Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 3 de março de 2022

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Teoria das Manifestações Físicas 
(Primeiro Artigo) 

Concebe-se facilmente a influência moral dos Espíritos e as relações que possam ter com a nossa alma, ou com o Espírito em nós encarnado. Compreende-se que dois seres da mesma natureza possam comunicar-se pelo pensamento, que é um dos seus atributos, sem o auxílio dos órgãos da palavra; porém, mais difícil de compreender são os efeitos materiais que eles podem produzir, tais como os ruídos, os movimentos de corpos sólidos e as aparições, sobretudo as tangíveis. Vamos tentar dar a explicação, segundo os próprios Espíritos e conforme a observação dos factos. 

A ideia que fazemos da natureza dos Espíritos torna, à primeira vista, incompreensíveis estes fenómenos. Diz-se que o Espírito é a ausência completa de matéria, portanto não pode agir materialmente; ora, está aí o erro. Interrogados sobre a questão de saber se são imateriais, assim responderam os Espíritos: “Imaterial não é bem o termo, porquanto o Espírito é alguma coisa, sem o que seria o nada. É, se quiserdes, matéria, mas de tal forma etérea que para vós é como se não existisse.” (1) Assim, o Espírito não é, como alguns pensam, uma abstracção; é um ser, mas cuja natureza íntima escapa totalmente aos nossos sentidos grosseiros. 

Encarnado no corpo, o Espírito constitui a alma; quando o deixa com a morte, não sai despojado de todo o envoltório. Todos nos dizem que conservam a forma que tinham quando vivos e, de facto, quando nos aparecem, geralmente é sob aquela por que os conhecemos na Terra. 

Observemo-los atentamente no momento em que acabam de deixar a vida: encontram-se em estado de perturbação; à sua volta tudo é confuso; vêem o seu corpo sadio ou mutilado, segundo o género de morte; por outro lado, vêem-se e sentem-se vivos; alguma coisa lhes diz que aquele é o seu corpo e não compreendem porque deles estão separados: o laço que os unia, pois, não está ainda completamente rompido. 

Dissipado este primeiro momento de perturbação, o corpo torna-se para eles uma roupa velha, da qual se despojaram e que não lamentam, mas continuam a ver-se na sua forma primitiva. Ora, isto não é um sistema: é o resultado de observações feitas com inúmeros sensitivos. Que se reportam agora ao que narrámos de certas manifestações produzidas pelo Sr. Home e outros médiuns deste género: aparecem mãos, que têm todas as propriedades das mãos vivas, que tocamos, que nos seguram e que se esvanecem repentinamente. Que devemos concluir disso? Que a alma não deixa tudo no caixão e que leva alguma coisa consigo. 

Assim, haveria em nós duas espécies de matéria: uma grosseira, que constitui o envoltório externo; a outra subtil e indestrutível. A morte é a destruição, ou melhor, a desagregação da primeira, daquela que a alma abandona; enquanto que a outra se liberta e segue a alma que, dessa maneira, continua a ter sempre um envoltório; é o que chamamos perispírito. Esta matéria subtil, extraída por assim dizer de todas as partes do corpo ao qual estava ligada durante a vida, dele conserva a forma; eis por que os Espíritos se vêem e por que nos aparecem tais quais eram quando vivos. Mas esta matéria subtil não tem a tenacidade nem a rigidez da matéria compacta do corpo; é, se assim nos podemos explicar, flexível e expansível; por isso a forma que toma, embora calcada sobre a do corpo, não é absoluta: dobra-se à vontade do Espírito, que pode dar-lhe tal ou qual aparência, à sua vontade, ao passo que o envoltório sólido lhe oferece uma resistência insuperável. Desembaraçado desse entrave que o comprimia, o perispírito dilata-se ou contrai-se, transforma-se, presta-se a todas as metamorfoses, segundo a vontade que actua sobre ele. 

