(à edição original francesa, de 1910, em Paris; Léon
Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences
Psychiques)
Dez anos sucederam a publicação desta obra. A História desdobrou a sua trama e
consideráveis acontecimentos se realizaram no nosso país. A Concordata foi
denunciada. O Estado cortou o laço que o prendia à Igreja Romana. Ressalvados
alguns pontos, foi com uma espécie de indiferença que a opinião pública recebeu
as medidas de rigor tomadas pelo poder civil contra as instituições católicas.
De que procede esse estado de espírito, essa desafeição não
apenas local, mas quase generalizada, dos franceses pela Igreja? – De não ter
esta, realizado esperança alguma, das que havia suscitado. Nem soube
compreender, nem desempenhar o seu papel e os deveres de guia e educadora de
almas, que assumira.
Há um século, vinha a Igreja Católica atravessando uma das
mais formidáveis crises que regista a sua história. Na França, a Separação veio
acentuar esse estado de coisas e agravá-lo mais ainda.
Repudiada pela sociedade moderna, abandonada pelo escol
intelectual do mundo, em perpétuo conflito com o novo direito, que jamais
aceitou; em contradição, portanto, quase em todos os pontos essenciais, com as
leis civis de todos os países, repelida e detestada pelo povo e,
principalmente, pelo operariado, já não resta à Igreja mais que um punhado de
adeptos entre as mulheres, os velhos e as crianças. O futuro cessou de lhe
pertencer, pois que a educação da mocidade acaba de lhe ser arrebatada, não sem
alguma violência, pelas recentes leis da República francesa.
Aí está, no limiar do século XX, o balanço actual da Igreja
romana. Desejaríamos, num estudo imparcial, só mesmo a respeito, investigar as
causas profundas desse eclipse do poder eclesiástico, eclipse parcial ainda,
mas que, no futuro não remoto, ameaça converter-se em total e definitivo.
A Igreja é actualmente impopular. Ora, nós vivemos uma época
em que a popularidade, a sagração dos novos tempos, é indispensável à
durabilidade das instituições. Quem lhe não possuir o cunho, arrisca-se a perecer em
pouco tempo no insulamento (i) e
no esquecimento.
Como chegou a Igreja Católica a este ponto? – Pela excessiva
negligência que a causa do povo mereceu de sua parte. A Igreja só foi
verdadeiramente popular e democrática nas suas origens, durante os tempos
apostólicos, períodos de perseguição e de martírio; e é o que então justificava
a sua capacidade de proselitismo, a rapidez de suas conquistas, o seu poder de
persuasão e de irradiação. No dia em que foi oficialmente reconhecida pelo
Império, a partir da conversão de Constantino, tornou-se a amiga dos Césares, a
aliada e, algumas vezes, a cúmplice dos grandes e dos poderosos. Entrou na era
infecunda das argúcias teológicas, das querelas bizantinas e, desse momento em
diante, tomou sempre, ou quase sempre, o partido do mais forte. Feudal na Idade
Média, essencialmente aristocrática no reinado de Luís
XIV, só fez à Revolução tardias e forçadas concessões.
Todas as emancipações intelectuais e sociais se efectuaram
contra a sua vontade. Era lógico, fatal, que se voltassem contra ela: é o que
na hora actual se verifica.
Adstrita, na França, por muito tempo à Concordata,
incessantemente se manteve em conflito sistemático e latente com o Estado. Essa
união forçada, que durava de há um século para cá, devia necessariamente
terminar pelo divórcio. A lei da Separação acaba de o pronunciar. O primeiro
uso que de sua liberdade, ostensivamente reconquistada, fez a Igreja foi
lançar-se nos braços dos partidos reaccionários, com esse gesto, provando que
nada, há um século, aprendeu nem esqueceu.
Empenhando solidariedade com os partidos políticos que já
fizeram o seu tempo, a Igreja Católica, sobretudo a da França, por isso mesmo
se condena a morrer no mesmo dia, do mesmo género de morte deles: a
impopularidade. Um papa genial, Leão
XIII, tentou por momentos desligá-la de todos os compromissos directos ou
indirectos com os elementos reaccionários; mas não foi ouvido nem obedecido.
