Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Diálogos de Kardec ~


§ II Manifestações Visuais
(em Manifestações dos Espíritos)

16. Por sua natureza e no seu estado normal, o perispírito é invisível, tendo isso de comum com uma imensidade de fluidos que sabemos existir, mas que nunca vimos. Pode também, como alguns fluidos, sofrer modificações que o tornam perceptível à vista, quer por uma espécie de condensação, quer por uma mudança na disposição molecular. Pode mesmo adquirir as propriedades de um corpo sólido e tangível e retomar instantaneamente o seu estado etéreo e invisível. É possível fazer-se ideia desse efeito pelo que acontece com o vapor, que passa do estado de invisibilidade ao estado brumoso, depois ao líquido, em seguida ao sólido e vice-versa.

Esses diferentes estados do perispírito resultam da vontade do Espírito e não de uma causa física exterior, como se dá com os gases. Quando um Espírito aparece, é porque ele põe o seu perispírito no estado apropriado a tornar-se visível. Entretanto, nem sempre é suficiente só a vontade para fazê-lo visível: é preciso, para que se opere a modificação do perispírito, o concurso de umas tantas circunstâncias que dele independem. É, preciso, ao demais, que ao Espírito seja permitido fazer-se visível a tal pessoa, permissão que nem sempre lhe é concedida, ou somente o é em determinadas circunstâncias, por razões que nos escapam. (Veja-se: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, capítulo VI.)

Outra propriedade do perispírito, essa peculiar à sua natureza etérea, é a penetrabilidade. Matéria nenhuma lhe opõe obstáculo; ele as atravessa a todas, como a luz atravessa os corpos transparentes. Daí vem que não há como impedir que os Espíritos entrem num recinto inteiramente fechado. Eles visitam o preso no seu cárcere tão facilmente como visitam a um que está no campo de trabalhar.

17. As manifestações visuais ocorrem ordinariamente durante o sono, por meio dos sonhos: são as visões. As aparições propriamente ditas dão-se no estado de vigília, estando aqueles que as percebem no gozo pleno de suas faculdades e da liberdade de usa-las. Apresentam-se, em geral, sob forma vaporosa e diáfana, algumas vezes vaga e imprecisa. Frequentemente, não passam, à primeira vista, de um clarão esbranquiçado, cujos contornos pouco a pouco se acentuam. Doutras vezes, as formas apresentam-se nitidamente desenhadas, distinguindo-se os menores traços do rosto, ao ponto de poder descrevê-lo com precisão. Os ademanes e o seu aspecto assemelham-se aos que o Espírito tinha quando vivo.

18. Podendo assumir todas as aparências, o Espírito se apresenta debaixo daquela que mais reconhecível o possa tornar, se o quiser. É assim que, embora como Espírito nenhuma enfermidade corpórea lhe reste, ele se mostrará estropiado, coxo, ferido com cicatrizes, se isso for necessário a lhe comprovar a identidade. O mesmo se observa com relação ao traje. O dos Espíritos que nada conservam das fraquezas terrenas, a estes de ordinário constam amplos panos flutuantes e de uma cabeleira ondulante e graciosa.

Amiúde os Espíritos apresentam-se com os atributos característicos de sua elevação, como: uma auréola, asas os que podem ser considerados anjos, resplandecente aspecto luminoso, enquanto que outros trajam com o que recordam as suas ocupações terrestres. Assim, um guerreiro aparecerá com a sua armadura, um sábio com os livros, um assassino com um punhal, etc. A figura dos Espíritos superiores é bela, nobre e serena; os mais inferiores têm qualquer coisa de feroz e bestial e, por vezes, ainda mostram vestígios dos crimes que cometeram ou dos suplícios por que passaram, sendo-lhes essas aparências uma realidade, isto é, julgam-se quais aparecem, o que é para eles um castigo.

19. O Espírito que quer ou pode realizar uma aparição toma por vezes uma forma ainda mais precisa, de semelhança perfeita com um sólido corpo humano, de sorte a causar ilusão completa e dar a crer que está ali um ser corpóreo.

Nalguns casos e dado certas circunstâncias, a tangibilidade pode tornar-se real, isto é, pode tocar-se, apalpar a aparição, senti-la resistente como um corpo vivo e com o calor que se observa neste, o que não impede que ela se desvaneça com a rapidez do relâmpago. Pode, pois, uma pessoa estar em presença de um Espírito, trocar com ele palavras e gestos ordinários e supor que se trata de um simples mortal, sem suspeitar sequer que tem diante de si um Espírito.

