Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 20 de dezembro de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~

  Enquanto o coche devorava as distâncias, na manhã de sol, acompanhando o esposo de retorno ao lar, Beatriz reflectia sobre os presságios que a perturbaram nos dias anteriores. As sensações aflitivas que a visitaram prenunciavam tragédia que, felizmente, não se consumou. Afervorada à devoção que mantinha com o santo de Assis, entregara-lhe, desde então, o espírito aturdido, confiando no socorro do Poverello. Asserenada da angústia, não dissipara da mente a estranha sensação de que estava vivendo em atmosfera maléfica. Era como se demónios se tivessem apossado da herdade em que vivia. Aliás, mais de uma vez instara com o marido para viverem uma larga temporada em Siena, onde não teriam dificuldade em adquirir um dos muitos palácios vazios, desde a grande crise que assolara a Toscana… O marido demonstrava amá-la verdadeiramente, não o duvidava, conquanto mantivesse naturais suspeitas considerando as viagens frequentes que ele fazia, justificando-as com negócios complexos, intermináveis. Sempre que retornava, porém, mimava-a com presentes e tecidos, desejando-a bela e vaidosa. Pela primeira vez, sentia que algo cruel os espreitava: a ela e ao esposo. Discretamente, mirou o jovem companheiro, reclinado em estofado de plumas, lívido.

  “Era belo! – considerou. – Talvez ele desejasse os filhos, que tardavam chegar. Se lhe pudesse oferecer algum varão, enchê-lo-ia de orgulho e o reteria mais demoradamente em casa.”

  Os olhos se lhe encheram de lágrimas, pois que o amor, em qualquer expressão, dulcifica as almas, estruturando nelas as bases da verdadeira felicidade, que nem sempre os homens sabem preservar, quando a têm, ou construir, quando a não possuem real. Emocionada, tocou suavemente a nívea mão do amado, que estremeceu, descerrou os olhos e sorriu, um pouco intrigado.

  – Que se passa? – interrogou ele, cansado.

  – Pensava! – retorquiu ela, com ternura.

  – Pensar? – contestou, gentil –, não é arte que pertence aos homens? Preocupada comigo? Isto logo passará. Deve ser o peso dos problemas que me têm afligido ultimamente.

  – E por que não mos contas? Jurei que seria tua, na alegria e na dor, para a vida e para a morte. (A voz tremia-lhe e um assomo de meiguice emoldurava-a, transmitindo ao enfermo raios vivificantes e reparadores.) Amo-te muito, marido. Vejo-te preocupado, semblante carregado, arredio… Evito perturbar-te…

  Aproximou-se ainda mais do consorte e olhou-o com emoção.

  O esposo fitou-a demoradamente e, pela primeira vez, uma cogitação honesta lhe dominou o pensamento. Talvez o cansaço, a perda de energias lhe hajam facultado a lucidez, fazendo-o pensar. Pela mente turva, reexaminou os actos pretéritos e lamentou intimamente ser tarde… Logo, porém, refreou os lampejos que poderiam denunciá-lo, reassumindo a atitude de tola soberba, fechando os olhos, encerrando o benéfico entendimento.

  Quando os homens se reconhecerem fracos e interdependentes uns dos outros; quando as nobres expressões da honestidade moral dirigirem os impulsos; quando os desejos grosseiros forem submetidos à reflexão e à competente disciplina; quando as máximas do Cristo se espraiarem para além do Livro da Boa-Nova para se incorporarem no livro dos actos humanos de cada criatura; quando o amor deixar de ser uma utopia e for exercitado pelos indivíduos, a felicidade reinará sobre as vidas na Terra e o Reino dos Céus, estabelecido desde então, se alongará indefinidamente.

  Consideram os parvos e apressados, os gozadores e os cínicos que é impossível se transformarem sonhos em realidades; assentem os negligentes e os fracos, os impiedosos e facínoras, os displicentes e atormentados que a religiosa, a fé na vida futura, na imortalidade, é ópio embriagante e mentiroso, e deixam-se consumir por outros opiáceos, de imediata e maléfica consequência, a distância dos homens que auguram e logo esperam o primado do espírito Imortal na Terra. Felizmente, amanhece já, em madrugada de esperanças, esse período, embora as nuvens espessas que teimam em perdurar nos céus da actualidade social e moral da Terra, nesta transição dos períodos evolutivos. Graças a isso, milhares de corações concretizam, no momento, as esperanças de Jesus-Cristo, arrojando-se nos labores da fraternidade, em todos os sítios e lugares. Ei-los na frente das batalhas desconhecidas, contra a miséria de qualquer matiz, junto aos órfãos e obsidiados, aos ignorantes e revoltados, à velhice sem rumo e à enfermidade sem medicamento, elaborando e firmando as primícias da era da Paz e do Amor.

  Nos dias do amor, os homens se sustentarão uns aos outros e já não se farão lobos do próprio homem. A amizade se transformará em licor de entusiasmo, a correr nas veias dos sentimentos, conduzindo hemácias de simpatia nutriente, que se converterão em plasmas de vida sadia. O comércio psíquico com os infelizes do mundo espiritual inferior não mais se fará, porque, sendo sol, o amor é vida que anula e subtrai as forças nefastas, transformando-as.

  O amor, por enquanto, na Terra, encontra-se oculto em jazidas profundas, das quais só a ganga, o cascalho tem merecido consideração. Os inesgotáveis filões permanecem desconhecidos.

  Dia virá!... E já chegam esses dias esperados, em que o Paracleto se alastra na Terra, corporificando vidas e vidas recristianizadoras, na epopeia do lídimo renascimento do Cristianismo, em sua primitiva grandeza e eloquente pureza.

  Dia Virá!...

  O colóquio, lamentavelmente interrompido pelo moço acossado, era inspirado pela Senhora duquesa, tentando, em nome da Divina Providência, ajudar, diminuir consequências dolorosas, envolvendo os nubentes nas defesas que somente o amor, a prece, a caridade podem proporcionar. No célere momento de intercâmbio salutar, energias balsâmicas e puras penetravam reciprocamente os cônjuges, emanadas da invisível mensageira da Luz. No entanto, acostumado ao clima mefítico em que se rebolcava, Girólamo não suportava a transferência de atmosfera, como se lhe produzisse mal a que era refazedora. A interferência da entidade benfazeja representava o amor do Sumo Pai, que dispõe de recursos capazes de rectificar todos os males, modificando-lhes as estruturas em que se assentam e corrigindo os que produzem por meios próprios. Não é necessário que alguém se faça verdugo de outrem para que a Lei cobre os débitos do infractor. Há mecanismos providenciais que actuam automáticos e justos, refazendo e aprimorando espíritos, despertando consciências milenarmente ergastuladas na criminalidade ou na viciação; pululam meios salvadores e justiceiros, sem que outras consciências se entenebreçam nos meandros de agressões do mesmo jaez. Levantando-se do equívoco ou do agravo, da transgressão da ordem e do dever, o espírito pode recuperar-se mediante a elaboração dos valores éticos, que, em verdade, são a alma das sociedades, em todos os tempos.

  Podia ver-se, ao longe, a colina e o vetusto Solar di Bicci, A Condessa Beatriz falou, dedicada, ao marido:

  – Estamos próximo, querido. Logo mais chegaremos a casa.

  Girólamo aprumou-se e olhou a herdade com os seus ciprestes altos, balouçantes. Um constrangimento interior seguido de mau augúrio sitiaram-no.

  A alameda verdejante atraía. O amplo portão de acesso, em ferro trabalhado, escancarou-se à aproximação do veículo. No pátio amplo, a bela fonte jorrava linfa transparente.

  A alacridade dos servos e de alguns aldeães que lá se encontravam produziu agrado nos amos que chegavam. Ajudado zelosamente pelos lacaios, Girólamo pôs-se de pé e seguiu directo à grande entrada, encimada pelas armas tradicionais, com a introdução que mandara completar, iniciando o seu período genealógico. É verdade que desejava filhos, para continuarem o clã, e como estes demoravam, nisso encontrava justificação interior para mais se entregar às fugas galantes…

  Naqueles sítios, mesmo com o sol ardente, sempre se aspirava algum ar, na forte quadra do verão. Assim esperava o guapo senense refazer-se. Tivera o cuidado de transformar a peça da tragédia em sala de cómodo para diversos, raramente utilizada, senão quando chegavam hóspedes considerados. Ele próprio evitava, inconscientemente, a ala na qual se transformara em verdugo das vidas indefesas e sicário de si mesmo… Entretanto, na conjuntura que experimentava, voltava-lhe à mente, com assiduidade, o interesse de rever a recâmara, o que fez no dia imediato, como a vencer-se, sobrepondo a vontade aos primeiros lampejos de remorso.

  Visitou-a constrangido e lá, embora a colocação das arcas e dos pesados leitos em posição diversa, com reposteiros novos, experimentou a fustigante recordação dos arranjos com que a mesma se apresentava na noite trágica e que lhe ficaram indelevelmente gravados. O dia era claro e de sol abundante, porém, sentiu-se mal, com dificuldade respiratória, como se tudo estivesse cheio de fumo e sombras. O mal-estar que o acometeu dominou-o e fê-lo sofrer um vágado. Logo o corpo tombou, sentiu-se flutuar fora da indumentária carnal e, então, reencontrou o tio, a esperá-lo.

