impôs ao reconhecimento universitário mundial, conseguindo mesmo furar a cortina de ferro do materialismo soviético e despertar o mais vivo interesse na URSS e em toda a sua órbita de influência. 

Diante dessa vitória esmagadora, os adversários mudaram de táctica e passaram também a tratar do assunto para reduzi-lo aos mínimos efeitos possíveis. O problema das fraudes e mistificações (i) morreu por si mesmo, perante as novas possibilidades de controlo absoluto das pesquisas. Esta última filha do Espiritismo, a Parapsicologia, tornou-se disputada por todos como se não tivesse a menor ligação e o mínimo laço de família com a Astronáutica, que se interessou pelos seus poderes e a tivesse transformado em sua valiosa auxiliar na conquista do Cosmos. A Física, ditadora das Ciências (segundo Rhine)confirmou a veracidade das suas proposições audaciosas, descobriu a antimatéria e com ela um novo espaço que se abria para o Outro Mundo. Os russos descobriram o corpo bioplásmico da sobrevivência do homem à morte e as investigações sobre a reencarnação tomaram conta do mundo científico. – Já não é possível negar a verdade espírita. Onde estão os trapaceiros que atavam panos às pernas das mesas e fotografavam essa ridicularia para explicar as famosas mesas girantes (i) como o truque mais grosseiro e indigno que se possa imaginar? Para onde fugiram os teóricos e os fantasmas de papelão e das alucinações visuais? Tudo isso se tornou tão ridículo, perante as evidências científicas da verdade, que hoje somente os pregadores religiosos de arrabalde e os pastores-camelôs (i) da salvação ainda se atrevem a gritar, perante as assembleias de fanáticos, que o Espiritismo é um instrumento do Diabo. 

Mas infelizmente os próprios espíritas inscientes se incumbiram (muitos deles travestidos de cientistas desconhecidos), de atiçar o fogo morto das velhas mistificações, tentando criar um antiespiritismo de orientação materialista-mecabicista (i), carregado de contradições internas e de todas as incongruências características de amadores sem formação. Ao mesmo tempo, extrovertendo as contradições internas, surgiram de mistura com o cientificismo (i) insolente – que considerava Kardec superado e as suas teorias empoeiradas – brotavam do chão, como as heresias do tempo de Tertuliano, estranhas florações de concepção arcaicas, mais velhas que o Reino de Sabá, eivadas de alucinações, loucura varrida e cheiro a enxofre. O Espiritismo regredia, nas mãos dos falsários, uns ingénuos e os outros vaidosos, às pretensões da alquimia medieval. Foi nessa fermentação espúria que explodiu a adulteração, elaborada em segredo e à porta fechada, como os assassinatos a punhal nos templos de Veneza. 

Procuramos dar a este episódio as cores necessárias, com as expressões e as comparações mais adequadas, porque ele é de grande importância na História do Espiritismo, o que vale dizer: na História da Evolução espiritual da Terra. O atentado a Kardec e a Jesus, à Doutrina Espírita e à Verdade Evangélica estava consumado. E nos trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que a Federação do Estado vendeu à larga por todo o Brasil, sob o prestígio do seu nome e do seu passado saíram impressos, para que todos lessem e aplaudissem, os esquemas do vandalismo planeado e já iniciado, que abrangiam toda a obra gigantesca da Codificação. E não houve nenhuma erupção vulcânica no meio espírita, contra essa insolência sem limites, a não ser a de um grupo pequenino e pobre. No silêncio mortal que se fez, por todo o Brasil, o único rumor sinistro era o do Véu do Templo, que se rasgava sozinho de alto a baixo, no salão vazio da antiga dignidade espírita. 

Tudo isso resulta das mistificações, não as ingénuas, tolas as mistificações das sessões de materialização, a que se dava tanta importância no passado e que hoje só podem acontecer entre criaturas desactualizadas e incapazes de tratar do assunto. As mistificações realmente perigosas são as doutrinárias e, estas procedem sempre de um conluio de homens e espíritos. Muitas Casas Espíritas começaram a deteriorar-se quando se entregaram à orientação de supostos mestres espirituais. Daí por diante, numa sequência natural, encheram-se de doutrinas próprias, chegando algumas a retirar dos seus cursos as obras de Kardec, fundando escolas meio igrejeiras e meio esotéricas, instituindo-se uma ginástica de passes classificados e manobrados ao estilo das antigas escolas magnéticas, criando ordens especiais do tipo de congregações marianas, chegando ao cúmulo de declarar em artigos de jornais que a sua linha doutrinária não era ortodoxa, mas heterodoxa. Isto queria, dizer que não seguiam a doutrina certa de Kardec, mas uma mistura de doutrinas espiritualistas. Todo o trabalho de Kardec, superando o espiritualismo infuso e confuso do passado para estabelecer uma linha racional de espiritualidade superior, ia por água abaixo. E ninguém percebia isso, aplaudindo aqueles que não conseguiram entender Kardec e por isso passando sobre ele afastavam a sua obra como empecilho, estorvo de velharia secular. Foi o teste inexorável da miséria cultural dos espíritas, do seu completo desconhecimento da doutrina e da sua falta de orientação histórica e filosófica. Nunca os espíritos mistificadores encontraram campo mais vasto, fecundo e propício à deformação total da Doutrina Espírita, para afastá-la da Terra justamente nesta hora grave e aguda de transição por que passamos. 