20. Qualquer que seja o aspecto sob que se apresente um Espírito, ainda que sob forma tangível, pode ele, no instante em que isso se dê, somente ser visível para algumas pessoas. Pode, pois, numa reunião, mostrar-se, apenas, a um ou a diversos dos que nela estejam. De dois indivíduos que se achem lado a lado, pode acontecer que um o veja e toque e o outro nem o veja, nem o sinta.

O fenómeno da aparição a uma só pessoa, entre muitas que se encontrem reunidas, explica-se por ser necessária, para que ele se produza, uma combinação do fluido perispiritual do Espírito com o dessa pessoa. E, para que isso se dê, é preciso que haja entre esses fluidos uma espécie de afinidade que permita a combinação. Se o Espírito não encontra a necessária aptidão orgânica, o fenómeno da aparição não pode reproduzir-se; se existe a aptidão, o Espírito tem a liberdade de aproveitá-la ou não. Daí resulta que, se duas pessoas igualmente dotadas quanto a essa aptidão se encontram juntas, pode o Espírito operar a combinação fluídica apenas com aquela das duas a quem ele se queira mostrar. Se não a operar com a outra, esta não o verá. É como se se tratasse de dois indivíduos cujos olhos estivessem vendados: se um terceiro quiser mostrar-se a um dos dois apenas, somente dos olhos desse retirará a venda. A um, porém, que fosse cego, nada adiantaria a retirada da venda: ele, por isso, não adquiriria a faculdade de ver.

21. São muito raras as aparições tangíveis, sendo, no entanto, frequentes as vaporosas. São-no, sobretudo, no momento da morte. O Espírito que se libertou como que tem pressa de ir rever os seus parentes e amigos, quiçá para avisá-los de que acaba de deixar a Terra e dizer-lhes que continua a viver. Recorra cada um às suas lembranças e verificará que muitos factos autênticos desse género, aos quais não foi dada a devida atenção, ocorreram, não somente à noite, mas em pleno dia e em completo estado de vigília.

§ III — Transfiguração. Invisibilidade

22. perispírito das pessoas vivas goza das mesmas propriedades que o dos Espíritos. Como já foi dito, o daquelas não se encontra confinado no corpo: irradia e forma em torno deste uma espécie de atmosfera fluídica. Ora, pode suceder que, em certos casos e dadas as mesmas circunstâncias, ele sofra uma transformação análoga à já descrita: a forma real e material do corpo se desvanece sob aquela camada fluídica, se assim nos podemos exprimir, e tomar por momentos uma aparência inteiramente diversa, mesmo a de outra pessoa ou a do Espírito que combina os seus fluidos com os do indivíduo, podendo também dar a um semblante feio um aspecto bonito e radioso. Tal é o fenómeno que se designa pelo nome de “transfiguração”, bastante frequente e que se produz, principalmente, quando as circunstâncias ocorrentes provocam mais abundante expansão de fluido.

O fenómeno da transfiguração pode operar-se com intensidades muito diferentes, conforme o grau de depuração do perispírito, grau que sempre corresponde ao da elevação moral do Espírito. Cinge-se às vezes a uma simples mudança no aspecto geral da fisionomia, enquanto que doutras vezes dá ao perispírito uma aparência luminosa e esplêndida.

A forma material pode consequentemente desaparecer sob o fluido perispirítico, sem que se faça para isso necessário que o fluido assuma outro aspecto. Por vezes, apenas oculta um corpo inerte ou vivo, tornando-o invisível para uma ou para muitas pessoas, como o faria uma camada de vapor.

Tomamos as coisas actuais unicamente como termos de comparação, sem pretendermos uma analogia absoluta, que não existe.

23. Estes fenómenos talvez pareçam singulares, mas somente por não se conhecerem ainda as propriedades do fluido perispiríticoEste é, para nós, um novo corpo, que há de possuir propriedades novas e que não se podem estudar senão pelos processos ordinários da Ciência, mas que não deixam, por isso, de ser propriedades naturais, só tendo de maravilhosa a novidade.

/…


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, II MANIFESTAÇÕES VISUAIS, III TRANSFIGURAÇÃO. INVISIBILIDADE, 12º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

agonia das religiões ~


Introdução – Tempos de Agonia

O desenvolvimento da humanidade tem sido marcado por fases de agonia e de morte, seguidas de fases mais duradouras de ressurreição e reconstrução. As forças que determinam essa espantosa sucessão encontram-se na própria criatura humana. Seria inútil procurarmos uma explicação celeste, fundada nos pressupostos da Ira de Deus ou da Justiça Divina, como seria inútil procurarmos enquadrá-la nas brilhantes teorias relativas à influência dos ritmos telúricos. A própria doutrina aristotélica da geração e corrupção não poderia dar-nos os elementos concretos do fenómeno. Segundo Toynbee, as civilizações desenvolvem-se nas linhas conceptuais de uma religião fundamental e entram em agonia quando se esvai o poder vital dessas religiões. A relação sociedade-religião parece perfeitamente válida, mas não nos oferece o segredo dessa estranha mecânica da agonia.