O novo pontífice, Pio X, reatando a tradição de Pio IX, seu
antecessor, nada julgou melhor fazer que aplicar as doutrinas do Sílabo e
da infalibilidade. Sob a vaga denominação de modernismo, acaba ele de
anatematizar a sociedade moderna e combater qualquer tentativa de
reconciliação, ou de conciliação com ela. A guerra religiosa ameaça atear-se
nos quatro cantos do país. O prestígio de grandeza que, o poder do génio
diplomático, Leão XIII havia assegurado à Igreja, desvaneceu-se em
poucos anos. O catolicismo, restringido ao domínio da consciência privada e
individual, nunca mais desfrutará a vida oficial e pública.
Qual é – uma vez mais o inquiriremos – a causa profunda
desse enfraquecimento da instituição mais poderosa do mundo? Em nossa
opinião, há unicamente uma causa profunda capaz de explicar esse fenómeno.
Acreditarão os políticos, os filósofos e os sábios encontrá-la nas
circunstâncias exteriores, em razões de ordem sociológica. Por nossa parte,
iremos procurá-la no próprio coração da Igreja. De um mal orgânico é
que ela deperece,
atingida como nela se encontra; a sede vital.
A vida da Igreja era animada pelo espírito de Jesus. O sopro do
Cristo, esse divino sopro de fé, caridade e fraternidade universal era, de
facto, o motor desse vasto organismo, a peça motriz de suas funções vitais.
Ora, há muito tempo o espírito de Jesus parece ter abandonado a Igreja. Já não
é a chama do Pentecostes que irradia nela e em torno dela; essa generosa
labareda se extinguiu e nenhum Cristo há que a reacenda.
Grande e bela, entretanto, senão benéfica, foi outrora a
Igreja da França, asilo dos espíritos mais elevados, das mais nobres inteligências.
Nos tempos bárbaros, era ao mesmo tempo a ciência e a filosofia, a arte e a
beleza, a oração e a fé. Os grandes mosteiros, as abadias célebres, tornaram-se
o refúgio do pensamento. Ali se conservaram os tesouros intelectuais,
as relíquias do génio antigo. No século XIII ela inspirou uma bela parte do que
o espírito humano produziu de mais brilhante. Subjugava todos aqueles
indivíduos rudes, aqueles bárbaros mal polidos e, com um gesto os prosternava
na atitude da oração.
E agora já não vive, já não brilha senão do reflexo de sua
grandeza passada. Onde estão hoje, na Igreja, os pensadores e os
artistas, os verdadeiros sacerdotes e os santos? Os pesquisadores de verdades
divinas, os grandes místicos adoradores do belo, os sonhadores do
infinito cederam lugar aos políticos combativos e negociantes.
A casa do Senhor se transformou em casa bancária e em
tribuna. A Igreja tem um reino que é deste mundo e nada mais que deste mundo.
Já não é o sonho divino o que alimenta, não mais que ambições terrestres e uma
arrogante pretensão de tudo dominar e dirigir.
As encíclicas e os cânones substituíram o sermão da montanha
e os filhos do povo, as gerações que se sucedem, apenas têm por guia um
catecismo esdrúxulo, recheado de noções incompreensíveis, em que se fala
de hipóstase (i),
de transubstanciação (i);
um catecismo incapaz de valer por socorro eficaz nos momentos angustiosos da
existência. Disso procede à irreligião do
maior número. O culto de uma determinada “Nossa Senhora” chegou a render
até dois milhões por ano, mas não há uma única edição popular
do Evangelho entre os católicos.
Todas as tentativas de fazer penetrar na Igreja um pouco de
ar e luz e um sopro dos novos tempos têm sido sufocadas, reprimidas. Lamennais, H. Loyson, Didon, foram obrigados a se
retratar ou abandonar o “grémio”. O abade Loisy foi
expulso de sua cátedra.