O problema das mistificações é permanente nos mundos inferiores, como o nosso. As criaturas incultas e grosseiras formam a maioria da população destes mundos. É evidente que a população desencarnada, espiritual, que sobrevive nas esferas circundantes ao planeta é da mesma natureza. Lá, como cá, enxameiam os espíritos vaidosos, sistemáticos (como advertiu Kardec), empenhados em passar as suas ideias aos homens. As ligações por afinidade formam os complôs de homens e espíritos que se julgam capazes de ensinar verdades absolutas. Basta a arrogância visível, embora disfarçada, às vezes, em falsa humildade, para mostrar aos observadores sensatos a que ordem e grau da escala espírita pertencem estas criaturas em conluio. Dos descuidados nada se pode esperar. Deixam-se levar facilmente e servem de instrumentos dóceis a todos os mistificadores. É contra isso que temos de lutar, sustentando firmemente a Obra de Kardec, que na verdade é o cumprimento da promessa do Consolador, a obra do Espírito de Verdade. Esse é um dos pontos-chave da doutrina. Quem não o compreender e não meditar sobre ele estará sempre sujeito a servir de instrumento aos mistificadores do além e do aquém. Restabelecer os ensinamentos do Cristo na sua pureza é a função do Espiritismo. Só a Doutrina Espírita tem condições para isso. Porque a revelação espiritual, confirmada pelas pesquisas e os estudos de Kardec, nos mostram que o Cristo não veio fundar uma religião, mas estabelecer os fundamentos de uma nova civilização. O seu ensino apresenta de forma sintética as três coordenadas doutrinárias: Ciência, Filosofia e Religião, que Kardec desenvolveu, sob a assistência constante do Espírito de Verdade. Há uma tese do Dr. Canuto de Abreu que contraria esta verdade histórica, suficientemente provada nas comunicações inseridas nas Obras Póstumas de Kardec e demonstrada ao longo de toda a sua obra. Os estudiosos têm de se prevenir contra estas ciladas da enorme e tumultuada bibliografia espírita. Por sinal que esta tese já vem marcada pelos seus absurdos e a sua incongruência. 

Vejamos bem a mecânica do processo histórico para podermos compreender a questão. Oliver Lodge e Léon Denis sustentaram veementemente a tese de Kardec, que nos apresenta o Espiritismo como uma síntese conceptual de toda a realidade. Isso quer dizer que a doutrina abrange na sua concepção toda a realidade acessível ao conhecimento humano. As conquistas actuais da Ciência e da Filosofia e as reformas em curso nas igrejas dão inteira razão a esta interpretação do Espiritismo. Coloquemos o problema num esquema esclarecedor, para tornar mais claros cada um dos seus aspectos: 

a) O conhecimento da realidade processa-se no contacto do homem com o mundo. Dos tempos primitivos à Civilização o homem luta sem cessar para dominar a Natureza. Esse domínio só é possível pela descoberta das leis naturais. Mas essa descoberta exige do homem a luta contra si mesmo. Porque o homem é um espírito condicionado pela encarnação num corpo de percepções animais. O homem está sujeito ao sensório, ou seja, à rede dos seus sentidos físicos que sofre o impacto de uma realidade externa e estranha à sua natureza íntima. Os sentidos lhe dão a percepção das coisas, mas ele elabora essa percepção na sua mente, sob a influência de lembranças espirituais (a reminiscência platónica do mundo das ideias) e ao formar no seu espírito os conceitos da realidade, pelo processo de abstracção, ele desenvolve o seu poder imaginativo. Os conceitos são imagens mentais de coisas e seres concretos, mas a essas imagens misturam-se os elementos provenientes dos desejos e anseios do homem. A realidade do homem é diferente da realidade natural concreta, como Descartes demonstrou que a imaginação avança para além da razão. Nesses avanços surgem as deformações do real e a falsificação do conhecimento. Todas as teologias sofreram desse mal e toda a cultura religiosa do mundo se desligou da realidade. As igrejas, as ordens espiritualistas, as irmandades secretas se impregnaram de elementos ilusórios, de pressupostos considerados como verdades fundamentais e assim por diante. A cultura mitológica do tempo de Jesus, que abrangia até mesmo o Judaísmo, aparentemente infenso ao mito, mas de facto envolvido numa mitologia grosseira, estava desligada da realidade, flutuando entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Javé, o Deus de Israel, assemelhava-se ao Zeus grego e ao Júpiter Romano na sua ira, no proteccionismo exclusivo de um povo, no gosto pelas homenagens e as reverências, no prazer de aspirar as carnes assadas e na volúpia pelo sangue de animais e dos homens. 

b) Talvez a única vantagem de Israel sobre os povos da época fosse precisamente a desvantagem do seu excessivo sociocentrismo, o egoísmo racista que atravessou os milénios e se conservou até mesmo na diáspora com a dureza do lendário diamante-Schamil com que Moisés teria escrito na pedra as tábuas da lei. Porque foi dessa centralização do ego que nasceu a possibilidade do aparecimento da primeira nação monoteísta do mundo. Javé não tinha condições, com o seu exclusivismo racista, para se transformar no Deus Único, mas o povo judeu aceitou-o como tal porque isso agradava às suas pretensões de superioridade. O deusinho intrigante e até mesmo alcoviteiro das tribos hebraicas, raivoso, parcial e contraditório, que punia com a lepra os que censuravam o seu amado Moisés e que após o Decálogo autoriza o seu protegido a realizar a bárbara matança do Sinai e revelava um espírito rancoroso de chefe tribal e um exibicionismo arrogante no tracto com os povos estranhos. Ao mesmo tempo, não dispunha de forças para impedir os assaltos de povos mais fortes e aguerridos aos seus pupilos que os egípcios e os babilónios, assírios e romanos conquistavam e submetiam à escravidão. Apesar disso, o povo judeu mostrou-se capaz de enfrentar todas as derrotas e decepções sem perder a confiança no seu Deus. Essa virtude estóica e essa fidelidade interesseira, aumentada por um proteccionismo escandaloso e, a coragem e tenacidade que demonstravam em todas as circunstâncias, deram a Javé uma posição excepcional. Não foi Deus, nesse caso, quem salvou o homem, mas o homem-judeu quem salvou o deusinho fanfarrão que lhe deu a Terra de Canaã, numa doação injusta, ilegal e bárbara, em que os beneficiados tiveram de conquistar o seu presente com batalhas alucinadas. Verdadeiro presente grego, que custou sacrifícios e perdas irreparáveis aos judeus ludibriados. Na verdade, Javé não deu nada, pois foram Moisés e Josué os conquistadores de uma nação tradicional, de estrutura feudal e uma cultura desenvolvida. Uma conquista militar longamente preparada nos quarenta anos de expectativa angustiosa no pequeno deserto do Sinai, com assaltos e pilhagens dos povos vizinhos. A destruição de Canaã foi um dos mais bárbaros genocídios da História. E sobre a terra ensanguentada, juncada de cadáveres, o povo ludibriado construiu os seus monumentos ao deus truculento, erguendo-lhe o Templo de Jerusalém com aras especiais para os sacrifícios de animais que Javé não podia comer, mas de cuja fumaça se alimentava aspirando-a pelas suas narinas divinais. 