Os processos sócio-culturais de cada civilização têm a sua fonte no homem, pois a sociedade se apresenta objectivamente como um conglomerado humano. Parece evidente que o ritmo agónico deve estar ligado às entranhas e ao psiquismo do homem. Como estamos vivendo, agora, precisamente numa das curvas agudas desse ritmo – talvez a mais aguda por que já passou a humanidade – o momento é propício a que examinemos o fenómeno ao vivo, tocando com os dedos nos seus elementos determinantes. A agonia actual das religiões é geralmente considerada como resultante da situação crítica da sociedade no seu acelerado desenvolvimento tecnológico. O mundo do supérfluo, em contradição com o mundo da escassez, na estrutura social em que vivemos, levaria a civilização actual a um beco sem saída. As religiões agonizam porque o hedonismo social e o correspondente pedantismo cultural esvaziaram igualmente as arcas de tesouros metálicos dos ricos, os baús de crenças e crendices dos pobres, as esperanças de sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de riqueza do planeta e até mesmo o balaio de sonhos da Lua e as esperanças de um céu convertido em frios desertos siderais em que rolam mundos áridos e despovoados.

Inverte-se a tese de Toynbee. As religiões seriam produzidas e mantidas pelas civilizações, como o mel pelas comunidades das abelhas. Deus, filho do homem, está morto, segundo constatam os teólogos mais avançados. E enquanto os religiosos voltam a matar-se uns aos outros em nome do deus morto, as grandes potências da civilização sem perspectivas preparam os funerais atómicos da Terra. A opressão estatal esmaga o homem nas áreas capitalistas e socialistas. O Leviatã de Hobbes ameaça o mar, a terra e o céu. Como decifrarmos o enigma desses tempos apocalípticos, quando o próprio acto de pensar parece estar sujeito a controlos telepáticos? Os defensores da liberdade transformam-se em terroristas e sequestradores ou em líricos distribuidores de flores murchas, embalsamadas nas palavras mortas de paz e amor. A inocência das crianças desaparece na voragem da criminalidade infantil. E os velhos alquebrados, de olhos vazios, já não encontram nos templos os signos da fé que os embalou na infância, na adolescência, na mocidade e na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras sem hábitos, os monges sem escapulários e os santos cassados na sua santidade já não podem consolar os crentes.

O que aconteceu para que tudo se subverta dessa maneira total e violenta? Foi a morte de Deus que esvaziou o mundo ou foi o vazio do mundo que matou Deus?
As estruturas sociais são coercivas. Do clã à tribo e à horda, e desta à civilização, a lei do aglomerado humano é uma só, mas desenvolve-se a um ritmo de pressão crescente. A coerção aumenta na razão directa da estruturação. Da cabana do pagé à sacristia a religião segue esse mesmo ritmo. A massificação do homem na sociedade moderna fez o caminho de retorno sobre as conquistas do individualismo ateniense. Esparta suprimiu Atenas. O sonho frustrado da República de Platão já prenunciava o Leviatã de Hobbes. O desenvolvimento tecnológico aumentou a pressão social sobre o homem, como o desenvolvimento da institucionalização religiosa gerou o totalitarismo eclesiástico das grandes civilizações orientais, leviatãs teocráticas, e forjou a engrenagem férrea do milénio medieval. Os sonhos da Renascença, um instante para respirar, apagaram-se impotentes nas garras de aço da tecnologia contemporânea. A torquês social da moral e da religião esmagou as gerações em nome da utopia conjugada de liberdade e civilização.

O desespero existencial de Kierkegaard e a náusea de Sartre foram os frutos amargos da escamoteação da natureza humana pela hipocrisia farisaica dos formalismos sociais e religiosos. O homem formalizado perdeu a naturalidade e só teve uma saída para a sua angústia existencial: matar Deus e rebelar-se contra a sociedade. O facto não é novo. Repetiu-se na História, com os episódios de repressão violenta dos rebelados nas civilizações teocráticas e massivas do Egipto faraónico, da Mesopotâmia, de Israel com as suas leis de pureza, da Idade Média e da Era Vitoriana na Inglaterra. Os libertinos medievais, a prostituição romana, o nudismo das comunidades religiosas que buscavam o estado de graça do paraíso perdido, o deslumbramento da Europa do Século XVI ante a suposta liberdade absoluta dos selvagens da América, são os antecedentes da era pornográfica que assinala a libertinagem do nosso tempo.