  – Que pretendes, criminoso? – interrogou o fantasma do desencarnado. – Por que não proclamas os crimes cometidos? Não sabes que mesmo fugindo da mentirosa justiça dos homens não fugirás da de Deus?

  Por miraculosa magia, o culpado não conseguia articular justificação ou defesa, nem podia fugir.

  – Serei impiedoso para contigo – prosseguiu o Espírito atormentado –, e não te deixarei enquanto não me haja saciado demoradamente, após seviciar-te até à exaustão. Rogarás misericórdia e desejarás morrer. Morrerás, sim, é o que desejo, mas não como gostarias. E continuaremos unidos, infelicitados por ti mesmo… Agora, desperta, cobarde, para sofrer…

/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (1 de 3) 29º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

 Se houvesse um Deus – argumentam –, para que serviriam  as irregula-ridades e despropor-ções enormes de volume e distância entre os planetas e o nosso sistema solar? Porquê essa completa ausência de ordem, de simetria, de beleza? Havemos de convir que é preciso ser um tanto pretensiosos para admitir cenografias de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza e a simetria às obras da Natureza. Parece-nos mesmo que é a primeira increpação que se faz neste sentido.

 De resto, esses senhores não nos oferecem senão negações. Negação de Deus, da alma, do raciocínio e dos seus poderes, sempre, e em tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e nada mais. A sua pretensa consciência científica é simples burla. Os nossos espirituosos adversários não raro resvalam no plano raso das puerilidades. Um dentre eles adverte que a luz circula com a velocidade de 75.000 léguas por segundo, entendendo que é pouco e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro acha que a Lua também não gira suficientemente célere. “A Lua – diz o americano Hudson Tuttle – não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto completa a sua revolução em torno da Terra, de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos o legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um intuito qualquer, a sua execução deveria ser assinalada.” Na verdade, o Criador foi assaz negligente deixando de admitir esses senhores na intimidade da sua técnica. Já se viu uma coisa assim? Deixá-los em completa ignorância dos fins que se propôs ao fazer rodar tão lerdamente a nossa amável Luazinha!

 Mas, de facto: será que Deus não poderia ter tido melhor conduta em benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que, perguntamo-nos ainda (i), a força criadora não gravou em linhas de fogo (certamente em alemão) o seu nome no céu? Porque não deu aos sistemas siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira evidente, a sua intenção e os seus desígnios?” Que estúpida esta divindade!

 Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa maneira de raciocinar iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.

 Que pena não terdes vós mesmos construído o Universo! Sim, porque então teríeis prevenido todos estes inconvenientes...

 Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer integralmente a matéria para afirmar que ela substitui Deus, com vantagem?

 Será que ela vos explica completamente o estado do Universo?

 Que respondeis? – Sem dúvida, atada não nos é dado saber ao certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento, mas, a Ciência atada não dispõe da última palavra e não é impossível que ela nos revele um dia a época em que nasceram os mundos.” Tal a definitiva resposta desses senhores. Por ela, ainda se confessam um tanto ignorantes.

 Que sucederá, então, quando se compenetrarem de que conhecem tudo, em absoluto? Ó Ciência! serão estes os frutos da tua árvore?

 Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner, que a comummente invocada profundeza do espírito alemão é antes perturbação que profundeza de espírito. “O que os alemães chamam filosofia – acrescenta o mesmo escritor – não é mais que mania de jogar com ideias e palavras, e com o que se atribuem o direito de olhar os outros povos por cima dos ombros.”

 Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no Universo.

 Semelhante acusação será mesmo feita a sério?

 Por nós, temos que é lícito duvidar.

 Em Outubro de 1604, uma magnífica estrela surgiu de improviso na constelação da Serpente.

 Os astrónomos ficaram muito surpresos, por isso que uma tal aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas variáveis ainda não eram conhecidas. Como, pois, nascera aquela? Fortuitamente? Engendrada ao acaso? Estas as interrogações de Kepler, quando sobreveio um pequeno incidente...

 “Ontem – disse ele –, no curso das minhas elucubrações, fui chamado para o jantar. A minha mulher trouxe à mesa uma salada. – Pensas, disse-lhe eu, que, se desde os primórdios da Criação flutuassem no ar, sem ordem nem direcção, pratos de estanho, folhas de alface, grãos de sal, azeite e vinagre e pedaços de ovo cozido, o acaso os juntaria hoje para fazer uma salada? – Não tão boa como esta, seguramente – respondeu-me a bela esposa.”

 Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto do acaso e hoje sabemos que o acaso não tem guarida no mecanismo dos astros. Kepler viveu adorando a harmonia do mundo e só como extravagância admitia dúvidas a respeito. Os fundadores da Astronomia – CopérnicoGalileuTycho BraheNewton, todos são concordes no mesmo culto de Kepler. (ii)

 Não são, portanto, os astrónomos que acusam o céu de falta de harmonia.

 Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós, terras habitadas que gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o vosso movimento harmonioso, sustai o vosso curso. A vida vos irradia da fronte a inteligência mora nas vossas tendas e os vossos campos recebem dos variados sóis que os iluminam, a seiva fecunda das existências. Sois levados, no infinito, pela mesma soberana mão que sustenta o nosso globo, mercê da suprema lei que inclina o génio à adoração da grande causa. Daqui, seguimos os vossos movimentos, mau grado às inomináveis distâncias que nos separam, e observamos que esses movimentos são regulados, qual os nossos, pelas três regras que a genialidade de Kepler vingou formular. Do fundo abismal dos céus, vós nos ensinais que uma ordem soberana e universal rege os mundos. Vós nos contais a glória de Deus em termos que deixam a perder de vista os com que a proclamava o rei-profeta, escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma criatura pode sequer pressentir. Astros de movimentação maravilhosa, gigantescos focos da vida universal, esplendores do céu! – vós nos fazeis genuflectir, como crianças, à vontade divina e os vossos berços balançam confiantes na imensidade, sob o olhar do Omnipotente. Percorreis humildemente a rota a cada qual traçada, ó viajadores celestes! E desde os mais remotos séculos, desde as idades inacessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos manifestando a previdente sabedoria da lei que vos conduz... Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos noctívagos, que fazeis? Parai, cessai com esse eterno testemunho...

 Detende o turbilhão colossal dos vossos cursos múltiplos. Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa obediência servil? Então, filhos da matéria, não será ela a soberana do espaço? Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças directoras? Nunca, jamais. Laborais num erro insigne, ó estrelas do infinito! sois vítimas do mais ridículo ilusionismo...

 Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais, dormita obscuro um pequenino globo desconhecido. Não tendes acaso percebido, uma por outra vez, entre as miríades de estrelas que branqueiam a Via-Láctea, uma estrelinha de ínfima grandeza?

 Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e em torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos que rolariam quais grãos de areia, na superfície de um de vós. Ora, sobre um dos mais microscópicos planos desses microscópicos mundículos, há uma raça de racionalistas e, no seio da raça, um núcleo de filósofos que acabam de declarar positivamente, ó magnificências! – que o vosso Deus não existe.

 Soberbos pigmeus levantaram-se na ponta dos pés, pensando ver-vos assim de mais perto. Eles vos acenaram para que vos detivésseis e proclamaram, em seguida, que os ouvísseis e que toda a Natureza estava com eles. Alto e bom som, se proclamam os intérpretes únicos dessa Natureza imensa. A lhes darmos crédito, pertence-lhes, doravante, o ceptro da razão e o futuro do pensamento humano está nas suas mãos. Firmemente convencidos estão eles, não só da verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua descoberta e da benéfica influência resultante para o progresso desta pequena humanidade. Ao demais fizeram constar que todos quantos lhes não compartilhassem a opinião estavam em contradita com a ciência natural e que a melhor qualificação cabível a esses dissidentes retardatários é de ignorantes obcecados. Não vos exponhais, portanto, a serdes tão desfavoravelmente julgadas por esses senhores, ó portentosas estrelas!

 Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptível sol, o nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racionalidade e, aderindo a esta declaração capital, paralisai o mecanismo do Universo e com ele a dimensão e harmonia; substituí o movimento pelo repouso, a luz pela treva, a vida pela morte e, depois, quando toda a capacidade intelectual for aniquilada, todo o idealismo banido da Natureza, suprimida toda a lei, atrofiada toda a força, o Universo se pulverizará, vós vos dispersareis em pó no bojo da noite infinita, e se o átomo terrestre ainda subsistir, os senhores filósofos, últimos viventes, estarão satisfeitos. Não mais se poderá dizer que haja inteligência na Natureza.

/... 
(i) Kraft und Steft; 8º.
(ii) Quanto mais aprofunda o homem os segredos da Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade do plano eterno. “Si stelles, fixae – diz Newton (Phil. nat Principia math, Scholgen) –, sint centra similium systematum, hoec omnia simili consilio constructa suberunt uniuns dominio”. – Cf. também Képler, Harmonices Mundi.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 3 de 3, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Diálogos de Kardec ~


§ II Manifestações Visuais
(em Manifestações dos Espíritos)

16. Por sua natureza e no seu estado normal, o perispírito é invisível, tendo isso de comum com uma imensidade de fluidos que sabemos existir, mas que nunca vimos. Pode também, como alguns fluidos, sofrer modificações que o tornam perceptível à vista, quer por uma espécie de condensação, quer por uma mudança na disposição molecular. Pode mesmo adquirir as propriedades de um corpo sólido e tangível e retomar instantaneamente o seu estado etéreo e invisível. É possível fazer-se ideia desse efeito pelo que acontece com o vapor, que passa do estado de invisibilidade ao estado brumoso, depois ao líquido, em seguida ao sólido e vice-versa.