Durante dois milénios se considerou o nascimento de Jesus em Israel como uma confirmação da grandeza de Javé. Mas essa grandeza era apenas uma fantasia, pois nem do ponto de vista humano, à luz dos sentimentos de justiça e dos princípios éticos se poderia ressaltar um só gesto de grandeza na atitude brutal de Javé. Hoje, à luz dos princípios espíritas, podemos compreender esta verdade assustadora, marcada a fogo nas páginas da própria Bíblia: 

c) Javé não era mais do que o espírito orientador do clã arrogante e ganancioso de AbraãoIsaac e Jacob na velha cidade mesopotâmica de Ur. Um guia espiritual de inferioridade inegável, deus guerreiro como os de Atenas e Roma, que se serviu da mediunidade espantosa de Moisés e dos Anciãos no deserto para se materializar entre aventureiros rudes e ignorantes, nas fumaradas de ectoplasma que envolviam em nuvens assustadoras a tenda do deserto. Nessas manifestações então inexplicáveis, Javé falava cara a cara com o seu Servo Moisés, dando-lhe o prestígio necessário para a consecução dos seus planos de conquista sanguinária. As pesquisas contemporâneas e actuais sobre esses fenómenos mediúnicos desvendaram o mistério. Os estudos de Max Freedom Long e André Lang, entre as tribos selvagens da Polinésia, revelavam o emprego de mana ou orenda, forças mágicas que Richet explicou racional e cientificamente como emanações orgânicas do corpo do médium e os russos provaram recentemente serem constituídas por um plasma físico formado de partículas atómicas livres. Javé, o Deus Supremo e Único, servia-se apenas dos elementos mágicos empregados pelos povos primitivos nos seus contactos com os espíritos. Esse mesmo elemento, que na sua expansão manifesta cheiro da ozona (i), foi considerado nas manifestações diabólicas da Idade Média como explosões de enxofre. Friederich Zöllner demonstrou, na Universidade de Upsala (Alemanha) que esse elemento, o ectoplasma, pode produzir explosões violentas, raios e relâmpagos, causando destruições como o poder da dinamite. Estas provas científicas modernas podem também explicar as manifestações ígneas assustadoras do Monte Sinai, no momento em que Moisés falava com Javé e este lhe aparecia em forma de silva ardente, segundo o Génese. 

Diante destas verificações, compreende-se a preferência de Jesus por Israel. E o maior milagre de Jesus apresenta-se como sendo a utilização do povo judeu, acostumado a essas manifestações mediúnicas, para o desenvolvimento da sua missão mediúnica de implantação na Terra da concepção do Deus único no plano social, transformando Javé numa imagem alegórica de Deus. A unicidade e universalidade dessa concepção foi obra exclusiva de Jesus, que viu a possibilidade de fazer de Israel o centro de expansão do Monoteísmo, que negou ao mesmo tempo o orgulho sociocêntrico de Israel e a multiplicidade dos deuses mitológicos. Daí as contradições profundas e insanáveis entre o Deus iracundo da Bíblia e o Deus ético, justo, providencial e universalmente paternal dos Evangelhos. A fusão absurda destes deuses antagónicos no Cristianismo explica-se pela incompreensão inicial e a deformação posterior dos ensinamentos de Jesus, através das lutas brutais e sanguinárias entre as seitas cristãs dos primeiros tempos. Os homens recebiam as palavras do Messias na medida das suas posições contraditórias. As condições do tempo eram propícias ao fanatismo e à História imparcial; escrita por pesquisadores universitários independentes, revela-nos o panorama de paixões exacerbadas, no meio de interesses políticos e sociais os mais diversos, que levavam facções violentas aos mais hediondos crimes. O Cristianismo que chegou aos nossos dias, através das igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente, é a herança trágica das profanações. Os textos evangélicos falam por si mesmos, particularmente nas epístolas de Paulo e do Livro de Actos dos Apóstolos, do que foram as dissensões no próprio meio apostólico. Nem mesmo a Ressurreição de Cristo, que Paulo explicou de maneira clara e lapidar, chegou a ser compreendida. O culto pneumático, da manifestação dos espíritos, foi suprimido; a simplicidade livre das assembleias cristãs foi injectada de elementos complexos dos cultos religiosos pagãos e judeus; a comunhão memorial do Cristo com os discípulos através do pão e do vinho – praticada nas ceias cristãs e bem antes nos cultos canaanitas – foi transformada em sacramento sofisticado pela magia da transubstanciação; expressões evidentemente alegóricas que se tornaram em dogmas indiscutíveis, motivando morticínios de estarrecer. 