Prova a observação – e insistimos neste vocábulo observação, porque toda a nossa teoria é consequência de factos estudados – que a matéria subtil que constitui o segundo envoltório do Espírito só pouco a pouco se desprende do corpo e, não instantaneamente. (2) Assim, os laços que unem a alma ao corpo não são subitamente rompidos pela morte. Ora, o estado de perturbação que observamos dura todo o tempo em que se opera o desprendimento; o Espírito não recobra a inteira liberdade de suas faculdades, nem a consciência clara de si mesmo, senão quando este desprendimento é completo. 

A experiência prova ainda que a duração deste desprendimento varia segundo os indivíduos. Em alguns se opera em três ou quatro dias, enquanto que em outros somente se completa ao fim de vários meses. Assim, a destruição do corpo e a decomposição pútrida não bastam para operar a separação; eis por que certos Espíritos dizem: sinto os vermes a me roer. 

Em algumas pessoas a separação começa antes da morte; são as que em vida se elevaram, pelo pensamento e pela pureza de seus sentimentos, bem acima das coisas materiais; nelas a morte encontra apenas fracos liames entre a alma e o corpo e, que se rompem quase instantaneamente. Quanto mais o homem viveu materialmente, quanto mais os seus pensamentos foram absorvidos nos prazeres e nas preocupações da personalidade, tanto mais tenazes são estes laços; parece que a matéria subtil se identifica com a matéria compacta e que entre elas haja coesão molecular; daí por que não se separam senão lenta e dificilmente.  

Nos primeiros instantes que se seguem à morte, quando ainda existe união entre o corpo e o perispírito, conserva este muito melhor a impressão da forma corpórea, da qual reflecte, por assim dizer, todos os matizes e, mesmo, todos os acidentes. Eis por que um supliciado nos dizia, poucos dias após a sua execução: se pudésseis ver-me, ver-me-íeis com a cabeça separada do tronco. Um homem que morreu assassinado, nos dizia: Vede a ferida que me fizeram no coração. Acreditava que poderíamos vê-lo. Estas considerações levaram-nos a examinar a interessante questão da sensação dos Espíritos e de seus sofrimentos; fá-lo-emos em outro artigo, limitando-nos aqui ao estudo das manifestações físicas. 

Imaginemos, pois, o Espírito revestido do seu envoltório semi-material, ou perispírito, tendo a forma ou a aparência que possuía quando encarnado. Alguns até se servem dessa expressão para se designarem; dizem: a minha aparência está em tal lugar. Evidentemente, estão aí os manes dos Antigos. A matéria deste envoltório é bastante subtil para escapar à nossa vista, no seu estado normal, mas nem por isso deixa de ser visível. Nós a percebemos, primeiro, pelos olhos da alma, nas visões produzidas durante os sonhos; porém, não é disso que nos vamos ocupar. Esta matéria eterizada é passível de modificações e, o próprio Espírito pode fazê-la sofrer uma espécie de condensação que a torna perceptível aos olhos materiais: é o que acontece nas aparições vaporosas. A subtileza desta matéria permite-lhe atravessar os corpos sólidos, razão por que tais aparições não encontram obstáculos e por que tantas vezes se desvanecem através das paredes. 

A condensação pode chegar ao ponto de produzir resistência e tangibilidade; é o caso das mãos que podemos ver e tocar; mas esta condensação – a única palavra de que nos podemos servir para exprimir o nosso pensamento, embora a expressão não seja perfeitamente exacta – esta condensação, dizíamos, ou melhor, esta solidificação da matéria eterizada é apenas temporária ou acidental, visto não se encontrar no seu estado normal. Daí por que estas aparições tangíveis, num determinado momento, nos escapem como uma sombra. Assim, do mesmo modo que vemos um corpo apresentar-se-nos em estado sólido, líquido ou gasoso, conforme o seu grau de condensação, de igual modo a matéria do perispírito poderá apresentar-se-nos em estado sólido, vaporoso visível, ou vaporoso invisível. Veremos, a seguir, como se opera esta modificação. 