Esses diferentes estados do perispírito resultam da vontade do Espírito e não de uma causa física exterior, como se dá com os gases. Quando um Espírito aparece, é porque ele põe o seu perispírito no estado apropriado a tornar-se visível. Entretanto, nem sempre é suficiente só a vontade para fazê-lo visível: é preciso, para que se opere a modificação do perispírito, o concurso de umas tantas circunstâncias que dele independem. É, preciso, ao demais, que ao Espírito seja permitido fazer-se visível a tal pessoa, permissão que nem sempre lhe é concedida, ou somente o é em determinadas circunstâncias, por razões que nos escapam. (Veja-se: O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, capítulo VI.)

Outra propriedade do perispírito, essa peculiar à sua natureza etérea, é a penetrabilidade. Matéria nenhuma lhe opõe obstáculo; ele as atravessa a todas, como a luz atravessa os corpos transparentes. Daí vem que não há como impedir que os Espíritos entrem num recinto inteiramente fechado. Eles visitam o preso no seu cárcere tão facilmente como visitam a um que está no campo de trabalhar.

17. As manifestações visuais ocorrem ordinariamente durante o sono, por meio dos sonhos: são as visões. As aparições propriamente ditas dão-se no estado de vigília, estando aqueles que as percebem no gozo pleno de suas faculdades e da liberdade de usa-las. Apresentam-se, em geral, sob forma vaporosa e diáfana, algumas vezes vaga e imprecisa. Frequentemente, não passam, à primeira vista, de um clarão esbranquiçado, cujos contornos pouco a pouco se acentuam. Doutras vezes, as formas apresentam-se nitidamente desenhadas, distinguindo-se os menores traços do rosto, ao ponto de poder descrevê-lo com precisão. Os ademanes e o seu aspecto assemelham-se aos que o Espírito tinha quando vivo.

18. Podendo assumir todas as aparências, o Espírito se apresenta debaixo daquela que mais reconhecível o possa tornar, se o quiser. É assim que, embora como Espírito nenhuma enfermidade corpórea lhe reste, ele se mostrará estropiado, coxo, ferido com cicatrizes, se isso for necessário a lhe comprovar a identidade. O mesmo se observa com relação ao traje. O dos Espíritos que nada conservam das fraquezas terrenas, a estes de ordinário constam amplos panos flutuantes e de uma cabeleira ondulante e graciosa.

Amiúde os Espíritos apresentam-se com os atributos característicos de sua elevação, como: uma auréola, asas os que podem ser considerados anjos, resplandecente aspecto luminoso, enquanto que outros trajam com o que recordam as suas ocupações terrestres. Assim, um guerreiro aparecerá com a sua armadura, um sábio com os livros, um assassino com um punhal, etc. A figura dos Espíritos superiores é bela, nobre e serena; os mais inferiores têm qualquer coisa de feroz e bestial e, por vezes, ainda mostram vestígios dos crimes que cometeram ou dos suplícios por que passaram, sendo-lhes essas aparências uma realidade, isto é, julgam-se quais aparecem, o que é para eles um castigo.

19. O Espírito que quer ou pode realizar uma aparição toma por vezes uma forma ainda mais precisa, de semelhança perfeita com um sólido corpo humano, de sorte a causar ilusão completa e dar a crer que está ali um ser corpóreo.

Nalguns casos e dado certas circunstâncias, a tangibilidade pode tornar-se real, isto é, pode tocar-se, apalpar a aparição, senti-la resistente como um corpo vivo e com o calor que se observa neste, o que não impede que ela se desvaneça com a rapidez do relâmpago. Pode, pois, uma pessoa estar em presença de um Espírito, trocar com ele palavras e gestos ordinários e supor que se trata de um simples mortal, sem suspeitar sequer que tem diante de si um Espírito.

20. Qualquer que seja o aspecto sob que se apresente um Espírito, ainda que sob forma tangível, pode ele, no instante em que isso se dê, somente ser visível para algumas pessoas. Pode, pois, numa reunião, mostrar-se, apenas, a um ou a diversos dos que nela estejam. De dois indivíduos que se achem lado a lado, pode acontecer que um o veja e toque e o outro nem o veja, nem o sinta.

O fenómeno da aparição a uma só pessoa, entre muitas que se encontrem reunidas, explica-se por ser necessária, para que ele se produza, uma combinação do fluido perispiritual do Espírito com o dessa pessoa. E, para que isso se dê, é preciso que haja entre esses fluidos uma espécie de afinidade que permita a combinação. Se o Espírito não encontra a necessária aptidão orgânica, o fenómeno da aparição não pode reproduzir-se; se existe a aptidão, o Espírito tem a liberdade de aproveitá-la ou não. Daí resulta que, se duas pessoas igualmente dotadas quanto a essa aptidão se encontram juntas, pode o Espírito operar a combinação fluídica apenas com aquela das duas a quem ele se queira mostrar. Se não a operar com a outra, esta não o verá. É como se se tratasse de dois indivíduos cujos olhos estivessem vendados: se um terceiro quiser mostrar-se a um dos dois apenas, somente dos olhos desse retirará a venda. A um, porém, que fosse cego, nada adiantaria a retirada da venda: ele, por isso, não adquiriria a faculdade de ver.

21. São muito raras as aparições tangíveis, sendo, no entanto, frequentes as vaporosas. São-no, sobretudo, no momento da morte. O Espírito que se libertou como que tem pressa de ir rever os seus parentes e amigos, quiçá para avisá-los de que acaba de deixar a Terra e dizer-lhes que continua a viver. Recorra cada um às suas lembranças e verificará que muitos factos autênticos desse género, aos quais não foi dada a devida atenção, ocorreram, não somente à noite, mas em pleno dia e em completo estado de vigília.

§ III — Transfiguração. Invisibilidade

22. perispírito das pessoas vivas goza das mesmas propriedades que o dos Espíritos. Como já foi dito, o daquelas não se encontra confinado no corpo: irradia e forma em torno deste uma espécie de atmosfera fluídica. Ora, pode suceder que, em certos casos e dadas as mesmas circunstâncias, ele sofra uma transformação análoga à já descrita: a forma real e material do corpo se desvanece sob aquela camada fluídica, se assim nos podemos exprimir, e tomar por momentos uma aparência inteiramente diversa, mesmo a de outra pessoa ou a do Espírito que combina os seus fluidos com os do indivíduo, podendo também dar a um semblante feio um aspecto bonito e radioso. Tal é o fenómeno que se designa pelo nome de “transfiguração”, bastante frequente e que se produz, principalmente, quando as circunstâncias ocorrentes provocam mais abundante expansão de fluido.

O fenómeno da transfiguração pode operar-se com intensidades muito diferentes, conforme o grau de depuração do perispírito, grau que sempre corresponde ao da elevação moral do Espírito. Cinge-se às vezes a uma simples mudança no aspecto geral da fisionomia, enquanto que doutras vezes dá ao perispírito uma aparência luminosa e esplêndida.

A forma material pode consequentemente desaparecer sob o fluido perispirítico, sem que se faça para isso necessário que o fluido assuma outro aspecto. Por vezes, apenas oculta um corpo inerte ou vivo, tornando-o invisível para uma ou para muitas pessoas, como o faria uma camada de vapor.

Tomamos as coisas actuais unicamente como termos de comparação, sem pretendermos uma analogia absoluta, que não existe.

23. Estes fenómenos talvez pareçam singulares, mas somente por não se conhecerem ainda as propriedades do fluido perispiríticoEste é, para nós, um novo corpo, que há de possuir propriedades novas e que não se podem estudar senão pelos processos ordinários da Ciência, mas que não deixam, por isso, de ser propriedades naturais, só tendo de maravilhosa a novidade.

/…


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, II MANIFESTAÇÕES VISUAIS, III TRANSFIGURAÇÃO. INVISIBILIDADE, 12º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

agonia das religiões ~


Introdução – Tempos de Agonia

O desenvolvimento da humanidade tem sido marcado por fases de agonia e de morte, seguidas de fases mais duradouras de ressurreição e reconstrução. As forças que determinam essa espantosa sucessão encontram-se na própria criatura humana. Seria inútil procurarmos uma explicação celeste, fundada nos pressupostos da Ira de Deus ou da Justiça Divina, como seria inútil procurarmos enquadrá-la nas brilhantes teorias relativas à influência dos ritmos telúricos. A própria doutrina aristotélica da geração e corrupção não poderia dar-nos os elementos concretos do fenómeno. Segundo Toynbee, as civilizações desenvolvem-se nas linhas conceptuais de uma religião fundamental e entram em agonia quando se esvai o poder vital dessas religiões. A relação sociedade-religião parece perfeitamente válida, mas não nos oferece o segredo dessa estranha mecânica da agonia.