A comparação singela e tocante encerrada na expressão Cordeiro de Deus, referente aos sacrifícios de cordeiros nos altares do Templo para purificação de pecados, foi transformada em mistério sagrado que acobertou muitos crimes nefandos; a ressurreição no corpo espiritual tornou-se ressurreição absurda no corpo carnal, pela maneira como Tomé, o apóstolo dissidente, tocou as chagas de Cristo manifestado mediunicamente, acreditando tocar no corpo material já sepultado; Maria transformou-se numa das muitas virgens mães da Antiguidade de que trata Saint-Yves num livro excomungado; José passou de pai a padrasto numa posição equívoca e Deus perdeu novamente a sua unidade para se dividir no mistério de três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. Só por milagre a definição de JoãoDeus é Amor sobreviveu a esse terremoto com a pureza ingénua de uma flor nos destroços. Nem se compreende que isso tenha sido possível no meio do entrançado de garras e caudas peludas, cheirando a enxofre, que lutavam para escurecer o Céu e ensanguentar a terra. Os erros dos copistas, as adulterações conscientes dos intérpretes sectários, as substituições ingénuas de reformistas ignorantes passaram à margem dessa definição de Deus sem atingi-la. O mais espantoso é que essas interferências criminosas não cessaram até hoje. As pretensas actualizações de linguagem dos velhos textos prosseguem nos nossos dias, com as edições deformadas da Bíblia pelas instituições guardiãs da sua pureza. Criou-se o dogma da Palavra de Deus para o velho livro judaico, digno de respeito histórico, mas as vestais dos textos preferem as palavras dos homens, mutilando, distorcendo, aleijando o verbo divino em cada nova tiragem da Bíblia. Se Deus falou, os homens o corrigem, porque Deus ainda não aprendeu a sujeitar-se aos caprichos formalistas das igrejas. Pois mesmo com essa permanência inquietante da censura humana, as definições de Jogo ainda não foram mascaradas. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVIII – O Problema das Mistificações, (I de II), 20º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)  

sexta-feira, 11 de março de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Prefácio ~ 
(à edição original francesa, de 1910, em Paris; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques) 

  Dez anos sucederam a publicação desta obra. A História desdobrou a sua trama e consideráveis acontecimentos se realizaram no nosso país. A Concordata foi denunciada. O Estado cortou o laço que o prendia à Igreja Romana. Ressalvados alguns pontos, foi com uma espécie de indiferença que a opinião pública recebeu as medidas de rigor tomadas pelo poder civil contra as instituições católicas. 

  De que procede esse estado de espírito, essa desafeição não apenas local, mas quase generalizada, dos franceses pela Igreja? – De não ter esta, realizado esperança alguma, das que havia suscitado. Nem soube compreender, nem desempenhar o seu papel e os deveres de guia e educadora de almas, que assumira. 

  Há um século, vinha a Igreja Católica atravessando uma das mais formidáveis crises que regista a sua história. Na França, a Separação veio acentuar esse estado de coisas e agravá-lo mais ainda. 

  Repudiada pela sociedade moderna, abandonada pelo escol intelectual do mundo, em perpétuo conflito com o novo direito, que jamais aceitou; em contradição, portanto, quase em todos os pontos essenciais, com as leis civis de todos os países, repelida e detestada pelo povo e, principalmente, pelo operariado, já não resta à Igreja mais que um punhado de adeptos entre as mulheres, os velhos e as crianças. O futuro cessou de lhe pertencer, pois que a educação da mocidade acaba de lhe ser arrebatada, não sem alguma violência, pelas recentes leis da República francesa. 

  Aí está, no limiar do século XX, o balanço actual da Igreja romana. Desejaríamos, num estudo imparcial, só mesmo a respeito, investigar as causas profundas desse eclipse do poder eclesiástico, eclipse parcial ainda, mas que, no futuro não remoto, ameaça converter-se em total e definitivo. 

  A Igreja é actualmente impopular. Ora, nós vivemos uma época em que a popularidade, a sagração dos novos tempos, é indispensável à durabilidade das instituições. Quem lhe não possuir o cunho, arrisca-se a perecer em pouco tempo no insulamento (i) e no esquecimento. 

  Como chegou a Igreja Católica a este ponto? – Pela excessiva negligência que a causa do povo mereceu de sua parte. A Igreja só foi verdadeiramente popular e democrática nas suas origens, durante os tempos apostólicos, períodos de perseguição e de martírio; e é o que então justificava a sua capacidade de proselitismo, a rapidez de suas conquistas, o seu poder de persuasão e de irradiação. No dia em que foi oficialmente reconhecida pelo Império, a partir da conversão de Constantino, tornou-se a amiga dos Césares, a aliada e, algumas vezes, a cúmplice dos grandes e dos poderosos. Entrou na era infecunda das argúcias teológicas, das querelas bizantinas e, desse momento em diante, tomou sempre, ou quase sempre, o partido do mais forte. Feudal na Idade Média, essencialmente aristocrática no reinado de Luís XIV, só fez à Revolução tardias e forçadas concessões. 

  Todas as emancipações intelectuais e sociais se efectuaram contra a sua vontade. Era lógico, fatal, que se voltassem contra ela: é o que na hora actual se verifica. 

  Adstrita, na França, por muito tempo à Concordata, incessantemente se manteve em conflito sistemático e latente com o Estado. Essa união forçada, que durava de há um século para cá, devia necessariamente terminar pelo divórcio. A lei da Separação acaba de o pronunciar. O primeiro uso que de sua liberdade, ostensivamente reconquistada, fez a Igreja foi lançar-se nos braços dos partidos reaccionários, com esse gesto, provando que nada, há um século, aprendeu nem esqueceu. 

  Empenhando solidariedade com os partidos políticos que já fizeram o seu tempo, a Igreja Católica, sobretudo a da França, por isso mesmo se condena a morrer no mesmo dia, do mesmo género de morte deles: a impopularidade. Um papa genial, Leão XIII, tentou por momentos desligá-la de todos os compromissos directos ou indirectos com os elementos reaccionários; mas não foi ouvido nem obedecido. 

