A Força e a Matéria II – O Céu ~
Se houvesse um Deus – argumentam –, para que serviriam as irregula-ridades e despropor-ções enormes de volume e distância entre os planetas e o nosso sistema solar? Porquê essa completa ausência de ordem, de
simetria, de beleza? Havemos de convir que é preciso ser um tanto pretensiosos para admitir cenografias de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a
beleza e a simetria às obras da Natureza. Parece-nos mesmo que é a primeira increpação que
se faz neste sentido.
De resto, esses senhores não nos oferecem senão
negações. Negação de Deus, da alma, do raciocínio e dos seus poderes, sempre, e
em tudo, negação. Isso é o que propriamente lhes concerne, e nada mais. A sua
pretensa consciência científica é simples burla. Os nossos espirituosos
adversários não raro resvalam no plano raso das puerilidades. Um dentre eles
adverte que a luz circula com a velocidade de 75.000 léguas por segundo, entendendo
que é pouco e que é ridículo para um Criador o não poder acelerá-la. Outro acha
que a Lua também não gira suficientemente célere. “A Lua – diz o americano
Hudson Tuttle – não gira senão uma vez sobre si mesma, enquanto completa a sua
revolução em torno da Terra, de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face.
Assiste-nos o legítimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um
intuito qualquer, a sua execução deveria ser assinalada.” Na verdade, o Criador
foi assaz negligente deixando de admitir esses senhores na intimidade da sua
técnica. Já se viu uma coisa assim? Deixá-los em completa ignorância dos fins
que se propôs ao fazer rodar tão lerdamente a nossa
amável Luazinha!
Mas, de facto: será que Deus não poderia ter tido
melhor conduta em benefício de nossa instrução pessoal? Nós! “Por que,
perguntamo-nos ainda (i), a força criadora não gravou em linhas de
fogo (certamente em alemão) o seu nome no céu? Porque não deu aos sistemas
siderais uma ordem que nos desse a conhecer, de maneira evidente, a sua
intenção e os seus desígnios?” Que estúpida esta divindade!
Com efeito, senhores, sois admiráveis e a vossa
maneira de raciocinar iguala à vossa ciência, o que aliás não é pouco.
Que pena não terdes vós mesmos construído o Universo!
Sim, porque então teríeis prevenido todos estes inconvenientes...
Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer
integralmente a matéria para afirmar que ela substitui Deus, com vantagem?
Será que ela vos explica completamente o estado do
Universo?
Que respondeis? – Sem dúvida, atada não nos é dado
saber ao certo porque a matéria tomou tal movimento em tal momento, mas, a
Ciência atada não dispõe da última palavra e não é impossível que ela nos
revele um dia a época em que nasceram os mundos.” Tal a definitiva resposta
desses senhores. Por ela, ainda se confessam um tanto ignorantes.
Que sucederá, então, quando se compenetrarem de que
conhecem tudo, em absoluto? Ó Ciência! serão estes os frutos da tua árvore?
Aqui, é bem o caso de confessar, com o próprio Büchner, que a
comummente invocada profundeza do espírito alemão é antes perturbação que
profundeza de espírito. “O que os alemães chamam filosofia – acrescenta o mesmo
escritor – não é mais que mania de jogar com ideias e palavras, e com o que se
atribuem o direito de olhar os outros povos por cima dos ombros.”
Não há sabedoria, inteligência, ordem, harmonia no
Universo.
Semelhante acusação será mesmo feita a sério?
Por nós, temos que é lícito duvidar.
Em Outubro de 1604, uma magnífica estrela surgiu de
improviso na constelação da Serpente.
Os astrónomos ficaram muito surpresos, por isso que
uma tal aparição parecia contrária à harmonia dos céus. As estrelas variáveis
ainda não eram conhecidas. Como, pois, nascera aquela? Fortuitamente?
Engendrada ao acaso? Estas as interrogações de Kepler, quando
sobreveio um pequeno incidente...
“Ontem – disse ele –, no curso das minhas
elucubrações, fui chamado para o jantar. A minha mulher trouxe à mesa uma
salada. – Pensas, disse-lhe eu, que, se desde os primórdios da Criação
flutuassem no ar, sem ordem nem direcção, pratos de estanho, folhas de alface,
grãos de sal, azeite e vinagre e pedaços de ovo cozido, o acaso os juntaria
hoje para fazer uma salada? – Não tão boa como esta, seguramente – respondeu-me
a bela esposa.”
Ninguém ousou considerar a nova estrela como produto
do acaso e hoje sabemos que o acaso não tem guarida no
mecanismo dos astros. Kepler viveu
adorando a harmonia do mundo e só como extravagância admitia dúvidas a
respeito. Os fundadores da Astronomia – Copérnico, Galileu, Tycho Brahe, Newton, todos são concordes
no mesmo culto de Kepler. (ii)
Não são, portanto, os astrónomos que acusam o céu de
falta de harmonia.