Os processos sócio-culturais de cada civilização têm a sua fonte no homem, pois a sociedade se apresenta objectivamente como um conglomerado humano. Parece evidente que o ritmo agónico deve estar ligado às entranhas e ao psiquismo do homem. Como estamos vivendo, agora, precisamente numa das curvas agudas desse ritmo – talvez a mais aguda por que já passou a humanidade – o momento é propício a que examinemos o fenómeno ao vivo, tocando com os dedos nos seus elementos determinantes. A agonia actual das religiões é geralmente considerada como resultante da situação crítica da sociedade no seu acelerado desenvolvimento tecnológico. O mundo do supérfluo, em contradição com o mundo da escassez, na estrutura social em que vivemos, levaria a civilização actual a um beco sem saída. As religiões agonizam porque o hedonismo social e o correspondente pedantismo cultural esvaziaram igualmente as arcas de tesouros metálicos dos ricos, os baús de crenças e crendices dos pobres, as esperanças de sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de riqueza do planeta e até mesmo o balaio de sonhos da Lua e as esperanças de um céu convertido em frios desertos siderais em que rolam mundos áridos e despovoados.

Inverte-se a tese de Toynbee. As religiões seriam produzidas e mantidas pelas civilizações, como o mel pelas comunidades das abelhas. Deus, filho do homem, está morto, segundo constatam os teólogos mais avançados. E enquanto os religiosos voltam a matar-se uns aos outros em nome do deus morto, as grandes potências da civilização sem perspectivas preparam os funerais atómicos da Terra. A opressão estatal esmaga o homem nas áreas capitalistas e socialistas. O Leviatã de Hobbes ameaça o mar, a terra e o céu. Como decifrarmos o enigma desses tempos apocalípticos, quando o próprio acto de pensar parece estar sujeito a controlos telepáticos? Os defensores da liberdade transformam-se em terroristas e sequestradores ou em líricos distribuidores de flores murchas, embalsamadas nas palavras mortas de paz e amor. A inocência das crianças desaparece na voragem da criminalidade infantil. E os velhos alquebrados, de olhos vazios, já não encontram nos templos os signos da fé que os embalou na infância, na adolescência, na mocidade e na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras sem hábitos, os monges sem escapulários e os santos cassados na sua santidade já não podem consolar os crentes.

O que aconteceu para que tudo se subverta dessa maneira total e violenta? Foi a morte de Deus que esvaziou o mundo ou foi o vazio do mundo que matou Deus?
As estruturas sociais são coercivas. Do clã à tribo e à horda, e desta à civilização, a lei do aglomerado humano é uma só, mas desenvolve-se a um ritmo de pressão crescente. A coerção aumenta na razão directa da estruturação. Da cabana do pagé à sacristia a religião segue esse mesmo ritmo. A massificação do homem na sociedade moderna fez o caminho de retorno sobre as conquistas do individualismo ateniense. Esparta suprimiu Atenas. O sonho frustrado da República de Platão já prenunciava o Leviatã de Hobbes. O desenvolvimento tecnológico aumentou a pressão social sobre o homem, como o desenvolvimento da institucionalização religiosa gerou o totalitarismo eclesiástico das grandes civilizações orientais, leviatãs teocráticas, e forjou a engrenagem férrea do milénio medieval. Os sonhos da Renascença, um instante para respirar, apagaram-se impotentes nas garras de aço da tecnologia contemporânea. A torquês social da moral e da religião esmagou as gerações em nome da utopia conjugada de liberdade e civilização.

O desespero existencial de Kierkegaard e a náusea de Sartre foram os frutos amargos da escamoteação da natureza humana pela hipocrisia farisaica dos formalismos sociais e religiosos. O homem formalizado perdeu a naturalidade e só teve uma saída para a sua angústia existencial: matar Deus e rebelar-se contra a sociedade. O facto não é novo. Repetiu-se na História, com os episódios de repressão violenta dos rebelados nas civilizações teocráticas e massivas do Egipto faraónico, da Mesopotâmia, de Israel com as suas leis de pureza, da Idade Média e da Era Vitoriana na Inglaterra. Os libertinos medievais, a prostituição romana, o nudismo das comunidades religiosas que buscavam o estado de graça do paraíso perdido, o deslumbramento da Europa do Século XVI ante a suposta liberdade absoluta dos selvagens da América, são os antecedentes da era pornográfica que assinala a libertinagem do nosso tempo.

Bastam esses factos para podermos tocar com os dedos a fímbria da verdade. Em Os Demónios de LoudunAldous Huxley oferece-nos um quadro portentoso das medidas eclesiásticas e das providências estatais, na Europa dos séculos XVI e XVII, com repercussões no Século XVIII, para aliviar a pressão moral e religiosa no caldeirão social. Diz Huxley: “Os prelados franceses e alemães estavam acostumados a receber o cullagium de todos os padres e informavam àqueles que não tinham concubinas que poderiam tê-las, se quisessem, mas que deveriam pagar para isso uma licença, e mais, que essa licença deveria ser paga mesmo pelos que não as tivessem.” O celibato forçado explodia de tal maneira que era conveniente regulamentá-lo, a fim de salvar-se pelo menos a aparência de santidade dos clérigos. Numa das notas de seu dicionário, Bayle conta como o Senado de Veneza tolerava os escândalos do clero para desprestigiá-lo na opinião pública, em favor das conveniências do Estado.

A deformação da criatura humana pelas exigências antinaturais das religiões dá-nos a chave do processo cíclico da morte das civilizações. Isso não quer dizer que tenhamos de aceitar as teorias actuais de uma psicologia libertina, mas que devemos compreender o erro e o perigo das repressões extremas em nome da moral e das religiões. Podemos compreender claramente que esse extremismo equivale à medicação de disfarce, que esconde o mal permitindo o seu desenvolvimento secreto no organismo social. A Inglaterra da moral vitoriana está hoje a braços com a explosão de situações incontroláveis. O seu Parlamento majestoso é levado à adopção de leis e medidas deletérias, como as referentes aos problemas da homossexualidade juvenil.

O ministério dos ciclos agónicos é facilmente decifrado quando levantamos a máscara da hipocrisia das sociedades antinaturais. O mesmo se dá no tocante às religiões repressivas, que acabam vencidas pela rebelião dos instintos naturais, agonizando no descrédito ou sendo substituídas por outras. Acusa-se o Cristianismo de ser o responsável pela universalização da hipocrisia, mas os próprios evangelhos atestam a atitude racional de Cristo em face dos que pretendiam lapidar a mulher adúltera. No caso de Zaqueu, Cristo aceita a sua hospitalidade quando ele promete devolver aos pobres o fruto impuro dos seus roubosMadalena arrependida tornou-se a seguidora dedicada e a escolhida para ser a primeira a vê-lo depois da ressurreição. Não há dúvida que os excessos repressivos do Cristianismo não foram determinados por Cristo, mas pelos seus apóstolos judeus, contaminados pela hipocrisia farisaica e de outras seitas judaicas. O Apóstolo Paulo, o que melhor compreendeu a posição de Cristo em tantos aspectos, não conseguiu escapar aos prejuízos do judaísmo, de sua formação judaica, quando se referia aos processos de repressão, tornando-os ainda mais agudos na religião nascente.

Explica-se a atitude paulina perante os abusos e excessos das religiões pagãs, mitológicas, em que as práticas fálicas, os rituais dionisíacos, toda a herança da velha Suméria, da Mesopotâmia, da libertinagem da Grécia e de Roma, contaminavam as ingénuas comunidades cristãs, ameaçando com os seus excessos os princípios espirituais da religião nascente. Paulo, extremamente zeloso, apegava-se aos resíduos da sua formação farisaica, agindo com violência para impedir que os cristãos retornassem às práticas da irresponsabilidade moral. Mas há enorme distância entre as medidas enérgicas de Paulo, que não usava a máscara da hipocrisia, e as medidas repressivas que mais tarde judaizaram as religiões cristãs. Ele, que combateu sem cessar os apóstolos judaizantes, incidiu no mesmo erro que tanto condenara, mas justificado pelas circunstâncias de uma época de ignorância e de costumes geralmente condenáveis.

O ponto crucial do problema religioso chama-se hipocrisia. E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da falta de compreensão do verdadeiro sentido de Religião, que é caminho e não ponto de chegada da espiritualização do homem. Os religiosos que pretendem atingir a santidade do dia para a noite, que se revestem de pureza exterior, encobrindo a podridão interior, são os hipócritas condenados veementemente no Evangelho. A solução desse grave problema, que responde pela morte cíclica das civilizações, está na compreensão da verdadeira natureza do homem, do processo natural do seu desenvolvimento espiritual. Os artifícios purificadores só servem para mascarar os indivíduos pretensiosos. As práticas ascéticas não podem ser forçadas. As paixões e os instintos do homem são manifestações de forças vitais que, debaixo do controlo da razão e do sentimento, podem e devem guiar o espírito nos rumos da transcendência.