Curvada, há séculos, ao jugo de Roma, a Igreja perdeu toda a
iniciativa, toda a energia viril, toda a veleidade de independência. É
tal a organização do Catolicismo que nenhuma decisão pode ser tomada, nenhum
acto consumado, sem o consentimento e o sinal do poder romano. E Roma
está petrificada na sua hierática atitude qual estátua do passado.
O cardeal Meignan, falando do Sacro Colégio, dizia um dia a
um seu amigo: “Lá estão eles, os setenta anciãos, vergados ao peso, não
dos anos, mas das responsabilidades, vigilantes para que nem um til seja
tirado, nem um til acrescentado ao depósito sagrado.” Em tais
condições a Igreja Católica já não é moralmente uma instituição viva, já não é
um corpo em que circule a vida, senão um túmulo em que jaz, como amortalhado,
o pensamento humano.
Há longos séculos, não era a Igreja mais que um poder
político, admiravelmente organizado, hierarquizado; enchia a História com o
fragor de suas lutas ruidosas, em companhia dos reis e imperadores, com os
quais partilhava a hegemonia do mundo. Havia concebido um gigantesco
plano: a cristandade, isto é, o conjunto dos povos católicos arregimentados,
unidos como um exército formidável em torno do papa romano, soberano senhor e o
ponto culminante da feudalidade. Era grandioso, mas puramente
humano.
Ao Império Romano, solapado pelos
bárbaros, tinha a Igreja substituído o império do Ocidente, vasta e poderosa
instituição em torno da qual toda a Idade Média gravitou. Nessa
confederação política e religiosa tudo desaparecia e dela unicamente duas
cabeças emergiam: o papa e o imperador, “essas duas metades de Deus”.
Jesus não havia fundado a religião do Calvário para dominar
os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matéria e pregar,
pela palavra e pelo exemplo, o único dogma de redenção: o Amor.
Silenciemos sobre os despotismos solidários dos reis e da
Igreja; esqueçamos a Inquisição e as suas vítimas e voltemos aos tempos
actuais.
Um dos maiores erros da Igreja, no século dezanove, foi
a definição do dogma da infalibilidade pessoal do pontífice romano. Semelhante
dogma, imposto como artigo de fé, foi um desafio lançado à sociedade moderna e
ao espírito humano.
Proclamar, no século vinte, em face de uma geração
febricitante, atormentada da ânsia de infinito, perante homens e povos que
aspiram à verdade sem a poder atingir, que procuram a justiça, a liberdade,
como o veado sequioso procura e aspira a água da fonte, o manancial do
rio, proclamar – dizemos – num mundo assim, em adiantada gestação, que um único
homem na Terra possui toda a verdade, toda a luz, toda a ciência, não será –
repetimos – lançar um desafio a toda a Humanidade, a essa Humanidade condenada,
na Terra, ao suplício de Tântalo (i), às
dilacerações de Prometeu (i)?
Dificilmente se reabilitará dessa gravíssima falta a Igreja
Católica. No dia em que divinizou um homem, tornou-se ela merecedora de
encrespação, de idolatria, que Montalembert lhe dirigiu quando, ao lhe ser
comunicada, no leito de morte, a definição da infalibilidade pontifícia,
exclamou: “Nunca hei de adorar o ídolo do Vaticano!” Será exagerado o termo
“ídolo”? – Como os Césares romanos, a quem era oferecido um culto, o papa faz
questão de ser chamado pontífice e rei. Que é ele senão o sucessor dos
imperadores de Roma e de Bizâncio? O seu próprio vestuário, os seus gestos e
atitudes, o obsoleto cerimonial e o fausto da sua cúria, tudo recorda as pompas
cesarianas dos piores dias e, foi o eloquente orador espanhol, o
religioso Emilio Castelar, que exclamou um dia, vendo Pio IX
carregado na seda, em forma de procissão, a caminho de S. Pedro: “Aquele não é
o pescador da Galileia, é um sátrapa do
Oriente!”
A causa íntima da decadência e impopularidade da Igreja
Romana reside em ter colocado o papa no lugar de Deus. O espírito do
Cristo retirou-se dela! Perdendo a virtude do Alto, que a sustentava,
a Igreja caiu nas mãos da política humana. Já não é uma instituição de ordem
divina; o pensamento de Jesus já não a inspira e os maravilhosos dons que o
Espírito de Pentecostes lhe comunicava desapareceram.