  O novo pontífice, Pio X, reatando a tradição de Pio IX, seu antecessor, nada julgou melhor fazer que aplicar as doutrinas do Sílabo e da infalibilidade. Sob a vaga denominação de modernismo, acaba ele de anatematizar a sociedade moderna e combater qualquer tentativa de reconciliação, ou de conciliação com ela. A guerra religiosa ameaça atear-se nos quatro cantos do país. O prestígio de grandeza que, o poder do génio diplomático, Leão XIII havia assegurado à Igreja, desvaneceu-se em poucos anos. O catolicismo, restringido ao domínio da consciência privada e individual, nunca mais desfrutará a vida oficial e pública. 

  Qual é – uma vez mais o inquiriremos – a causa profunda desse enfraquecimento da instituição mais poderosa do mundo? Em nossa opinião, há unicamente uma causa profunda capaz de explicar esse fenómeno. Acreditarão os políticos, os filósofos e os sábios encontrá-la nas circunstâncias exteriores, em razões de ordem sociológica. Por nossa parte, iremos procurá-la no próprio coração da Igreja. De um mal orgânico é que ela deperece, atingida como nela se encontra; a sede vital. 

  A vida da Igreja era animada pelo espírito de Jesus. O sopro do Cristo, esse divino sopro de fé, caridade e fraternidade universal era, de facto, o motor desse vasto organismo, a peça motriz de suas funções vitais. Ora, há muito tempo o espírito de Jesus parece ter abandonado a Igreja. Já não é a chama do Pentecostes que irradia nela e em torno dela; essa generosa labareda se extinguiu e nenhum Cristo há que a reacenda. 

  Grande e bela, entretanto, senão benéfica, foi outrora a Igreja da França, asilo dos espíritos mais elevados, das mais nobres inteligências. Nos tempos bárbaros, era ao mesmo tempo a ciência e a filosofia, a arte e a beleza, a oração e a fé. Os grandes mosteiros, as abadias célebres, tornaram-se o refúgio do pensamento. Ali se conservaram os tesouros intelectuais, as relíquias do génio antigo. No século XIII ela inspirou uma bela parte do que o espírito humano produziu de mais brilhante. Subjugava todos aqueles indivíduos rudes, aqueles bárbaros mal polidos e, com um gesto os prosternava na atitude da oração. 

  E agora já não vive, já não brilha senão do reflexo de sua grandeza passada. Onde estão hoje, na Igreja, os pensadores e os artistas, os verdadeiros sacerdotes e os santos? Os pesquisadores de verdades divinas, os grandes místicos adoradores do belo, os sonhadores do infinito cederam lugar aos políticos combativos e negociantes. 

  A casa do Senhor se transformou em casa bancária e em tribuna. A Igreja tem um reino que é deste mundo e nada mais que deste mundo. Já não é o sonho divino o que alimenta, não mais que ambições terrestres e uma arrogante pretensão de tudo dominar e dirigir. 

  As encíclicas e os cânones substituíram o sermão da montanha e os filhos do povo, as gerações que se sucedem, apenas têm por guia um catecismo esdrúxulo, recheado de noções incompreensíveis, em que se fala de hipóstase (i), de transubstanciação (i); um catecismo incapaz de valer por socorro eficaz nos momentos angustiosos da existência. Disso procede à irreligião do maior número. O culto de uma determinada “Nossa Senhora” chegou a render até dois milhões por ano, mas não há uma única edição popular do Evangelho entre os católicos. 

  Todas as tentativas de fazer penetrar na Igreja um pouco de ar e luz e um sopro dos novos tempos têm sido sufocadas, reprimidas. LamennaisH. LoysonDidon, foram obrigados a se retratar ou abandonar o “grémio”. O abade Loisy foi expulso de sua cátedra. 

  Curvada, há séculos, ao jugo de Roma, a Igreja perdeu toda a iniciativa, toda a energia viril, toda a veleidade de independência. É tal a organização do Catolicismo que nenhuma decisão pode ser tomada, nenhum acto consumado, sem o consentimento e o sinal do poder romano. E Roma está petrificada na sua hierática atitude qual estátua do passado. 

  O cardeal Meignan, falando do Sacro Colégio, dizia um dia a um seu amigo: “Lá estão eles, os setenta anciãos, vergados ao peso, não dos anos, mas das responsabilidades, vigilantes para que nem um til seja tirado, nem um til acrescentado ao depósito sagrado.” Em tais condições a Igreja Católica já não é moralmente uma instituição viva, já não é um corpo em que circule a vida, senão um túmulo em que jaz, como amortalhado, o pensamento humano. 

  Há longos séculos, não era a Igreja mais que um poder político, admiravelmente organizado, hierarquizado; enchia a História com o fragor de suas lutas ruidosas, em companhia dos reis e imperadores, com os quais partilhava a hegemonia do mundo. Havia concebido um gigantesco plano: a cristandade, isto é, o conjunto dos povos católicos arregimentados, unidos como um exército formidável em torno do papa romano, soberano senhor e o ponto culminante da feudalidade. Era grandioso, mas puramente humano. 

  Ao Império Romano, solapado pelos bárbaros, tinha a Igreja substituído o império do Ocidente, vasta e poderosa instituição em torno da qual toda a Idade Média gravitou. Nessa confederação política e religiosa tudo desaparecia e dela unicamente duas cabeças emergiam: o papa e o imperador, “essas duas metades de Deus”. 

  Jesus não havia fundado a religião do Calvário para dominar os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matéria e pregar, pela palavra e pelo exemplo, o único dogma de redenção: o Amor. 

  Silenciemos sobre os despotismos solidários dos reis e da Igreja; esqueçamos a Inquisição e as suas vítimas e voltemos aos tempos actuais. 