Bastam esses factos para podermos tocar com os dedos a fímbria da verdade. Em Os Demónios de LoudunAldous Huxley oferece-nos um quadro portentoso das medidas eclesiásticas e das providências estatais, na Europa dos séculos XVI e XVII, com repercussões no Século XVIII, para aliviar a pressão moral e religiosa no caldeirão social. Diz Huxley: “Os prelados franceses e alemães estavam acostumados a receber o cullagium de todos os padres e informavam àqueles que não tinham concubinas que poderiam tê-las, se quisessem, mas que deveriam pagar para isso uma licença, e mais, que essa licença deveria ser paga mesmo pelos que não as tivessem.” O celibato forçado explodia de tal maneira que era conveniente regulamentá-lo, a fim de salvar-se pelo menos a aparência de santidade dos clérigos. Numa das notas de seu dicionário, Bayle conta como o Senado de Veneza tolerava os escândalos do clero para desprestigiá-lo na opinião pública, em favor das conveniências do Estado.

A deformação da criatura humana pelas exigências antinaturais das religiões dá-nos a chave do processo cíclico da morte das civilizações. Isso não quer dizer que tenhamos de aceitar as teorias actuais de uma psicologia libertina, mas que devemos compreender o erro e o perigo das repressões extremas em nome da moral e das religiões. Podemos compreender claramente que esse extremismo equivale à medicação de disfarce, que esconde o mal permitindo o seu desenvolvimento secreto no organismo social. A Inglaterra da moral vitoriana está hoje a braços com a explosão de situações incontroláveis. O seu Parlamento majestoso é levado à adopção de leis e medidas deletérias, como as referentes aos problemas da homossexualidade juvenil.

O ministério dos ciclos agónicos é facilmente decifrado quando levantamos a máscara da hipocrisia das sociedades antinaturais. O mesmo se dá no tocante às religiões repressivas, que acabam vencidas pela rebelião dos instintos naturais, agonizando no descrédito ou sendo substituídas por outras. Acusa-se o Cristianismo de ser o responsável pela universalização da hipocrisia, mas os próprios evangelhos atestam a atitude racional de Cristo em face dos que pretendiam lapidar a mulher adúltera. No caso de Zaqueu, Cristo aceita a sua hospitalidade quando ele promete devolver aos pobres o fruto impuro dos seus roubosMadalena arrependida tornou-se a seguidora dedicada e a escolhida para ser a primeira a vê-lo depois da ressurreição. Não há dúvida que os excessos repressivos do Cristianismo não foram determinados por Cristo, mas pelos seus apóstolos judeus, contaminados pela hipocrisia farisaica e de outras seitas judaicas. O Apóstolo Paulo, o que melhor compreendeu a posição de Cristo em tantos aspectos, não conseguiu escapar aos prejuízos do judaísmo, de sua formação judaica, quando se referia aos processos de repressão, tornando-os ainda mais agudos na religião nascente.

Explica-se a atitude paulina perante os abusos e excessos das religiões pagãs, mitológicas, em que as práticas fálicas, os rituais dionisíacos, toda a herança da velha Suméria, da Mesopotâmia, da libertinagem da Grécia e de Roma, contaminavam as ingénuas comunidades cristãs, ameaçando com os seus excessos os princípios espirituais da religião nascente. Paulo, extremamente zeloso, apegava-se aos resíduos da sua formação farisaica, agindo com violência para impedir que os cristãos retornassem às práticas da irresponsabilidade moral. Mas há enorme distância entre as medidas enérgicas de Paulo, que não usava a máscara da hipocrisia, e as medidas repressivas que mais tarde judaizaram as religiões cristãs. Ele, que combateu sem cessar os apóstolos judaizantes, incidiu no mesmo erro que tanto condenara, mas justificado pelas circunstâncias de uma época de ignorância e de costumes geralmente condenáveis.