Repetimos agora os ciclos agónicos do Oriente, da Grécia e Roma, de Israel, da Europa Medieval. A explosão pornográfica sobrepõe-se aos instintos vitais e aos controlos sociais. E a agonia das religiões anuncia a morte da civilização tecnológica. Não obstante, há uma esperança para a brilhante civilização condenada. As forças do espírito reagem contra a derrocada moral. Como na queda de Bizâncio, enquanto os clérigos cantam e pregam no meio da derrocada, há vigias de uma nova era espreitando o futuro nas almenaras. É o que procuro demonstrar neste livro, num rápido confronto das estruturas envelhecidas com as novas estruturas que nascem da própria terra, debaixo dos nossos pés. Poluída, envenenada, devastada, ameaçada, a Terra dos Homens, nossa mãe, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para novas dimensões de uma realidade em que estamos perdidos.
/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Introdução – Tempos de Agonia, 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Espiritismo na Arte ~


Parte VI

A Música (Parte 1)
– A música nas esferas superiores
(Julho de 1922)

A música é a voz dos céus profundos. No espaço tudo se traduz em vibrações harmónicas e, certas classes de espíritos, se comunicam, entre si, apenas por meio de ondas sonoras.

Na Terra, a sinfonia e a melodia, não são mais que ecos débeis e deformados dos concertos celestes. Os nossos instrumentos, mesmo os mais perfeitos, têm sempre qualquer coisa de mecânico e de áspero, enquanto que os sistemas de emissão do espaço, produzem os sons de uma delicadeza infinita.

Eis por que, em todos os graus da escala dos mundos e, da hierarquia dos espíritos, a música tem um lugar importante nas manifestações do culto que as almas rendem a Deus. Nas esferas superiores, ela se torna uma das formas habituais da vida do ser, que se sente mergulhado em ondas de harmonia, de uma intensidade e de uma suavidade, inexprimíveis.

Por ocasião das grandes festas no espaço, dizem os nossos guias espirituais, quando as almas se reúnem aos milhões para prestar homenagem ao Criador, na irradiação de sua fé e do seu amor, delas escapam eflúvios, radiações luminosas, que se colorem de cores combinadas e se convertem em vibrações melodiosas. As cores se transformam em sons e, dessa comunhão dos fluidos, dos pensamentos e dos sentimentos, emana uma sinfonia sublime, à qual respondem os acordes longínquos vindos das esferas, dos astros inumeráveis que povoam a imensidão.

Então, do alto descem outros acordes, mais potentes ainda, e um hino universal faz os céus e as terras estremecerem. Ao perceber esses acordes, o espírito se desenvolve, se expande; ele sente que vive na comunhão divina e entra em um arrebatamento que chega ao êxtase.

– A percepção das harmonias do espaço
– Melodias ouvidas na hora da morte

Sobre a Terra, a sinfonia é a forma mais alada da música. Quando esta é aliada a palavras, ela parece a Vitória Áptera (i), que rastejava sem poder levantar voo e planar no alto. A música ligada à palavras perde um pouco do seu prestígio e da sua amplidão. No entanto, a melodia nos acalenta, nos seduz, nos encanta; ela grava na nossa memória motivos que gostamos de repetir e que nos consolam nas tristezas de cada dia. Essa música, porém, parece muito pobre se a compararmos às harmonias do espaço; para entender e apreciar estas harmonias, é preciso possuir sentidos psíquicos bastante desenvolvidos.

Vimos mais de uma vez, nas sessões, carregadas lágrimas rolarem sobre as faces de certos médiuns, que percebiam os ecos da sinfonia eterna.

O médium G. Aubert, ainda que ignorante em música, num completo estado de automatismo, tocar no piano sonatas, árias inéditas e variadas, nas quais se reconhece o estilo de Beethoven, o de Bach (ii), o de Chopin (iii), o de Berlioz (iv), etc. A maior parte dos compositores célebres afirma que, nas suas horas de recolhimento, ouvem vozes, sons, que não provêm da Terra. (v)

Durante as famosas sessões dadas por Jesse Schefard, médium escocês, em todas as grandes capitais e diante de várias cortes soberanas, bem como nas sessões do Dr. San Ângelo, em Roma, ouviram-se coros celestes e acordes de numerosos instrumentos invisíveis. Os solos (vi) permitiam reconhecer as vozes dos cantores e cantoras falecidos.

A Sra. de Koning-Nierstrass relata uma de suas sessões, (vii) nos seguintes termos:

“Jesse Schefard hospedou-se em minha casa, em Haye, por cerca de seis semanas. Uma noite, eu e alguns amigos estávamos reunidos. O médium, tendo se levantado em meio-transe, colocou-se ao piano. Batidas ressoaram de todos os lados, luzes voltejavam no ambiente como borboletas... De repente, vozes de homens e de mulheres encheram o ar. Era um coro que entoava uma espécie de cântico; o Hosana e o Glória a Deus foram ouvidos por todos nós. Ora era um coro, ora vozes de mulheres, o soprano dominando todo o canto. Sentada perto do médium, constatei que ele não havia aberto a boca.

Dois dias depois, uma de minhas vizinhas me disse: ‘Ah! senhora de Koning, desfrutei do belo concerto que houve na outra noite na vossa casa, que músicos e que lindo coral se fizeram ouvir!’ E eu lhe perguntei: ‘A senhora ouviu uma voz de cada vez ou todo um coro?’ ‘Um coro, respondeu a senhora, eu percebia bem distintamente o soprano. Quem é que cantava tão maravilhosamente?’”

Esse testemunho espontâneo destruía qualquer hipótese de alucinação.

A respeito da música dos espíritos, lê-se na Introdução de Ensinamentos Espiritualistas, de Stainton Moses, professor da Faculdade de Oxford, a descrição de fenómenos obtidos em uma sala em que não havia piano, violino ou qualquer outro instrumento.

“Um som se produzia, excessivamente difícil de se descrever. Ele se parecia com o suave som de um clarinete, aumentando de intensidade e diminuindo de seguida, descendo até à primeira emissão abafada, por vezes também se extinguindo em um longo lamento melancólico. Jamais tendo ouvido algo que se aproxime desse som, verdadeiramente extraordinário, só posso dar-lhe uma descrição muito imperfeita; é preciso observar que obtivemos dele apenas notas isoladas e, no melhor dos casos, ritmos isolados. Os agentes invisíveis atribuíam esse facto à organização anti-musical do médium.”

Aliás, lê-se em Light, de 30 de Abril, as seguintes narrações, que mostram uma outra modalidade dessas manifestações, obtidas à cabeceira de moribundos e percebidas por outras pessoas presentes.

“Muitos livros foram escritos sobre as visões de moribundos e os acontecimentos extra-normais observados no momento da morte. Entre os casos mais interessantes, pode citar-se o do pequeno prisioneiro do Templo: Luís XVII (viii). Beauchesne conta que poucos instantes antes da morte do jovem príncipe, lhe perguntaram se sofria muito. Ele respondeu: ‘Sim, sofro, mas não muito, a música é tão bela’. Fizeram-lhe perguntas referentes a essa música que pessoa alguma ouvia, mas ele persistia em dizer: ‘É tão bela, eu a ouço’, e se admirava que ninguém a ouvisse.”

Há, também, o caso de Jakob Böhme (ix), cuja partida da Terra foi acompanhada da mais suave melodia, a qual ele foi o único a ouvir e a proclamar divina. Para Goethe, ao contrário, os sons que ele percebia no seu leito de morte, quando gritava; “Luz, mais luz ainda”, foram ouvidos por aqueles que se encontravam perto dele.

Chegam-nos de todos os lados da Inglaterra narrações sobre essas melodias do Alto, ouvidas pelos moribundos e frequentemente por aqueles que os assistem.

“A Sra. Leaning nos escreve: ‘Quando Lily Sewell morreu, sons harmoniosos foram ouvidos, pareciam proceder de um canto do quarto e isso durante os dois dias que precederam a morte. A criança não ouviu nada, mas os seus pais, a sua irmã e a empregada os perceberam, e no terceiro dia, quando a criança morreu, o som se suavizou, tornou-se semelhante ao som de uma harpa eólica (x), saiu do quarto, passou pela casa e se afastou gradualmente.”

Um professor de Eton (xi), em 1881, estando ao lado de sua mãe, ouviu, alguns minutos após ela ter morrido, a suave música de três vozes infantis, cantando um hino de uma forma tão penetrante que um ser humano não poderia tê-lo feito. Duas pessoas presentes, e o médico que lá se encontrava, também a ouviram e abriram uma janela para descobrir de onde vinham esses sons maravilhosos.

O Dr. Kenealy conta, assim, a morte de seu jovem irmão: “O seu quarto se abria para uma grande e bela paisagem, emoldurada por verdes colinas. Perto do seu leito, várias pessoas da família estavam sentadas, assim como o médico; era quase meio-dia, o Sol brilhante iluminava o quarto, o ar era puro e transparente; de repente, ouvimos uma melodia divina elevar-se bem perto de nós: era uma voz melancólica e celeste de mulher, voz cujas modulações não se podem descrever. Isso durou alguns minutos, depois fundiu-se, como o encrespar das ondas sobre a areia, ora ainda ressoando, ora apenas murmurando, depois fez-se o silêncio. Quando o canto começou, a criança entrou em agonia e, ao último murmúrio, a sua alma partiu.”