  Um dos maiores erros da Igreja, no século dezanove, foi a definição do dogma da infalibilidade pessoal do pontífice romano. Semelhante dogma, imposto como artigo de fé, foi um desafio lançado à sociedade moderna e ao espírito humano. 

  Proclamar, no século vinte, em face de uma geração febricitante, atormentada da ânsia de infinito, perante homens e povos que aspiram à verdade sem a poder atingir, que procuram a justiça, a liberdade, como o veado sequioso procura e aspira a água da fonte, o manancial do rio, proclamar – dizemos – num mundo assim, em adiantada gestação, que um único homem na Terra possui toda a verdade, toda a luz, toda a ciência, não será – repetimos – lançar um desafio a toda a Humanidade, a essa Humanidade condenada, na Terra, ao suplício de Tântalo (i), às dilacerações de Prometeu (i)

  Dificilmente se reabilitará dessa gravíssima falta a Igreja Católica. No dia em que divinizou um homem, tornou-se ela merecedora de encrespação, de idolatria, que Montalembert lhe dirigiu quando, ao lhe ser comunicada, no leito de morte, a definição da infalibilidade pontifícia, exclamou: “Nunca hei de adorar o ídolo do Vaticano!” Será exagerado o termo “ídolo”? – Como os Césares romanos, a quem era oferecido um culto, o papa faz questão de ser chamado pontífice e rei. Que é ele senão o sucessor dos imperadores de Roma e de Bizâncio? O seu próprio vestuário, os seus gestos e atitudes, o obsoleto cerimonial e o fausto da sua cúria, tudo recorda as pompas cesarianas dos piores dias e, foi o eloquente orador espanhol, o religioso Emilio Castelar, que exclamou um dia, vendo Pio IX carregado na seda, em forma de procissão, a caminho de S. Pedro: “Aquele não é o pescador da Galileia, é um sátrapa do Oriente!” 

  A causa íntima da decadência e impopularidade da Igreja Romana reside em ter colocado o papa no lugar de Deus. O espírito do Cristo retirou-se dela! Perdendo a virtude do Alto, que a sustentava, a Igreja caiu nas mãos da política humana. Já não é uma instituição de ordem divina; o pensamento de Jesus já não a inspira e os maravilhosos dons que o Espírito de Pentecostes lhe comunicava desapareceram. 

  Ainda mais: atacada de cegueira, como os padres da antiga Sinagoga, ao advento de Jesus, a Igreja esqueceu o sentido profundo da sua liturgia e dos seus mistérios. Os padres já não conhecem a significação oculta das coisas; perderam o segredo da iniciação. Os seus gestos se tornaram estéreis, as suas bênçãos já não abençoam, os seus anátemas já não amaldiçoam. Foram apeados até ao nível comum e o povo, compreendendo que é nulo o seu poder e ilusório o seu mistério, encaminhou-se a outras influências e foi a outros deuses que passou a incensar. 

  Na Igreja a teologia aniquilou o Evangelho, como na velha Sinagoga o Talmude havia desnaturado a Lei. E são os cultores da letra que actualmente a dirigem. Uma colectividade de fanáticos mesquinhos e violentos acabará por tirar à Igreja os últimos vestígios da sua grandeza e consumar-lhe a impopularidade. Assistiremos provavelmente à ruína progressiva dessa instituição que foi durante vinte séculos a educadora do mundo, mas que parece haver falido à sua verdadeira vocação. 

  Daí se deve concluir que o futuro religioso da Humanidade esteja comprometido irrevogavelmente e que o mundo inteiro deva soçobrar no materialismo como num oceano de lama? Longe disso. O reinado da letra acaba, o do espírito começa. A chama de Pentecostes, que abandona o candelabro de ouro da Igreja, vem acender outros archotes. A verdadeira revelação se inaugura no mundo, pela virtude do invisível. Quando em um ponto o fogo sagrado se extingue, é para se atear noutro lugar. Jamais a noite envolve completamente em trevas o mundo. Sempre no firmamento cintila alguma estrela. 

  A alma humana, mediante as suas profundas ramificações, mergulha no infinito. O homem não é um átomo isolado no imenso turbilhão vital. O seu espírito está sempre, por algum lado, em comunhão com a Causa eterna; o seu destino faz parte integrante das harmonias divinas e da vida universal. Pela força das coisas há-de o homem se aproximar de Deus. A morte das Igrejas, a decadência das religiões formalistas, não constituem sintoma de crepúsculo, mas, ao contrário, a aurora inicial de um astro que desponta. Nesta hora de perturbação em que nos encontramos, grande combate se trava entre a luz e as caligens, como sucede quando uma tempestade se forma sobre o vale; mas as culminâncias do pensamento continuam sempre imersas no azul e na serenidade. 

  Sursum corda(*) E de facto a vida eterna perante nós se descerra ilimitada e radiosa! Assim como no infinito milhares de mundos são arrebatados pelos seus sóis, rumo ao incomensurável, num giro harmonioso, ritmado qual dança antiga e nem astro nem terra alguma torna a passar nunca pelo mesmo ponto, as almas, por seu turno, arrastadas pela atracção magnética do seu invisível centro, prosseguem evolvendo no espaço, atraídas incessantemente por um Deus, de quem sempre se aproximam sem jamais o alcançar. 

  Força é reconhecer que esta doutrina é bem mais ampla que os dogmas exclusivos das Igrejas agonizantes e que, se o futuro pertence a alguém ou a alguma coisa, há de o ser indubitavelmente ao espiritualismo universal, a esse Evangelho da eternidade e do infinito! 

                                                                                                          Fevereiro, 1910. 