O ponto crucial do problema religioso chama-se hipocrisia. E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da falta de compreensão do verdadeiro sentido de Religião, que é caminho e não ponto de chegada da espiritualização do homem. Os religiosos que pretendem atingir a santidade do dia para a noite, que se revestem de pureza exterior, encobrindo a podridão interior, são os hipócritas condenados veementemente no Evangelho. A solução desse grave problema, que responde pela morte cíclica das civilizações, está na compreensão da verdadeira natureza do homem, do processo natural do seu desenvolvimento espiritual. Os artifícios purificadores só servem para mascarar os indivíduos pretensiosos. As práticas ascéticas não podem ser forçadas. As paixões e os instintos do homem são manifestações de forças vitais que, debaixo do controlo da razão e do sentimento, podem e devem guiar o espírito nos rumos da transcendência.

Repetimos agora os ciclos agónicos do Oriente, da Grécia e Roma, de Israel, da Europa Medieval. A explosão pornográfica sobrepõe-se aos instintos vitais e aos controlos sociais. E a agonia das religiões anuncia a morte da civilização tecnológica. Não obstante, há uma esperança para a brilhante civilização condenada. As forças do espírito reagem contra a derrocada moral. Como na queda de Bizâncio, enquanto os clérigos cantam e pregam no meio da derrocada, há vigias de uma nova era espreitando o futuro nas almenaras. É o que procuro demonstrar neste livro, num rápido confronto das estruturas envelhecidas com as novas estruturas que nascem da própria terra, debaixo dos nossos pés. Poluída, envenenada, devastada, ameaçada, a Terra dos Homens, nossa mãe, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para novas dimensões de uma realidade em que estamos perdidos.
/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Introdução – Tempos de Agonia, 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Espiritismo na Arte ~


Parte VI

A Música (Parte 1)
– A música nas esferas superiores
(Julho de 1922)

A música é a voz dos céus profundos. No espaço tudo se traduz em vibrações harmónicas e, certas classes de espíritos, se comunicam, entre si, apenas por meio de ondas sonoras.

Na Terra, a sinfonia e a melodia, não são mais que ecos débeis e deformados dos concertos celestes. Os nossos instrumentos, mesmo os mais perfeitos, têm sempre qualquer coisa de mecânico e de áspero, enquanto que os sistemas de emissão do espaço, produzem os sons de uma delicadeza infinita.

Eis por que, em todos os graus da escala dos mundos e, da hierarquia dos espíritos, a música tem um lugar importante nas manifestações do culto que as almas rendem a Deus. Nas esferas superiores, ela se torna uma das formas habituais da vida do ser, que se sente mergulhado em ondas de harmonia, de uma intensidade e de uma suavidade, inexprimíveis.

Por ocasião das grandes festas no espaço, dizem os nossos guias espirituais, quando as almas se reúnem aos milhões para prestar homenagem ao Criador, na irradiação de sua fé e do seu amor, delas escapam eflúvios, radiações luminosas, que se colorem de cores combinadas e se convertem em vibrações melodiosas. As cores se transformam em sons e, dessa comunhão dos fluidos, dos pensamentos e dos sentimentos, emana uma sinfonia sublime, à qual respondem os acordes longínquos vindos das esferas, dos astros inumeráveis que povoam a imensidão.

Então, do alto descem outros acordes, mais potentes ainda, e um hino universal faz os céus e as terras estremecerem. Ao perceber esses acordes, o espírito se desenvolve, se expande; ele sente que vive na comunhão divina e entra em um arrebatamento que chega ao êxtase.

– A percepção das harmonias do espaço
– Melodias ouvidas na hora da morte

Sobre a Terra, a sinfonia é a forma mais alada da música. Quando esta é aliada a palavras, ela parece a Vitória Áptera (i), que rastejava sem poder levantar voo e planar no alto. A música ligada à palavras perde um pouco do seu prestígio e da sua amplidão. No entanto, a melodia nos acalenta, nos seduz, nos encanta; ela grava na nossa memória motivos que gostamos de repetir e que nos consolam nas tristezas de cada dia. Essa música, porém, parece muito pobre se a compararmos às harmonias do espaço; para entender e apreciar estas harmonias, é preciso possuir sentidos psíquicos bastante desenvolvidos.

Vimos mais de uma vez, nas sessões, carregadas lágrimas rolarem sobre as faces de certos médiuns, que percebiam os ecos da sinfonia eterna.

O médium G. Aubert, ainda que ignorante em música, num completo estado de automatismo, tocar no piano sonatas, árias inéditas e variadas, nas quais se reconhece o estilo de Beethoven, o de Bach (ii), o de Chopin (iii), o de Berlioz (iv), etc. A maior parte dos compositores célebres afirma que, nas suas horas de recolhimento, ouvem vozes, sons, que não provêm da Terra. (v)

Durante as famosas sessões dadas por Jesse Schefard, médium escocês, em todas as grandes capitais e diante de várias cortes soberanas, bem como nas sessões do Dr. San Ângelo, em Roma, ouviram-se coros celestes e acordes de numerosos instrumentos invisíveis. Os solos (vi) permitiam reconhecer as vozes dos cantores e cantoras falecidos.