Ó mundos esplendorosos! sóis do infinito, e vós,
terras habitadas que gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o vosso
movimento harmonioso, sustai o vosso curso. A vida vos irradia da fronte a
inteligência mora nas vossas tendas e os vossos campos recebem dos variados
sóis que os iluminam, a seiva fecunda das existências. Sois levados, no
infinito, pela mesma soberana mão que sustenta o nosso globo, mercê da suprema
lei que inclina o génio à adoração da grande causa. Daqui, seguimos os vossos
movimentos, mau grado às inomináveis distâncias que nos separam, e observamos
que esses movimentos são regulados, qual os nossos, pelas três regras que a
genialidade de Kepler vingou formular. Do fundo abismal dos céus, vós nos
ensinais que uma ordem soberana e universal rege os mundos. Vós nos contais a
glória de Deus em termos que deixam a perder de vista os com que a proclamava o
rei-profeta, escreveis no céu o nome desse ente desconhecido, que nenhuma
criatura pode sequer pressentir. Astros de movimentação maravilhosa,
gigantescos focos da vida universal, esplendores do céu! – vós nos fazeis
genuflectir, como crianças, à vontade divina e os vossos berços balançam
confiantes na imensidade, sob o olhar do Omnipotente. Percorreis humildemente a
rota a cada qual traçada, ó viajadores celestes! E desde os mais remotos
séculos, desde as idades inacessíveis em que saístes do primitivo caos, eis-vos
manifestando a previdente sabedoria da lei que vos conduz... Insensatos! massas
inertes, globos cegos, brutos noctívagos, que fazeis? Parai, cessai com esse
eterno testemunho...
Detende o turbilhão colossal dos vossos cursos
múltiplos. Protestai contra a força que vos avassala. Que significa essa
obediência servil? Então, filhos da matéria, não será ela a soberana do espaço?
Dar-se-á que haja leis inteligentes? Forças directoras? Nunca, jamais. Laborais
num erro insigne, ó estrelas do infinito! sois vítimas do mais ridículo
ilusionismo...
Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais,
dormita obscuro um pequenino globo desconhecido. Não tendes acaso percebido,
uma por outra vez, entre as miríades de estrelas que branqueiam a Via-Láctea,
uma estrelinha de ínfima grandeza?
Pois bem, essa estrelinha, como vós, é também um sol e
em torno dele rolam algumas miniaturas de mundos tão pequeninos que rolariam
quais grãos de areia, na superfície de um de vós. Ora, sobre um dos mais
microscópicos planos desses microscópicos mundículos, há uma raça de
racionalistas e, no seio da raça, um núcleo de filósofos que acabam de declarar
positivamente, ó magnificências! – que o vosso Deus não existe.
Soberbos pigmeus levantaram-se na ponta dos pés,
pensando ver-vos assim de mais perto. Eles vos acenaram para que vos
detivésseis e proclamaram, em seguida, que os ouvísseis e que toda a Natureza
estava com eles. Alto e bom som, se proclamam os intérpretes únicos dessa
Natureza imensa. A lhes darmos crédito, pertence-lhes, doravante, o ceptro da
razão e o futuro do pensamento humano está nas suas mãos. Firmemente
convencidos estão eles, não só da verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua
descoberta e da benéfica influência resultante para o progresso desta pequena
humanidade. Ao demais fizeram constar que todos quantos lhes não
compartilhassem a opinião estavam em contradita com a ciência natural e que a
melhor qualificação cabível a esses dissidentes retardatários é de ignorantes
obcecados. Não vos exponhais, portanto, a serdes tão desfavoravelmente julgadas
por esses senhores, ó portentosas estrelas!
Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptível
sol, o nosso átomo terrestre, a nossa vermínea racionalidade e, aderindo a esta
declaração capital, paralisai o mecanismo do Universo e com ele a dimensão e
harmonia; substituí o movimento pelo repouso, a luz pela treva, a vida pela
morte e, depois, quando toda a capacidade intelectual for aniquilada, todo o
idealismo banido da Natureza, suprimida toda a lei, atrofiada toda a força, o Universo
se pulverizará, vós vos dispersareis em pó no bojo da noite infinita, e se o
átomo terrestre ainda subsistir, os senhores filósofos, últimos viventes,
estarão satisfeitos. Não mais se poderá dizer que haja inteligência na
Natureza.
/...
(i) Kraft und Steft; 8º.
(ii) Quanto mais aprofunda o homem os segredos da
Natureza, mais se lhe desvenda a universalidade do plano eterno. “Si stelles,
fixae – diz Newton (Phil. nat Principia math, Scholgen) –, sint centra similium
systematum, hoec omnia simili consilio constructa suberunt uniuns dominio”. –
Cf. também Képler, Harmonices Mundi.
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 3 de 3, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)
Sem comentários:
Enviar um comentário