Por fim, anotamos este caso descrito por H. Rooske de Guilford: “Há alguns anos, a minha irmã e eu tivemos uma experiência que foi uma grande ajuda para nós na vida. A nossa mãe estava gravemente enferma, o médico e a governanta sabiam que os seus sofrimentos chegavam ao fim. Uma noite em que a minha irmã a velava com a governanta, ouviu, de repente, o mais belo, o mais majestoso dos coros, cantado por vozes como jamais ela havia ouvido assim, tão celestes. Virando-se para a governanta, ela lhe perguntou: ‘Estais ouvindo?’ E ela respondeu: ‘Não ouço nada.’ Eu estava deitado no quarto vizinho, esgotado por longas vigílias e cruéis inquietações; os sons celestes me despertaram de um profundo sono, saltei da minha cama e corri para o quarto de minha mãe, perguntando: ‘De onde vem essa música maravilhosa?’ De repente, os sons cessaram e nos aproximando da cama, vimos que a doce alma havia partido com a divina melodia.”

– O poder e a acção das vibrações sonoras

Vê-se, pelos factos acabados de narrar e pelo que as lições de o Esteta afirmam, que o poder das vibrações sonoras se revela sob mil formas. À medida que o homem penetra mais no conhecimento do Universo e da sua estrutura íntima, a lei que o rege, que é a da harmonia musical, aparece-lhe no seu princípio, assim como nos seus maravilhosos efeitos. É por ela que se edificam e se perpetuam toda a arquitectura dos mundos, todas as formas da vida universal. Pode perceber-se isso por uma simples experiência. Não é curioso, por exemplo, seguir sobre a placa de vidro ou de metal salpicada de areia e posta em contacto com um instrumento de cordas, as formas geométricas, os desenhos delicados e complicados que resultam de cada nota e de cada acorde?

No estudo da arte, não é preciso deixar-se desgostar por uma aridez aparente e superficial. O exame atento, a análise constante de todo o tema estético, revela-nos atractivos insuspeitáveis e contribui para nos iniciar na lei geral do belo. Pode comparar-se esse exercício mental à subida de uma montanha de aspecto áspero e escarpado, mas da qual cada depressão do terreno contém maravilhas ocultas e que, do seu cume altivo, nos faz descobrir o conjunto harmónico das coisas que se desenvolvem debaixo dos nossos olhos.

Todos os homens podem e devem interessar-se por essa questão, porque ela lhes reserva alegrias intelectuais bem superiores a tudo o que os prazeres mentirosos proporcionam.

O mais humilde operário tem no seu pensamento uma saída possível em direcção à compreensão do Belo, e aí ele sempre encontrará novos recursos para aperfeiçoar a sua própria obra. A arte dentro da profissão é um encaminhamento à arte superior. Cada um trabalha com um género particular de beleza mas, na sua finalidade ascensional, todas as almas se expandem numa concepção radiosa da universal e eterna beleza.

A dissociação da matéria e a acção das forças intra-atómicas dão nascimento a uma nova ciência que, ao desenvolver-se, abre, ao espírito humano, perspectivas mais amplas sobre a obra do Cosmos.

Em breve se reconhecerá o misterioso laço que une o pensamento, a vontade, à vibração, e que faz da vibração o agente do pensamento e da vontade, a fim de se construírem as inumeráveis formas que povoam a imensidão.

Em resumo, o som, o ritmo, a harmonia, são forças criadoras. Se nós pudéssemos calcular o poder das vibrações sonoras, avaliar a sua acção sobre a matéria fluídica, a sua forma de agrupar os turbilhões de átomos, chegaríamos a um dos segredos da energia espiritual.

No entanto, é suficiente observar, na experiência que acabamos de citar, as figuras geométricas traçadas pela voz humana ou pelo arco de um violino sobre a placa de vidro recoberta de areia fina, para compreender, por comparação, como o pensamento divino, que é a vibração mestra e a suprema harmonia, pode agir sobre todos os planos da substância e construir as formas colossais das nebulosas, dos sóis, das esferas, e fixar a sua trajectória através dos espaços.

O espectáculo da vida universal nos mostra, por toda a parte, o esforço da inteligência para conquistar e realizar o belo. Do fundo do abismo da vida, o ser aspira e sobe em direcção ao infinito das concepções estéticas, à ciência divina, aos cumes eternos onde reina a beleza perfeita. O esplendor do Universo revela a inteligência divina, assim como a beleza das obras de arte terrestres revelam a inteligência humana.
/... 

(i) Áptero: inseto sem asas (pulga, piolho, etc.); diz-se de estátuas de certas divindades antigas que, por excepção, eram representadas sem asas. Na Acrópole de Atenas, principal cidade grega, vêem-se as ruínas de um templo da deusa Vitória Áptera. (N.T., segundo o Dicionário Lello Universal.)
(ii) Johann Sebastian Bach: o mais famoso de uma célebre família de músicos alemães (Eisenach, 1685 - Leipzig, 1750). Foi cantor, violinista, organista, chefe de orquestra e professor. Autor de obras de música religiosa, vocal e instrumental que são admiráveis pela riqueza da inspiração, a audácia da linguagem harmónica e a alta espiritualidade. Bach trabalhou todos os géneros, com excepção da ópera, compôs cantatas, paixões, missas, obras para o órgão, para o cravo, suítes, partitas, concertos, motetos, prelúdios e fugas. Cego, morreu ditando os seus últimos corais ao genro e aluno Altnikol. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(iii) Frédéric François Chopin: pianista e compositor polaco, de origem francesa, nasceu perto de Varsóvia (Zelazowa-Wola, 1810 - Paris, 1849). As suas composições para piano (mazurcas, valsas, nocturnos, polonaises, prelúdios, sonatas, baladas, barcarolas, estudos e scherzos), de carácter romântico, pessoal, penetrante e, quase sempre, melancólico, são obras de um poeta; elas renovaram o estilo do piano. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(iv) Hector Berlioz: compositor francês (La Côte-Saint-André, Isère, 1803 - Paris, 1869). Autor de Os Troianos, A Danação de Fausto, Benvenuto Cellini, Sinfonia Fantástica, Requiem, A Infância de Cristo, obras notáveis pelo poder do sentimento dramático e sumptuosidade orquestral. Berlioz é um dos criadores da música de programa, isto é, aquela que procura, por meio de elementos instrumentais, descrever um assunto fixado em página literária que vem impressa no programa do concerto. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(v) Ver em No Invisível, Espiritismo e Mediunidade, Edições Léon Denis, o cap. XIV. (N.A.)
(vi) Solo: trecho musical executado por uma só voz ou um só instrumento, com acompanhamento ou sem ele. (N.T.)
(vii) Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, de outubro de 1921, p. 303. (N.A.)
(viii) Luís XVII (Louis-Charles de França): segundo filho de Louis XVI e Maria Antonieta; nasceu em Versailles em 1785. Prisioneiro no Templo, ele foi, após a execução de seu pai, proclamado rei da França pelos príncipes emigrados. Morreu na sua prisão em 1795. Certos autores afirmam que Luís XVII escapou da prisão e foi substituído por um menino doente, porém nenhuma prova séria veio abalar a convicção geral de que o príncipe realmente morreu na prisão. (N.T., segundo o Dictionnaire Nouveau Petit Larousse Illustré.)
(ix) Jakob Böhme: teósofo e místico alemão (1575-1624), nasceu em Alt-Seidenberg. (N.T.)
(x) Harpa eólica: instrumento musical constituído por uma caixa sonora com seis ou oito cordas, afinadas em um mesmo tom, e que soava quando exposta a uma corrente de vento. A palavra eólio, ou eólico, provém de Éolo, deus dos ventos nas mitologias grega e romana. (N.T.)
(xi) Eton: colégio fundado em 1440 por Henrique VI. O mais célebre estabelecimento de ensino da Inglaterra, frequentado por meninos, de doze a quinze anos, pertencentes às classes sociais mais elevadas (N.T.)



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VI A Música (Parte 1) – A música nas esferas superiores – A percepção das harmonias do espaço – Melodias ouvidas na hora da morte – O poder e a acção das vibrações sonoras, 24º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (X)

   As duas primeiras revelações só poderiam ser o resultado de um ensino directo; deveriam impor-se à fé pela autoridade da palavra do mestre, não estando os homens suficientemente evoluídos para participarem na sua elaboração.

  Notemos no entanto entre elas uma variante muito sensível que diz respeito à evolução dos costumes e das ideias, apesar de terem sido feitas no mesmo povo e no mesmo meio, mas com cerca de dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta, despótica; não admite discussão e impõe-se a todo o povo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceite e só se impõe pela persuasão; foi controversa mesmo em vida do seu fundador, que não desdenhou discutir com os seus adversários.

  A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e de maturidade intelectual, em que a inteligência desenvolvida não se pode resumir a um papel passivo, em que o homem não aceita nada às cegas e quer ver para onde é conduzido, saber o porquê e o como de cada coisa, devia ser simultaneamente produto de um ensinamento e fruto do trabalho, da pesquisa e da livre observação. Os Espíritos só ensinam o estritamente necessário para se entrar no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o que o homem pode encontrar por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, de controlar e submeter o todo ao cadinho da razão, deixando-o até por vezes adquirir experiência à sua custa. Fornecem-lhe o princípio, os materiais: compete-lhe a ele retirar daí benefícios e pô-los em acção (n.º 15).