A Sra. de Koning-Nierstrass relata uma de suas sessões, (vii) nos seguintes termos:

“Jesse Schefard hospedou-se em minha casa, em Haye, por cerca de seis semanas. Uma noite, eu e alguns amigos estávamos reunidos. O médium, tendo se levantado em meio-transe, colocou-se ao piano. Batidas ressoaram de todos os lados, luzes voltejavam no ambiente como borboletas... De repente, vozes de homens e de mulheres encheram o ar. Era um coro que entoava uma espécie de cântico; o Hosana e o Glória a Deus foram ouvidos por todos nós. Ora era um coro, ora vozes de mulheres, o soprano dominando todo o canto. Sentada perto do médium, constatei que ele não havia aberto a boca.

Dois dias depois, uma de minhas vizinhas me disse: ‘Ah! senhora de Koning, desfrutei do belo concerto que houve na outra noite na vossa casa, que músicos e que lindo coral se fizeram ouvir!’ E eu lhe perguntei: ‘A senhora ouviu uma voz de cada vez ou todo um coro?’ ‘Um coro, respondeu a senhora, eu percebia bem distintamente o soprano. Quem é que cantava tão maravilhosamente?’”

Esse testemunho espontâneo destruía qualquer hipótese de alucinação.

A respeito da música dos espíritos, lê-se na Introdução de Ensinamentos Espiritualistas, de Stainton Moses, professor da Faculdade de Oxford, a descrição de fenómenos obtidos em uma sala em que não havia piano, violino ou qualquer outro instrumento.

“Um som se produzia, excessivamente difícil de se descrever. Ele se parecia com o suave som de um clarinete, aumentando de intensidade e diminuindo de seguida, descendo até à primeira emissão abafada, por vezes também se extinguindo em um longo lamento melancólico. Jamais tendo ouvido algo que se aproxime desse som, verdadeiramente extraordinário, só posso dar-lhe uma descrição muito imperfeita; é preciso observar que obtivemos dele apenas notas isoladas e, no melhor dos casos, ritmos isolados. Os agentes invisíveis atribuíam esse facto à organização anti-musical do médium.”

Aliás, lê-se em Light, de 30 de Abril, as seguintes narrações, que mostram uma outra modalidade dessas manifestações, obtidas à cabeceira de moribundos e percebidas por outras pessoas presentes.

“Muitos livros foram escritos sobre as visões de moribundos e os acontecimentos extra-normais observados no momento da morte. Entre os casos mais interessantes, pode citar-se o do pequeno prisioneiro do Templo: Luís XVII (viii). Beauchesne conta que poucos instantes antes da morte do jovem príncipe, lhe perguntaram se sofria muito. Ele respondeu: ‘Sim, sofro, mas não muito, a música é tão bela’. Fizeram-lhe perguntas referentes a essa música que pessoa alguma ouvia, mas ele persistia em dizer: ‘É tão bela, eu a ouço’, e se admirava que ninguém a ouvisse.”

Há, também, o caso de Jakob Böhme (ix), cuja partida da Terra foi acompanhada da mais suave melodia, a qual ele foi o único a ouvir e a proclamar divina. Para Goethe, ao contrário, os sons que ele percebia no seu leito de morte, quando gritava; “Luz, mais luz ainda”, foram ouvidos por aqueles que se encontravam perto dele.

Chegam-nos de todos os lados da Inglaterra narrações sobre essas melodias do Alto, ouvidas pelos moribundos e frequentemente por aqueles que os assistem.

“A Sra. Leaning nos escreve: ‘Quando Lily Sewell morreu, sons harmoniosos foram ouvidos, pareciam proceder de um canto do quarto e isso durante os dois dias que precederam a morte. A criança não ouviu nada, mas os seus pais, a sua irmã e a empregada os perceberam, e no terceiro dia, quando a criança morreu, o som se suavizou, tornou-se semelhante ao som de uma harpa eólica (x), saiu do quarto, passou pela casa e se afastou gradualmente.”

Um professor de Eton (xi), em 1881, estando ao lado de sua mãe, ouviu, alguns minutos após ela ter morrido, a suave música de três vozes infantis, cantando um hino de uma forma tão penetrante que um ser humano não poderia tê-lo feito. Duas pessoas presentes, e o médico que lá se encontrava, também a ouviram e abriram uma janela para descobrir de onde vinham esses sons maravilhosos.