Ainda mais: atacada de cegueira, como os padres da antiga
Sinagoga, ao advento de Jesus, a Igreja esqueceu o sentido profundo da
sua liturgia e dos seus mistérios. Os padres já não conhecem a significação
oculta das coisas; perderam o segredo da iniciação. Os seus gestos se
tornaram estéreis, as suas bênçãos já não abençoam, os seus anátemas já não
amaldiçoam. Foram apeados até ao nível comum e o povo, compreendendo que
é nulo o seu poder e ilusório o seu mistério, encaminhou-se a outras
influências e foi a outros deuses que passou a incensar.
Na Igreja a teologia aniquilou o Evangelho, como na velha
Sinagoga o Talmude havia
desnaturado a Lei. E são os cultores da letra que actualmente a dirigem. Uma
colectividade de fanáticos mesquinhos e violentos acabará por tirar à Igreja os
últimos vestígios da sua grandeza e consumar-lhe a impopularidade. Assistiremos
provavelmente à ruína progressiva dessa instituição que foi durante vinte
séculos a educadora do mundo, mas que parece haver falido à sua verdadeira
vocação.
Daí se deve concluir que o futuro religioso da Humanidade
esteja comprometido irrevogavelmente e que o mundo inteiro deva soçobrar no
materialismo como num oceano de lama? Longe disso. O reinado da letra
acaba, o do espírito começa. A chama de Pentecostes, que abandona o candelabro
de ouro da Igreja, vem acender outros archotes. A verdadeira revelação se
inaugura no mundo, pela virtude do invisível. Quando em um ponto o
fogo sagrado se extingue, é para se atear noutro lugar. Jamais a noite envolve
completamente em trevas o mundo. Sempre no firmamento cintila alguma estrela.
A alma humana, mediante as suas profundas ramificações,
mergulha no infinito. O homem não é um átomo isolado no imenso
turbilhão vital. O seu espírito está sempre, por algum lado, em comunhão com a
Causa eterna; o seu destino faz parte integrante das harmonias divinas e da
vida universal. Pela força das coisas há-de o homem se aproximar de
Deus. A morte das Igrejas, a decadência das religiões formalistas, não
constituem sintoma de crepúsculo, mas, ao contrário, a aurora inicial de um
astro que desponta. Nesta hora de perturbação em que nos encontramos, grande
combate se trava entre a luz e as caligens, como sucede quando uma
tempestade se forma sobre o vale; mas as culminâncias do pensamento continuam
sempre imersas no azul e na serenidade.
Sursum corda! (*) E de facto a vida
eterna perante nós se descerra ilimitada e radiosa! Assim como no infinito
milhares de mundos são arrebatados pelos seus sóis, rumo ao incomensurável, num
giro harmonioso, ritmado qual dança antiga e nem astro nem terra alguma torna a
passar nunca pelo mesmo ponto, as almas, por seu turno, arrastadas pela
atracção magnética do seu invisível centro, prosseguem evolvendo no espaço,
atraídas incessantemente por um Deus, de quem sempre se aproximam sem jamais o
alcançar.
Força é reconhecer que esta doutrina é bem mais ampla que os
dogmas exclusivos das Igrejas agonizantes e que, se o futuro pertence a alguém
ou a alguma coisa, há de o ser indubitavelmente ao espiritualismo universal, a
esse Evangelho da eternidade e do infinito!
Fevereiro, 1910.
/…
(*) Este apelo foi publicado nas revistas espíritas da época, por
ocasião da grande ofensiva da primeira guerra mundial. Sursum corda –
frase latina, que significa “elevai os corações”, cita-se como exortação a
sentimentos elevados. (N.R.)
Léon Denis (1846-1927) (i), Cristianismo
e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et
Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Prefácio à
edição francesa de Fevereiro de 1910, (1º fragmento b) desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo
do Anjo, lápis e giz de Alexandre
Cabanel)
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