A mão aparente tangível oferece uma resistência; exerce uma pressão; deixa impressões; opera uma tracção sobre os objectos que seguramos; há, pois, nela uma força. Ora, estes factos, que não são hipóteses, podem conduzir-nos à explicação das manifestações físicas. 

Notemos, em primeiro lugar, que esta mão obedece a uma inteligência, visto agir espontaneamente; que dá sinais inequívocos de vontade e obedece a um pensamento: pertence, pois, a um ser completo, que se nos revela apenas por esta parte de si mesmo; e a prova disto é a impressão que produz das partes invisíveis, os dentes a deixarem marcas impressas na pele e a provocar dor. 

Entre as diferentes manifestações, uma das mais interessantes, sem dúvida, é a do toque espontâneo dos instrumentos musicais. Os pianos e os acordeões parecem ser, para esse efeito, os instrumentos de predilecção. Este fenómeno explica-se muito naturalmente pelo que o precede. A mão que tem a força de segurar um objecto pode muito bem apoiar-se sobre as teclas e fazê-las ressoar; aliás, por diversas vezes vimos os dedos da mão em acção e, quando a mão não é vista, vêem-se as teclas agitarem-se e o fole a abrir e a fechar. Essas teclas só podem ser movidas por uma mão invisível, dando prova de sua inteligência, tocando árias perfeitamente ritmadas e, não como sons incoerentes. 

Uma vez que esta mão nos pode cravar as unhas na carne, beliscar-nos, tirar-nos aquilo que temos na mão; desde que a vemos apanhar e transportar um objecto, como o faríamos nós próprios, pode muito bem dar pancadas, levantar e derrubar uma mesa, fazer tocar uma campainha, puxar cortinas e, até mesmo, nos dar uma bofetada invisível. 

Perguntarão, sem dúvida, como pode esta mão ter a mesma força, tanto no estado vaporoso invisível quanto no estado tangível. E por que não? Não vemos o ar derrubar edifícios, o gás lançar projécteis, a electricidade transmitir sinais e o fluido do imane levantar massas? Porquê a matéria eterizada do perispírito seria menos poderosa? Não a queiramos submeter às nossas experiências de laboratório e às nossas fórmulas algébricas; sobretudo por havermos tomado os gases como termo de comparação, não lhes vamos atribuir propriedades idênticas, nem computar as suas forças como calculamos a do vapor. Até ao momento ela escapa a todos os nossos instrumentos; é uma nova ordem de ideias que está fora da alçada das ciências exactas; eis por que estas ciências não nos oferecem aptidão especial para as apreciar. 

Demos esta teoria do movimento dos corpos sólidos sob a influência dos Espíritos, somente para mostrar a questão sob todas as faces e provar que, sem nos afastarmos muito das ideias preconcebidas, podemos dar-nos conta da acção dos Espíritos sobre a matéria; mas há outra, de elevado alcance filosófico, dada pelos próprios Espíritos e, que lança sobre esta questão uma luz inteiramente nova. Compreendê-la-emos melhor depois de a havermos lido; aliás, é útil conhecer todos os sistemas, a fim de os podermos comparar. 

Resta, pois, explicar agora como se opera esta modificação da substância eterizada do perispírito; por que processo o Espírito opera e, em consequência, qual o papel dos médiuns de efeitos físicos na produção destes fenómenos; aquilo que neles se passa em tais circunstâncias, a causa e a natureza de suas faculdades, etc. É o que faremos no próximo artigo. 

/… 
(1) N. do T.: Vide O Livro dos Espíritos – Livro II – pergunta 82. 
(2) Será, no contexto, a "Cremação" um bem?!... Nota desta publicação


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Teoria das Manifestações Físicas, Primeiro Artigo. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Maio de 1858, 12º fragmento da Revista objecto do presente título desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

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