O Dr. Kenealy conta, assim, a morte de seu jovem irmão: “O seu quarto se abria para uma grande e bela paisagem, emoldurada por verdes colinas. Perto do seu leito, várias pessoas da família estavam sentadas, assim como o médico; era quase meio-dia, o Sol brilhante iluminava o quarto, o ar era puro e transparente; de repente, ouvimos uma melodia divina elevar-se bem perto de nós: era uma voz melancólica e celeste de mulher, voz cujas modulações não se podem descrever. Isso durou alguns minutos, depois fundiu-se, como o encrespar das ondas sobre a areia, ora ainda ressoando, ora apenas murmurando, depois fez-se o silêncio. Quando o canto começou, a criança entrou em agonia e, ao último murmúrio, a sua alma partiu.”

Por fim, anotamos este caso descrito por H. Rooske de Guilford: “Há alguns anos, a minha irmã e eu tivemos uma experiência que foi uma grande ajuda para nós na vida. A nossa mãe estava gravemente enferma, o médico e a governanta sabiam que os seus sofrimentos chegavam ao fim. Uma noite em que a minha irmã a velava com a governanta, ouviu, de repente, o mais belo, o mais majestoso dos coros, cantado por vozes como jamais ela havia ouvido assim, tão celestes. Virando-se para a governanta, ela lhe perguntou: ‘Estais ouvindo?’ E ela respondeu: ‘Não ouço nada.’ Eu estava deitado no quarto vizinho, esgotado por longas vigílias e cruéis inquietações; os sons celestes me despertaram de um profundo sono, saltei da minha cama e corri para o quarto de minha mãe, perguntando: ‘De onde vem essa música maravilhosa?’ De repente, os sons cessaram e nos aproximando da cama, vimos que a doce alma havia partido com a divina melodia.”

– O poder e a acção das vibrações sonoras

Vê-se, pelos factos acabados de narrar e pelo que as lições de o Esteta afirmam, que o poder das vibrações sonoras se revela sob mil formas. À medida que o homem penetra mais no conhecimento do Universo e da sua estrutura íntima, a lei que o rege, que é a da harmonia musical, aparece-lhe no seu princípio, assim como nos seus maravilhosos efeitos. É por ela que se edificam e se perpetuam toda a arquitectura dos mundos, todas as formas da vida universal. Pode perceber-se isso por uma simples experiência. Não é curioso, por exemplo, seguir sobre a placa de vidro ou de metal salpicada de areia e posta em contacto com um instrumento de cordas, as formas geométricas, os desenhos delicados e complicados que resultam de cada nota e de cada acorde?

No estudo da arte, não é preciso deixar-se desgostar por uma aridez aparente e superficial. O exame atento, a análise constante de todo o tema estético, revela-nos atractivos insuspeitáveis e contribui para nos iniciar na lei geral do belo. Pode comparar-se esse exercício mental à subida de uma montanha de aspecto áspero e escarpado, mas da qual cada depressão do terreno contém maravilhas ocultas e que, do seu cume altivo, nos faz descobrir o conjunto harmónico das coisas que se desenvolvem debaixo dos nossos olhos.

Todos os homens podem e devem interessar-se por essa questão, porque ela lhes reserva alegrias intelectuais bem superiores a tudo o que os prazeres mentirosos proporcionam.

O mais humilde operário tem no seu pensamento uma saída possível em direcção à compreensão do Belo, e aí ele sempre encontrará novos recursos para aperfeiçoar a sua própria obra. A arte dentro da profissão é um encaminhamento à arte superior. Cada um trabalha com um género particular de beleza mas, na sua finalidade ascensional, todas as almas se expandem numa concepção radiosa da universal e eterna beleza.

A dissociação da matéria e a acção das forças intra-atómicas dão nascimento a uma nova ciência que, ao desenvolver-se, abre, ao espírito humano, perspectivas mais amplas sobre a obra do Cosmos.

Em breve se reconhecerá o misterioso laço que une o pensamento, a vontade, à vibração, e que faz da vibração o agente do pensamento e da vontade, a fim de se construírem as inumeráveis formas que povoam a imensidão.

Em resumo, o som, o ritmo, a harmonia, são forças criadoras. Se nós pudéssemos calcular o poder das vibrações sonoras, avaliar a sua acção sobre a matéria fluídica, a sua forma de agrupar os turbilhões de átomos, chegaríamos a um dos segredos da energia espiritual.