  Tendo os elementos da revelação espírita sido dados em simultâneo, numa quantidade de pontos, a homens de todas as condições sociais e com diversos graus de instrução, é bem evidente que as observações não podiam ser feitas em todo o lado com os mesmos resultados; que as consequências a retirar daí, a dedução das leis que regem esta ordem de fenómenos, numa palavra, as conclusões a consolidar as ideias, só podiam sair do conjunto e da correlação dos factos. Ora, cada centro isolado, circunscrito a um círculo restrito, não vendo frequentemente mais do que uma só ordem de factos por vezes aparentemente contraditórios, não tendo geralmente a ver com uma mesma ordem particular de Espíritos e, além disso, entravados pelas experiências locais e pelo sectarismo, encontravam-se na impossibilidade material de abarcar o conjunto e, por isso mesmo, impotente para ligar as observações isoladas a um princípio comum. Apreciando cada um os factos sob o ponto de vista das suas convicções anteriores ou da opinião particular dos Espíritos que se manifestam, em breve teria havido tantas teorias e teses como centros, das quais nenhuma teria podido ser completada por falta de elementos de comparação e de controlo. Numa palavra, cada um deles se teria imobilizado na sua revelação parcial julgando possuir toda a verdade, por não saberem que em cem outros sítios se obtinha mais ou melhor.

  Por outro lado, é de notar que em sítio nenhum o ensino espírita foi dado de forma completa; este atinge um tão grande número de observações, em temas tão diversos que exigem quer conhecimentos quer aptidões mediúnicas especiais, que teria sido impossível reunir num mesmo ponto todas as condições necessárias. Devendo o ensino ser colectivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho disseminando os temas de estudo e de observação, como, em certas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objecto é repartida por diversos operários.

  A revelação foi-se assim fazendo parcialmente, em diversos lugares e por uma quantidade de intermediários, e é desta maneira que ainda prossegue neste momento, pois nem tudo foi ainda revelado. Cada centro encontra, nos outros centros, o complemento do que obtém e é o conjunto, a coordenação de todos os ensinamentos parciais que constituem a doutrina espírita.

  Era então necessário agrupar os factos esparsos para verificar a sua correlação, reunir documentos diversos, as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os temas, para os comparar, os analisar, estudar-lhes as analogias e as diferenças. Sendo as comunicações feitas por Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era necessário apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder-lhes, distinguir as ideias sistemáticas individuais e isoladas das que tinham a sanção do ensino geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas; eliminar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica sã, utilizar os erros de forma igualitária, os ensinamentos fornecidos pelos Espíritos, mesmo os de mais baixo nível, para conhecimento do mundo invisível, para formar com isso um todo homogéneo. Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração independente de qualquer ideia preconcebida, de qualquer preconceito de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente, fosse ela ou não contrária às suas opiniões pessoais. Este centro formou-se por si, por força das coisas e sem intuito premeditado (i).

  (i) O Livro dos Espíritos, a primeira obra que fez entrar o Espiritismo na via filosófica, pela dedução das consequências morais dos factos, que abordou todas as partes da doutrina, tocando nas questões mais importantes que levanta, foi, desde a sua aparição, o ponto de encontro na direcção do qual, espontaneamente, convergiam os trabalhos individuais. É notório que a publicação deste livro data da era do Espiritismo filosófico, que permanecera até então no domínio das experiências de curiosidade. Se este livro conquistou as simpatias da maioria, foi por ser a expressão dos sentimentos dessa mesma maioria e porque correspondia às suas aspirações; foi também porque cada um podia encontrar ali a confirmação e uma explicação racional para o que obtinha em particular. Se tivesse estado em desacordo com os ensinamentos gerais dos Espíritos, não teria tido nenhum crédito e teria rapidamente caído no esquecimento. Ora, a quem se uniram? Não foi ao homem, que não é nada por si mesmo, cavilha obreira que morre e desaparece, mas sim à ideia, que não morre quando emana de uma fonte superior ao homem. Esta concentração espontânea das forças dispersas deu lugar a uma correspondência imensa, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde se reflectem simultaneamente os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações e as fraquezas; arquivos preciosos para a posteridade, onde será possível julgar os homens e as coisas com base em peças autênticas. Na presença destes testemunhos irrecusáveis, que acontecerá depois a todas as falsas alegações, às difamações da inveja e do ciúme? (N. do A.)

  Deste estado de coisas resultou uma dupla corrente de ideias: umas, indo das extremidades para o centro; outras, regressando do centro para a circunferência. Foi assim que a doutrina caminhou prontamente para a unidade, apesar da diversidade de fontes de onde emanou; as teses diferentes foram caindo a pouco e pouco, devido ao seu isolamento, perante o ascendente da opinião da maioria por não encontrarem aí ecos simpatizantes. De imediato se estabeleceu uma comunhão de ideias entre os diferentes centros parciais; falando a mesma língua espiritual, entendem-se e simpatizam de uma ponta à outra do mundo.

  Os Espíritos sentiram-se fortes, lutaram com mais coragem, caminharam com passo mais seguro, quando deixaram de se sentir isolados, quando sentiram um ponto de apoio, um elo que os ligava à grande família; os fenómenos de que eram testemunhas nunca mais lhes pareceram estranhos, anormais, contraditórios, quando conseguiram liga-los a leis gerais de harmonia, abarcar com um olhar o edifício e ver em todo este conjunto um objectivo grande e humanitário (ii).

   (ii) Um testemunho significativo, tão notável como comovente, desta comunhão de ideias que se estabelece entre os Espíritos pela conformidade das convicções, são os pedidos de orações que nos chegam das regiões mais distantes, desde o Peru até aos extremos da Ásia, da parte de pessoas de religiões e de nacionalidades diversas que nunca vimos. Não será este o prelúdio de uma grande unificação em preparação? A prova das raízes sérias que o Espiritismo cria em todo o lado? É notável que, de todos os grupos que se formaram com a intenção premeditada de provocar uma cisão proclamando princípios divergentes, assim como os que, por razões de amor-próprio ou outras, não tendo o ar de estarem sujeitos à lei comum, se julgaram suficientemente fortes para caminharem sozinhos, suficientemente iluminados para não precisarem de conselhos, nenhum conseguiu constituir uma ideia preponderante e vital; todos se extinguiram ou vegetaram na sombra. Como poderia ser de outro modo, já que, para se evidenciarem, em vez de se esforçarem por dar um maior número de satisfações, rejeitaram dos princípios da doutrina precisamente o que lhe confere o maior atractivo, o que nela existe de mais consolador, de mais encorajador e de mais racional? Se tivessem compreendido o poder dos elementos morais que constituíram a unidade, não se teriam embalado numa ilusão quimérica; mas, tomando o seu pequeno círculo pelo Universo, só viram nos aderentes uma súcia que poderia facilmente ser derrubada por uma contra-súcia. Era enganar-se estranhamente sobre as características essenciais da doutrina e esse erro só poderia trazer decepções; em vez de quebrar a unidade, quebraram o único elo que lhes poderia dar força e vida. (Ver Revista Espírita, Abril 1866, pp. 106 e 111: O Espiritismo Sem os Espíritos; O Espiritismo Independente). (N. do A.)

   Mas como saber se um princípio está a ser ensinado em todo o lado ou se não passa do resultado de uma opinião individual? Não estando os grupos isolados em condições de saber o que se diz noutros sítios, era necessário que um centro reunisse todas as instruções para fazer uma espécie de despojamento das vozes e levar ao conhecimento de todos a opinião da maioria (iii).

  (iii) É este o objectivo das nossas publicações, que podem ser consideradas o resultado desse despojamento. Todas as opiniões são aí discutidas, mas as questões só são formuladas em princípios depois de terem sofrido a consagração de todos os controlos, porque só eles lhes podem conferir a força de lei e permitir que se façam afirmações. É por isso que não preconizamos com ligeireza nenhuma teoria e é nisso que a doutrina, procedendo do ensino geral, não é de modo nenhum o produto de uma tese preconcebida; é também o que lhe dá a força e garante o futuro. (N. do A.)

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 49 a 53 (X), 12º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 4 de outubro de 2015

Inquietações Primaveris ~


Espias e Batedores

A sondagem da morte pelos vivos vem da mais remota Antiguidade.

Através das manifestações da paranormalidade espontânea ou provocada, videntes e profetas, místicos cristãos, subtis maometanos, pitonisas gregas, hebraicas e romanas, magos babilónicos, xanãs das regiões árcticas, feiticeiros africanos, pajés dos trópicos e assim por diante empenharam-se na espionagem possível da morte. Já que todos morremos, é natural o interesse dos vivos pelo que os espera no reverso da vida. Os espias da morte sempre se mostraram misteriosos e sofisticados, servindo-se de atitudes e práticas que os distinguiam do comum dos homens. E como as faculdades paranormais estão sujeitas às variações do humor orgânico, surgiram entre eles os espertalhões egípcios, sumerianos, árabes e chineses, cultivadores de malabarismos e trapaças, encantadores de serpentes e evocadores de espíritos por meios pitónicos. Toda essa farândola de escamoteadores levou os videntes e profetas autênticos ao descrédito. As Ciências em desenvolvimento repeliram em nome da razão essa turba de delirantes profissionais e as religiões amaldiçoaram os que não exerciam essas funções em recintos sagrados, onde se faziam exclusivamente os milagres dessa espécie.