/… 

(*) Este apelo foi publicado nas revistas espíritas da época, por ocasião da grande ofensiva da primeira guerra mundial. Sursum corda – frase latina, que significa “elevai os corações”, cita-se como exortação a sentimentos elevados. (N.R.) 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Prefácio à edição francesa de Fevereiro de 1910, (1º fragmento b) desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel

quinta-feira, 3 de março de 2022

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Teoria das Manifestações Físicas 
(Primeiro Artigo) 

Concebe-se facilmente a influência moral dos Espíritos e as relações que possam ter com a nossa alma, ou com o Espírito em nós encarnado. Compreende-se que dois seres da mesma natureza possam comunicar-se pelo pensamento, que é um dos seus atributos, sem o auxílio dos órgãos da palavra; porém, mais difícil de compreender são os efeitos materiais que eles podem produzir, tais como os ruídos, os movimentos de corpos sólidos e as aparições, sobretudo as tangíveis. Vamos tentar dar a explicação, segundo os próprios Espíritos e conforme a observação dos factos. 

A ideia que fazemos da natureza dos Espíritos torna, à primeira vista, incompreensíveis estes fenómenos. Diz-se que o Espírito é a ausência completa de matéria, portanto não pode agir materialmente; ora, está aí o erro. Interrogados sobre a questão de saber se são imateriais, assim responderam os Espíritos: “Imaterial não é bem o termo, porquanto o Espírito é alguma coisa, sem o que seria o nada. É, se quiserdes, matéria, mas de tal forma etérea que para vós é como se não existisse.” (1) Assim, o Espírito não é, como alguns pensam, uma abstracção; é um ser, mas cuja natureza íntima escapa totalmente aos nossos sentidos grosseiros. 

Encarnado no corpo, o Espírito constitui a alma; quando o deixa com a morte, não sai despojado de todo o envoltório. Todos nos dizem que conservam a forma que tinham quando vivos e, de facto, quando nos aparecem, geralmente é sob aquela por que os conhecemos na Terra. 

Observemo-los atentamente no momento em que acabam de deixar a vida: encontram-se em estado de perturbação; à sua volta tudo é confuso; vêem o seu corpo sadio ou mutilado, segundo o género de morte; por outro lado, vêem-se e sentem-se vivos; alguma coisa lhes diz que aquele é o seu corpo e não compreendem porque deles estão separados: o laço que os unia, pois, não está ainda completamente rompido. 

Dissipado este primeiro momento de perturbação, o corpo torna-se para eles uma roupa velha, da qual se despojaram e que não lamentam, mas continuam a ver-se na sua forma primitiva. Ora, isto não é um sistema: é o resultado de observações feitas com inúmeros sensitivos. Que se reportam agora ao que narrámos de certas manifestações produzidas pelo Sr. Home e outros médiuns deste género: aparecem mãos, que têm todas as propriedades das mãos vivas, que tocamos, que nos seguram e que se esvanecem repentinamente. Que devemos concluir disso? Que a alma não deixa tudo no caixão e que leva alguma coisa consigo. 

Assim, haveria em nós duas espécies de matéria: uma grosseira, que constitui o envoltório externo; a outra subtil e indestrutível. A morte é a destruição, ou melhor, a desagregação da primeira, daquela que a alma abandona; enquanto que a outra se liberta e segue a alma que, dessa maneira, continua a ter sempre um envoltório; é o que chamamos perispírito. Esta matéria subtil, extraída por assim dizer de todas as partes do corpo ao qual estava ligada durante a vida, dele conserva a forma; eis por que os Espíritos se vêem e por que nos aparecem tais quais eram quando vivos. Mas esta matéria subtil não tem a tenacidade nem a rigidez da matéria compacta do corpo; é, se assim nos podemos explicar, flexível e expansível; por isso a forma que toma, embora calcada sobre a do corpo, não é absoluta: dobra-se à vontade do Espírito, que pode dar-lhe tal ou qual aparência, à sua vontade, ao passo que o envoltório sólido lhe oferece uma resistência insuperável. Desembaraçado desse entrave que o comprimia, o perispírito dilata-se ou contrai-se, transforma-se, presta-se a todas as metamorfoses, segundo a vontade que actua sobre ele. 

Prova a observação – e insistimos neste vocábulo observação, porque toda a nossa teoria é consequência de factos estudados – que a matéria subtil que constitui o segundo envoltório do Espírito só pouco a pouco se desprende do corpo e, não instantaneamente. (2) Assim, os laços que unem a alma ao corpo não são subitamente rompidos pela morte. Ora, o estado de perturbação que observamos dura todo o tempo em que se opera o desprendimento; o Espírito não recobra a inteira liberdade de suas faculdades, nem a consciência clara de si mesmo, senão quando este desprendimento é completo. 

A experiência prova ainda que a duração deste desprendimento varia segundo os indivíduos. Em alguns se opera em três ou quatro dias, enquanto que em outros somente se completa ao fim de vários meses. Assim, a destruição do corpo e a decomposição pútrida não bastam para operar a separação; eis por que certos Espíritos dizem: sinto os vermes a me roer. 

Em algumas pessoas a separação começa antes da morte; são as que em vida se elevaram, pelo pensamento e pela pureza de seus sentimentos, bem acima das coisas materiais; nelas a morte encontra apenas fracos liames entre a alma e o corpo e, que se rompem quase instantaneamente. Quanto mais o homem viveu materialmente, quanto mais os seus pensamentos foram absorvidos nos prazeres e nas preocupações da personalidade, tanto mais tenazes são estes laços; parece que a matéria subtil se identifica com a matéria compacta e que entre elas haja coesão molecular; daí por que não se separam senão lenta e dificilmente.  

Nos primeiros instantes que se seguem à morte, quando ainda existe união entre o corpo e o perispírito, conserva este muito melhor a impressão da forma corpórea, da qual reflecte, por assim dizer, todos os matizes e, mesmo, todos os acidentes. Eis por que um supliciado nos dizia, poucos dias após a sua execução: se pudésseis ver-me, ver-me-íeis com a cabeça separada do tronco. Um homem que morreu assassinado, nos dizia: Vede a ferida que me fizeram no coração. Acreditava que poderíamos vê-lo. Estas considerações levaram-nos a examinar a interessante questão da sensação dos Espíritos e de seus sofrimentos; fá-lo-emos em outro artigo, limitando-nos aqui ao estudo das manifestações físicas. 

