Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 3 de março de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


Da especulação à ex-perimentação ~

   Mas Allan Kardec não fala “por ouvir dizer”, ele jamais foi um homem levado pela imaginação: foi um observador rigoroso. E é através da mais pura dialéctica que nos explica a razão dessas vagas aspirações.

   “Se a questão do homem espiritual permaneceu até aos nossos dias em forma de teoria, é porque nos faltaram os meios directos de observação, para constatar o estado do mundo material, e o campo ficou aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de sistema em sistema, no tocante ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Deu-se na ordem moral o mesmo que na ordem física; para determinar as ideias faltou-nos o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Esse conhecimento estava reservado à nossa época, como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos. Até ao presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na Metafísica, tem sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é inteiramente experimental.”

   Chegados a este ponto, defrontamo-nos com o aspecto mais crítico da hora presente. De um lado, temos em marcha, com indiscutível eficácia, a aplicação do método dialéctico à história, à política, à sociologia etc., como a mais alta conquista do espírito no terreno prático e objectivo. Do outro, o abuso, que perdura, do método empírico, nas questões espirituais, com as consequentes explorações e deformações da realidade. E no meio, lutando entre as duas correntes, ambas poderosas, o Espiritismo, que não pode trair a realidade espiritual, para endossar a aplicação materialista da dialéctica, e não pode trair a sua própria natureza dialéctica, para apoiar o empirismo da prática espiritual. O resultado, infelizmente, é o que vemos: ele também, o Espiritismo, deformando-se, no aspecto sectário e místico de uma nova religião, ou na estrutura fria e materialista da simples observação metapsíquica.

   Todo o esforço do homem moderno tem de convergir para a superação dessa tremenda crise do conhecimento. E a superação somente se fará possível com a compreensão dos verdadeiros princípios do Espiritismo como doutrina dialéctica, por isso mesmo capaz de aplicar à história, à política, à sociologia, à economia, à arte, os seus métodos de análise, de observação, de pesquisa, sem se perder na mística de confessionário, nem se confundir com o tumulto dos comícios subversivos. Além do misoneísmo das religiões, do reformismo do socialismo político-liberal e da violência do materialismo-dialéctico, o Espiritismo indicará ao homem o caminho seguro das transformações substanciais da vida social, ou perderá a sua razão de ser. Como esta última hipótese não nos parece possível, o mais certo é que a história nos esteja empurrando, segundo observa Humberto Mariottiapesar da incapacidade geral e desoladora dos espíritas de hoje, na direcção do Espiritismo Dialéctico, verdadeira síntese do conhecimento, com que nos acena Allan Kardec.

   Humberto Mariotti afirma que “a realidade visível” da acção espírita no mundo se traduz no cultural, e “mais do que em qualquer outra parte, no bibliográfico”, faltando-lhe, entretanto, entrosar-se “no processo histórico da humanidade”. Esse entrosamento faz-se pela penetração nas massas através do seu aspecto “ingénuo”, de seita religiosa. Mas, se não houver, neste momento, a acção da alavanca da filosofia espírita, salvando o Espiritismo da “ingenuidade popular” e transformando-o, não mais em simples crença, mas em conhecimento, o processo natural desse entrosamento pode ser desvirtuado, pelo trabalho de sapa das forças contrárias.

   Aos espíritas, portanto, cabe o dever indeclinável de lutar para que esse entrosamento se realize. A bibliografia espírita – “quiçá insuperável pela de qualquer outro movimento filosófico” – deve descer das estantes e penetrar nas massas, não para se submeter à “ingenuidade” destas, mas para orientá-las no sentido da sua libertação moral, espiritual, intelectual e social. Para tanto, é necessário um novo trabalho de elaboração, de aglutinação, de sistematização do conhecimento espírita, na forma de compêndios culturais e de manuais populares.

   O aspecto religioso ou “ingénuo” do Espiritismo salvou-o da indiferença e da hostilidade conjugada de todas as forças dominantes dos séculos XIX e XX, escondendo-o no coração do povo, onde ele viveu e progrediu em silêncio, e permitindo, ao mesmo tempo, o trabalho cultural dos intelectuais espíritas. Temos hoje uma população espírita no mundo, e temos uma cultura espírita. Mas não temos a sociedade nem a civilização espíritas, como observa Mariotti, e nem mesmo a necessária e prévia ligação entre as massas espíritas e a cultura espírita, para a criação daquelas. Estamos, porém, no caminho dialéctico do desenvolvimento de uma nova civilização, e se compreendermos isso, lutando para alcançar o futuro, chegaremos lá.

   Humberto Mariotti fez uma concessão de boa-vontade ao “pensar naturalista” quando deu ao seu livro o título de Dialéctica e Metapsíquica. Porque o título verdadeiro do volume seria o de Espiritismo e Dialéctica. Evitou assim assustar a lebre na beira da estrada. Não se iludam, porém, os espíritas, mormente os espíritas brasileiros, tão afeitos a deixar de lado o que foge ao aspecto religioso da doutrina. As páginas de Mariotti não se referem apenas a uma controvérsia filosófica entre as duas doutrinas que lhe formam o título eventual. Elas são, pelo contrário, um brado de alerta e um convite sério à meditação e ao estudo. Principalmente ao estudo da natureza dialéctica do Espiritismo e das possibilidades imediatas da sua aplicação ao mundo – para transformá-lo.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Da especulação à experimentação, 12º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

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