No entanto, é suficiente observar, na experiência que acabamos de citar, as figuras geométricas traçadas pela voz humana ou pelo arco de um violino sobre a placa de vidro recoberta de areia fina, para compreender, por comparação, como o pensamento divino, que é a vibração mestra e a suprema harmonia, pode agir sobre todos os planos da substância e construir as formas colossais das nebulosas, dos sóis, das esferas, e fixar a sua trajectória através dos espaços.

O espectáculo da vida universal nos mostra, por toda a parte, o esforço da inteligência para conquistar e realizar o belo. Do fundo do abismo da vida, o ser aspira e sobe em direcção ao infinito das concepções estéticas, à ciência divina, aos cumes eternos onde reina a beleza perfeita. O esplendor do Universo revela a inteligência divina, assim como a beleza das obras de arte terrestres revelam a inteligência humana.
/... 

(i) Áptero: inseto sem asas (pulga, piolho, etc.); diz-se de estátuas de certas divindades antigas que, por excepção, eram representadas sem asas. Na Acrópole de Atenas, principal cidade grega, vêem-se as ruínas de um templo da deusa Vitória Áptera. (N.T., segundo o Dicionário Lello Universal.)
(ii) Johann Sebastian Bach: o mais famoso de uma célebre família de músicos alemães (Eisenach, 1685 - Leipzig, 1750). Foi cantor, violinista, organista, chefe de orquestra e professor. Autor de obras de música religiosa, vocal e instrumental que são admiráveis pela riqueza da inspiração, a audácia da linguagem harmónica e a alta espiritualidade. Bach trabalhou todos os géneros, com excepção da ópera, compôs cantatas, paixões, missas, obras para o órgão, para o cravo, suítes, partitas, concertos, motetos, prelúdios e fugas. Cego, morreu ditando os seus últimos corais ao genro e aluno Altnikol. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(iii) Frédéric François Chopin: pianista e compositor polaco, de origem francesa, nasceu perto de Varsóvia (Zelazowa-Wola, 1810 - Paris, 1849). As suas composições para piano (mazurcas, valsas, nocturnos, polonaises, prelúdios, sonatas, baladas, barcarolas, estudos e scherzos), de carácter romântico, pessoal, penetrante e, quase sempre, melancólico, são obras de um poeta; elas renovaram o estilo do piano. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(iv) Hector Berlioz: compositor francês (La Côte-Saint-André, Isère, 1803 - Paris, 1869). Autor de Os Troianos, A Danação de Fausto, Benvenuto Cellini, Sinfonia Fantástica, Requiem, A Infância de Cristo, obras notáveis pelo poder do sentimento dramático e sumptuosidade orquestral. Berlioz é um dos criadores da música de programa, isto é, aquela que procura, por meio de elementos instrumentais, descrever um assunto fixado em página literária que vem impressa no programa do concerto. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(v) Ver em No Invisível, Espiritismo e Mediunidade, Edições Léon Denis, o cap. XIV. (N.A.)
(vi) Solo: trecho musical executado por uma só voz ou um só instrumento, com acompanhamento ou sem ele. (N.T.)
(vii) Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, de outubro de 1921, p. 303. (N.A.)
(viii) Luís XVII (Louis-Charles de França): segundo filho de Louis XVI e Maria Antonieta; nasceu em Versailles em 1785. Prisioneiro no Templo, ele foi, após a execução de seu pai, proclamado rei da França pelos príncipes emigrados. Morreu na sua prisão em 1795. Certos autores afirmam que Luís XVII escapou da prisão e foi substituído por um menino doente, porém nenhuma prova séria veio abalar a convicção geral de que o príncipe realmente morreu na prisão. (N.T., segundo o Dictionnaire Nouveau Petit Larousse Illustré.)
(ix) Jakob Böhme: teósofo e místico alemão (1575-1624), nasceu em Alt-Seidenberg. (N.T.)
(x) Harpa eólica: instrumento musical constituído por uma caixa sonora com seis ou oito cordas, afinadas em um mesmo tom, e que soava quando exposta a uma corrente de vento. A palavra eólio, ou eólico, provém de Éolo, deus dos ventos nas mitologias grega e romana. (N.T.)
(xi) Eton: colégio fundado em 1440 por Henrique VI. O mais célebre estabelecimento de ensino da Inglaterra, frequentado por meninos, de doze a quinze anos, pertencentes às classes sociais mais elevadas (N.T.)



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VI A Música (Parte 1) – A música nas esferas superiores – A percepção das harmonias do espaço – Melodias ouvidas na hora da morte – O poder e a acção das vibrações sonoras, 24º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)