Imaginemos, pois, o Espírito revestido do seu envoltório semi-material, ou perispírito, tendo a forma ou a aparência que possuía quando encarnado. Alguns até se servem dessa expressão para se designarem; dizem: a minha aparência está em tal lugar. Evidentemente, estão aí os manes dos Antigos. A matéria deste envoltório é bastante subtil para escapar à nossa vista, no seu estado normal, mas nem por isso deixa de ser visível. Nós a percebemos, primeiro, pelos olhos da alma, nas visões produzidas durante os sonhos; porém, não é disso que nos vamos ocupar. Esta matéria eterizada é passível de modificações e, o próprio Espírito pode fazê-la sofrer uma espécie de condensação que a torna perceptível aos olhos materiais: é o que acontece nas aparições vaporosas. A subtileza desta matéria permite-lhe atravessar os corpos sólidos, razão por que tais aparições não encontram obstáculos e por que tantas vezes se desvanecem através das paredes. 

A condensação pode chegar ao ponto de produzir resistência e tangibilidade; é o caso das mãos que podemos ver e tocar; mas esta condensação – a única palavra de que nos podemos servir para exprimir o nosso pensamento, embora a expressão não seja perfeitamente exacta – esta condensação, dizíamos, ou melhor, esta solidificação da matéria eterizada é apenas temporária ou acidental, visto não se encontrar no seu estado normal. Daí por que estas aparições tangíveis, num determinado momento, nos escapem como uma sombra. Assim, do mesmo modo que vemos um corpo apresentar-se-nos em estado sólido, líquido ou gasoso, conforme o seu grau de condensação, de igual modo a matéria do perispírito poderá apresentar-se-nos em estado sólido, vaporoso visível, ou vaporoso invisível. Veremos, a seguir, como se opera esta modificação. 

A mão aparente tangível oferece uma resistência; exerce uma pressão; deixa impressões; opera uma tracção sobre os objectos que seguramos; há, pois, nela uma força. Ora, estes factos, que não são hipóteses, podem conduzir-nos à explicação das manifestações físicas. 

Notemos, em primeiro lugar, que esta mão obedece a uma inteligência, visto agir espontaneamente; que dá sinais inequívocos de vontade e obedece a um pensamento: pertence, pois, a um ser completo, que se nos revela apenas por esta parte de si mesmo; e a prova disto é a impressão que produz das partes invisíveis, os dentes a deixarem marcas impressas na pele e a provocar dor. 

Entre as diferentes manifestações, uma das mais interessantes, sem dúvida, é a do toque espontâneo dos instrumentos musicais. Os pianos e os acordeões parecem ser, para esse efeito, os instrumentos de predilecção. Este fenómeno explica-se muito naturalmente pelo que o precede. A mão que tem a força de segurar um objecto pode muito bem apoiar-se sobre as teclas e fazê-las ressoar; aliás, por diversas vezes vimos os dedos da mão em acção e, quando a mão não é vista, vêem-se as teclas agitarem-se e o fole a abrir e a fechar. Essas teclas só podem ser movidas por uma mão invisível, dando prova de sua inteligência, tocando árias perfeitamente ritmadas e, não como sons incoerentes. 

Uma vez que esta mão nos pode cravar as unhas na carne, beliscar-nos, tirar-nos aquilo que temos na mão; desde que a vemos apanhar e transportar um objecto, como o faríamos nós próprios, pode muito bem dar pancadas, levantar e derrubar uma mesa, fazer tocar uma campainha, puxar cortinas e, até mesmo, nos dar uma bofetada invisível. 

Perguntarão, sem dúvida, como pode esta mão ter a mesma força, tanto no estado vaporoso invisível quanto no estado tangível. E por que não? Não vemos o ar derrubar edifícios, o gás lançar projécteis, a electricidade transmitir sinais e o fluido do imane levantar massas? Porquê a matéria eterizada do perispírito seria menos poderosa? Não a queiramos submeter às nossas experiências de laboratório e às nossas fórmulas algébricas; sobretudo por havermos tomado os gases como termo de comparação, não lhes vamos atribuir propriedades idênticas, nem computar as suas forças como calculamos a do vapor. Até ao momento ela escapa a todos os nossos instrumentos; é uma nova ordem de ideias que está fora da alçada das ciências exactas; eis por que estas ciências não nos oferecem aptidão especial para as apreciar. 

Demos esta teoria do movimento dos corpos sólidos sob a influência dos Espíritos, somente para mostrar a questão sob todas as faces e provar que, sem nos afastarmos muito das ideias preconcebidas, podemos dar-nos conta da acção dos Espíritos sobre a matéria; mas há outra, de elevado alcance filosófico, dada pelos próprios Espíritos e, que lança sobre esta questão uma luz inteiramente nova. Compreendê-la-emos melhor depois de a havermos lido; aliás, é útil conhecer todos os sistemas, a fim de os podermos comparar. 

Resta, pois, explicar agora como se opera esta modificação da substância eterizada do perispírito; por que processo o Espírito opera e, em consequência, qual o papel dos médiuns de efeitos físicos na produção destes fenómenos; aquilo que neles se passa em tais circunstâncias, a causa e a natureza de suas faculdades, etc. É o que faremos no próximo artigo. 

/… 
(1) N. do T.: Vide O Livro dos Espíritos – Livro II – pergunta 82. 
(2) Será, no contexto, a "Cremação" um bem?!... Nota desta publicação


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Teoria das Manifestações Físicas, Primeiro Artigo. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Maio de 1858, 12º fragmento da Revista objecto do presente título desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)