Dante Alighieri reergueu o prestígio dos videntes com as revelações espantosas de sua espionagem secreta (pois poeta é profeta) e pelas mãos de Beatriz percorreu os caminhos da deusa Hécate, espécie de inspectora dos reinos celestes e infernais, e ofereceu ao mundo a versão católica medieval das regiões de luz e sombra. Aumentou nas Igrejas a espionagem do Além e Shakespeare levou para os palcos as suas geniais encenações de fantasmas vingativos. Já entre os gregos haviam ocorrido coisas semelhantes, e na Guerra de Tróia as vidências proféticas de Cassandra semearam o terror das profecias nefastas. Vem de longe o prestígio e o temor dos agouros excitando os dons paranormais legítimos e incentivando as trapaças dos aventureiros. Nessa situação multimilenar de ambivalência temos a maior prova da naturalidade e permanente ocorrência desses fenómenos, e ao mesmo tempo a prova da sua normalidade, como manifestações inerentes à própria natureza humana. A designação científica de paranormal para esse tipo de manifestações revela o excessivo escrúpulo das Ciências em relação aos problemas que ameaçam os seus esquemas rígidos de uma realidade que ainda está longe de abranger na sua totalidade. No tocante apenas ao homem, à natureza humana, os trabalhos de cientistas eminentes como Richet, Crookes, Lodge, Zöllner e tantos outros causaram estupefacção e provocaram reacções brutais no meio científico, o que mostra uma mentalidade fechada e pré-científica. O caso da Parapsicologia é outra prova, e essa recente, da aversão da maioria dos cientistas pelas novas descobertas. Mas essa mentalidade, que Remy Chauvin chamou de alergia ao futuro, já não está a poder resistir ao impacto dos tempos actuais. Não obstante o misoneísmo das academias e outras instituições do género, as Ciências avançaram com tal rapidez neste século que não se poderá mais deter a sua marcha. As exigências tecnológicas e até mesmo o aumento populacional e as exigências bélicas empurram as Ciências para além dos seus estreitos sistemas, forçando-as a perseguir objectivos reais.

No passado recente o sábio Swedenborg, médium vidente e ectoplásmico, almoçando com o filósofo Kant na Alemanha, viu e descreveu-lhe o incêndio da sua própria casa em Estocolmo. Kant duvidou da veracidade do facto, que podia ser simples produto de alucinação. A notícia probante custou a chegar à Alemanha, mas acabou por chegar com os pormenores descritos por Swedenborg. Kant estabelecia a mais rígida linha demarcatória para os limites da Ciência, afirmando o princípio da impossibilidade da Ciência além da matéria. E isso se passava com um homem como Kant. Lombroso acusava Richet, em veementes artigos na imprensa, de devolver a Ciência à superstição, com as suas pesquisas de metapsíquica, e só compreendeu o seu erro depois que a sua mãe se materializou numa sessão com Eusapia Palladino e ele pôde segurá-la nos seus braços. Rhine foi acusado de fraude no seu controle estatístico das experiências parapsicológicas e teve de recorrer a dois congressos científicos para provar, através de exames das comissões competentes, que os controles estavam certos. Para negar os trabalhos de Crookes, inventaram que ele se apaixonara pela médium Florence Cook, pois fizera um poema em louvor à beleza de Katie King, o espírito que se materializava nas suas sessões experimentais. Todos esses factos, e muitos outros, revelam o baixo nível de uma mentalidade pseudocientífica, ainda imersa em tricas e futricas das fases escolares. Por isso Kardec declarou que os homens mais eminentes do planeta revelam às vezes uma leviandade que nos espanta, no trato dos mais graves problemas. Os títulos académicos e as cátedras absolutistas fazem subir a mosca azul à cabeça dos doutores que se julgam muito seguros na sua sabedoria, como se tivessem nas mãos todos os segredos da vida e da morte. Foram homens desse tipo universitário padronizado, dominados pelo fetichismo dos sistemas e das regras inadiáveis, como os clérigos aos seus dogmas, que tentaram e tentam, até hoje, esmagar debaixo dos pés, como baratas indefesas, as mais fecundas conquistas de cientistas independentes. Felizmente a Ciência não está subordinada a essas igrejinhas obstinadas e as grandes figuras do panorama científico tiveram a coragem moral de enfrentá-los em defesa da verdade.

Os videntes e os médiuns sinceros, embora ultrajados, perseguidos, ridicularizados, muitas vezes presos e condenados, nunca se atemorizaram diante desses sabichões (como Richet os chamou) e por toda a parte antecipou as conquistas científicas com as suas previsões. Tornaram-se os espias dos reinos proibidos e foram secundados pelos batedores atrevidos que não só espiaram de longe os mistérios ocultos, mas também penetraram nesses reinos para trazer ao nosso mundo obscuro, não o fogo do Céu roubado por Prometeu, mas as luzes da vida inextinguível que continuam acesas além das lápides dos cemitérios. Esses batedores audaciosos não temeram desprender-se dos corpos mortais sem morrer, para invadir os reinos proibidos. Kardec, na sua extrema prudência de homem de ciências, não aprovou essas aventuras, mas reconheceu o valor das que eram legítimas. Preferiu os métodos frios da pesquisa objectiva, aquecendo-os com o calor do amor pela Humanidade, e criou os métodos específicos da pesquisa espírita, adequados ao objecto da nova Ciência. Através deles, antecipou as descobertas tecnológicas de hoje, como a natureza extrafísica do pensamento e da mente, a constituição plásmica do corpo espiritual, os meios de comunicação com o mundo invisível, a pluralidade dos mundos habitados, a natureza cósmica e não apenas planetária da Humanidade, a possibilidade da acção da mente sobre a matéria e da possibilidade da comunicação com os espíritos de criaturas mortas, das aparições intangíveis e também das aparições tangíveis dos espíritos, a necessidade evolutiva das reencarnações, o problema do ectoplasma, que até hoje aturde os sábios de sabedoria escassa, e assim por diante. Ainda há pouco um desses sábios declarou à imprensa que os fenómenos de materialização de espíritos é hoje teoricamente possível, mas na prática é impossível, pois, para se produzir a materialização de uma criatura humana mediana precisaríamos de duzentos anos de produção de energia. Kardec já havia respondido a essa objecção há mais de um século, quando explicou que a materialização não é um fenómeno físico, mas fisiológico. Ninguém pode produzir um fenómeno de materialização, mesmo com a produção de energia eléctrica durante um milénio, se não dispuser do plasma específico emanado do corpo espiritual de um médium. O plasma físico, quarto estado da matéria, já descoberto por Crookes como matéria radiante, foi agora redescoberto pelos cientistas materialistas da Universidade de Kirov, na URSS, e os seus efeitos demonstrados em experiências sucessivas.

Faltou às Ciências do planeta a humildade necessária para compreenderem que até agora só se haviam preocupado com o aspecto sensível da Natureza (em termos platónicos) esquecendo-se do aspecto inteligível ou espiritual. Toda a realidade se constitui de espírito e de matéria, e o espírito é o elemento estruturador da matéria. Esse o nó górdio que as Ciências do mundo não puderam desatar, preferindo cortá-lo como o fez Alexandre, sem perceberem que nesse corte confessavam a sua potência e caíam no abismo inexplicável da morte. A Ciência Espírita desatou pacientemente o nó e por isso avançou muito além da ilusória sabedoria dos sábios terrenos. Isso não quer dizer que os espíritas tenham sido mais atilados, mas apenas que a humildade e a sensatez de Kardec os livraram de cair no mesmo alçapão. Como já compreendera Bacon, a Ciência é um acto de obediência a Deus. O cientista pode não acreditar em Deus, mas se não obedecer, às suas leis – que estruturam toda a realidade – nada poderão fazer. Ele começa por estudar as leis de cada campo da natureza em que pretende agir, e se não as conhecer com precisão e não as obedecer com rigor, jamais atingirá os seus objectivos. Repelir as manifestações paranormais, que sempre, em todas as latitudes da Terra e em todos os tempos se fizeram presentes e actuantes, pelo pressuposto anticientífico de que não passam de superstições populares, é dar prova de falta de senso e de pretensão orgulhosa. Negar a existência de um poder criador e ordenador do Cosmos é negar a evidência. O pecado das Ciências materialistas não é o da desobediência, pois elas não podem desobedecer a Deus, mas o estúpido pecado do orgulho arrogante. Na hora individual da morte de cada um, todos se curvam para o chão em obediência a Deus. Não há Ciência sem obediência. Essa é a lei básica de todo o desenvolvimento cultural. Não é sensato nem científico negar a realidade na qual estamos entranhados, na qual vivemos e da qual não podemos escapar. A cultura materialista não provém do conhecimento, mas do equívoco. E a finalidade da Ciência nada mais é que desfazer os equívocos para chegar à verdade. As bravatas dos astronautas materialistas que deram voltas na órbita da Terra e, não tendo encontrado Deus, chegaram à conclusão de que ele não existe, não passam de infantilidade. Isso prova que o materialismo leva ao infantilismo cultural. De outro lado encontramos o infantilismo das religiões dogmáticas e formalistas, que aceitam a existência de Deus na forma humana, fazem da criatura humana um Capuchinho Vermelho na Estrada do Bosque e assustam-nos com a imagem do Diabo em forma de Lobo Mau.

Os espias e os batedores da morte desfizeram as lendas ingénuas que nos encantam na infância, mas ao mesmo tempo mostraram-nos que elas correspondem a símbolos oníricos de realidades que devemos identificar ao amanhecermos como homens.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Espias e Batedores, 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)