Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

a pedra e o joio ~


Reforma doutrinária total ~

   Chegamos agora ao fim do nosso exame da teoria corpuscular do espírito, e os leitores que nos acompanha-ram hão de lembrar-se que o iniciamos com esta declaração: “Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser uma pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação no campo doutrinário”. A esta altura, a nossa desconfiança está justificada. Vimos que a teoria corpuscular não é mais do que uma nova tentativa de confusão doutrinária, a envolver o movimento espírita, desprevenido e desarmado, ante as numerosas investidas que vem sofrendo.

   Companheiros dirigentes, cheios de boa-vontade fraterna, estranharam a nossa crítica. Sonham com a fraternidade sem jaça, o que é, naturalmente, muito louvável, e entendem que só devíamos ter palavras de estímulo para todos os que cuidam das coisas do espírito. Alguns chegaram mesmo a declarar que não devíamos desprestigiar “obras espíritas de valor”, por questões de ponto de vista. Mostramos, porém, de sobejo, numa análise serena e objectiva, que não se trata de “pontos de vista”, mas da própria defesa da doutrina e do movimento espírita.

   Os que batem palmas para tudo quanto se faz em nome do Espiritismo nada mais fazem do que incentivar a onda de confusões deste momento de transição. O confrade Guimarães Andrade é honesto, sincero, inteligente e culto. Mais do que isso, é uma criatura modesta, que não revela, pessoalmente, as ambições e as pretensões gigantescas do seu livro. Os que o conhecem pessoalmente e não leram ou não puderam entender o livro estranham que o acusemos de tamanha pretensão, qual a de reformador do Espiritismo e da Ciência. Não temos, porém, que examinar o homem, e sim o autor.

   Já demonstramos suficientemente as pretensões da teoria corpuscular. Embora, no início do volume, o autor declare que pretende apenas contribuir para a ciência espírita, logo mais ele se contradiz, investindo contra Kardec e o Espiritismo, para considerá-los obsoletos e propor-se a substituí-los. No correr do livro (e este é apenas o primeiro de uma série de não sabemos quantos), o autor se empolga, delira, perde-se nos desvios da sua própria imaginação, para no final declarar que pretende apresentar “as consequências filosóficas da teoria corpuscular do espírito”. É o momento de repetirmos a advertência evangélica: “Quem tem ouvidos de ouvir, ouça”.

   É inegável, porque declarado pelo próprio autor, que ele quer substituir toda a codificação kardeciana, considerando-a “empoeirada”, pela sua nova doutrina. A substituição começa na base, que é a ciência, continua no arcabouço doutrinário, que é a filosofia, e acabará por certo na cúpula, que é a religião, mesmo que seja para negá-la ou apresentar-lhe um substitutivo científico, da natureza do Positivismo. É então possível aceitarmos tudo isso, batermos palmas e essas pretensões, descuidados de suas consequências? Quem compreende a responsabilidade de espírita não pode, absolutamente, assumir, diante de ameaças dessa espécie, uma atitude de falsa tolerância. Porque isso seria compromisso no erro.

   No capítulo final do volume o confrade Guimarães Andrade esclarece ainda mais, declarando textualmente “Esperamos criar adeptos”. Acentua que deseja adeptos conscientes, capazes de analisar os seus ensaios e ajudá-lo no seu aperfeiçoamento. A sua modéstia aparece de novo, encobrindo as pretensões. Mas o véu da modéstia se torna, nesse momento, transparente como gaze. Apontamos numerosas contradições no livro, e entre elas podemos incluir esta: uma atitude modesta, encobrindo ambições desmedidas. Acreditamos que esta contradição se explique por uma frase do prólogo: “Esperamos ter alcançado a primeira etapa do vasto programa que nos foi confiado”. De um lado, temos a modéstia do instrumento; e, de outro, a ambição daquele ou daqueles que o usam, que lhe confiaram o programa.

   Outras contradições curiosas devem ser assinaladas. Pretende o autor apresentar uma teoria científica, mas não se dirige aos homens de ciência, em linguagem técnica, e sim ao público, em termos de divulgação popular. Como divulgar aquilo que ainda não está feito, que é apenas uma tentativa? Proclama a necessidade de dar bases teóricas modernas à ciência espírita, mas não se utiliza de uma bibliografia rigorosa, e sim de obras comuns de divulgação científica. Apela para a necessidade de experiências científicas, fora do campo mediúnico, o que é simples absurdo, e apoia-se em fontes mediúnicas, alegando a honorabilidade do médium, que do ponto de vista científico não tem nenhum valor. Desaconselha entusiasmos imediatos, mas reclama adeptos. Acredita estar apenas tateando num terreno difícil, mas formula extenso programa de desenvolvimento da doutrina, e chega mesmo a referir-se a aproveitamento industrial do “bion” (página 34). Toma uma atitude de extremismo científico, ao ponto de excluir a ideia de Deus da sua teoria, e cita experiências comuns de mediunidade, praticadas sem nenhum rigor científico, como modelos de experimentação mediúnica.

   Somos forçados a declarar que a análise do livro A Teoria Corpuscular do Espírito nos surpreendeu. Conhecendo pessoalmente o autor, a quem dedicamos amizade fraterna, sabendo de suas possibilidades culturais e intelectuais, não podíamos supor tamanha fragilidade em sua obra. Dessa maneira, fomos compelidos a tomar, no caso, atitude semelhante à de Aristóteles, perante o seu mestre e amigo Platão. Lamentamos que o confrade Guimarães Andrade não houvesse tomado uma atitude mais consentânea com a sua modéstia natural, pois estamos certos de que assim teria evitado o emaranhado de contradições em que se perdeu.

   Concluímos, pois, esta análise, repetindo que não se trata de nenhuma tentativa polémica, e muito menos de qualquer forma de desconsideração para com o autor de A Teoria Corpuscular do Espírito, que pessoalmente prezamos bastante. Se fomos forçados a dizer algumas coisas aparentemente duras, isso aconteceu pela necessidade de definirmos firmemente a nossa posição, em defesa do Espiritismo. Se a teoria corpuscular fosse apresentada como doutrina à parte, sem nenhuma ligação com o Espiritismo, pouco nos interessaria. Mas, tratando-se de uma nova tentativa de reforma doutrinária, somos obrigados a encará-la com a devida firmeza.




José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Reforma doutrinária total, 16º e último fragmento da obra.
(imagem de ilustração: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

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