SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~
Enquanto o coche
devorava as distâncias, na manhã de sol, acompanhando o esposo de retorno ao
lar, Beatriz reflectia sobre os presságios que a perturbaram nos dias anteriores.
As sensações aflitivas que a visitaram prenunciavam tragédia que, felizmente,
não se consumou. Afervorada à devoção que mantinha com o santo de Assis,
entregara-lhe, desde então, o espírito aturdido, confiando no socorro do Poverello. Asserenada da angústia, não
dissipara da mente a estranha sensação de que estava vivendo em atmosfera
maléfica. Era como se demónios se tivessem apossado da herdade em que vivia.
Aliás, mais de uma vez instara com o marido para viverem uma larga temporada em
Siena, onde não teriam dificuldade em adquirir um dos muitos palácios vazios,
desde a grande crise que assolara a Toscana… O marido demonstrava amá-la
verdadeiramente, não o duvidava, conquanto mantivesse naturais suspeitas considerando as viagens frequentes que ele fazia, justificando-as com negócios
complexos, intermináveis. Sempre que retornava, porém, mimava-a com presentes e
tecidos, desejando-a bela e vaidosa. Pela primeira vez, sentia que algo cruel os
espreitava: a ela e ao esposo. Discretamente, mirou o jovem companheiro,
reclinado em estofado de plumas, lívido.
“Era belo! – considerou. – Talvez ele desejasse os filhos,
que tardavam chegar. Se lhe pudesse oferecer algum varão, enchê-lo-ia de
orgulho e o reteria mais demoradamente em casa.”
Os olhos se lhe encheram de lágrimas, pois que o amor, em
qualquer expressão, dulcifica as almas, estruturando nelas as bases da
verdadeira felicidade, que nem sempre os homens sabem preservar, quando a têm,
ou construir, quando a não possuem real. Emocionada, tocou suavemente a nívea mão
do amado, que estremeceu, descerrou os olhos e sorriu, um pouco intrigado.
– Que se passa? – interrogou ele, cansado.
– Pensava! – retorquiu ela, com ternura.
– Pensar? – contestou, gentil –, não é arte que pertence aos
homens? Preocupada comigo? Isto logo passará. Deve ser o peso dos problemas que
me têm afligido ultimamente.
– E por que não mos contas? Jurei que seria tua, na alegria
e na dor, para a vida e para a morte. (A voz tremia-lhe e um assomo de meiguice
emoldurava-a, transmitindo ao enfermo raios vivificantes e reparadores.) Amo-te
muito, marido. Vejo-te preocupado, semblante carregado, arredio… Evito perturbar-te…
Aproximou-se ainda mais do consorte e olhou-o com emoção.
O esposo fitou-a demoradamente e, pela primeira vez, uma
cogitação honesta lhe dominou o pensamento. Talvez o cansaço, a perda de
energias lhe hajam facultado a lucidez, fazendo-o pensar. Pela mente turva,
reexaminou os actos pretéritos e lamentou intimamente ser tarde… Logo, porém,
refreou os lampejos que poderiam denunciá-lo, reassumindo a atitude de tola
soberba, fechando os olhos, encerrando o benéfico entendimento.
Quando os homens se reconhecerem fracos e interdependentes
uns dos outros; quando as nobres expressões da honestidade moral dirigirem os
impulsos; quando os desejos grosseiros forem submetidos à reflexão e à
competente disciplina; quando as máximas do Cristo se espraiarem para além do Livro da Boa-Nova para se
incorporarem no livro dos actos humanos de cada criatura; quando o amor deixar
de ser uma utopia e for exercitado pelos indivíduos, a felicidade reinará sobre
as vidas na Terra e o Reino dos Céus, estabelecido desde então, se alongará
indefinidamente.
Consideram os parvos e apressados, os gozadores e os cínicos
que é impossível se transformarem sonhos em realidades; assentem os negligentes
e os fracos, os impiedosos e facínoras, os displicentes e atormentados que a fé
religiosa, a fé na vida futura, na imortalidade, é ópio embriagante e
mentiroso, e deixam-se consumir por outros opiáceos, de imediata e maléfica
consequência, a distância dos homens que auguram e logo esperam o primado do
espírito Imortal na Terra. Felizmente, amanhece já, em madrugada de esperanças,
esse período, embora as nuvens espessas que teimam em perdurar nos céus da
actualidade social e moral da Terra, nesta transição dos períodos evolutivos. Graças
a isso, milhares de corações concretizam, no momento, as esperanças de
Jesus-Cristo, arrojando-se nos labores da fraternidade, em todos os sítios e
lugares. Ei-los na frente das batalhas desconhecidas, contra a miséria de
qualquer matiz, junto aos órfãos e obsidiados, aos ignorantes e revoltados, à
velhice sem rumo e à enfermidade sem medicamento, elaborando e firmando as primícias
da era da Paz e do Amor.
Nos dias do amor, os homens se sustentarão uns aos outros e
já não se farão lobos do próprio homem. A amizade se transformará em licor de
entusiasmo, a correr nas veias dos sentimentos, conduzindo hemácias de simpatia
nutriente, que se converterão em plasmas de vida sadia. O comércio psíquico com
os infelizes do mundo espiritual inferior não mais se fará, porque, sendo sol,
o amor é vida que anula e subtrai as forças nefastas, transformando-as.
O amor, por enquanto, na Terra, encontra-se oculto em
jazidas profundas, das quais só a ganga, o cascalho tem merecido consideração. Os
inesgotáveis filões permanecem desconhecidos.
Dia virá!... E já chegam esses dias esperados, em que o
Paracleto se alastra na Terra, corporificando vidas e vidas recristianizadoras,
na epopeia do lídimo renascimento do Cristianismo, em sua primitiva grandeza e
eloquente pureza.
Dia Virá!...
O colóquio, lamentavelmente interrompido pelo moço acossado,
era inspirado pela Senhora duquesa,
tentando, em nome da Divina Providência, ajudar, diminuir consequências dolorosas,
envolvendo os nubentes nas defesas que somente o amor, a prece, a caridade
podem proporcionar. No célere momento de intercâmbio salutar, energias balsâmicas
e puras penetravam reciprocamente os cônjuges, emanadas da invisível mensageira
da Luz. No entanto, acostumado ao clima mefítico em que se rebolcava, Girólamo
não suportava a transferência de atmosfera, como se lhe produzisse mal a que
era refazedora. A interferência da entidade benfazeja representava o amor do
Sumo Pai, que dispõe de recursos capazes de rectificar todos os males,
modificando-lhes as estruturas em que se assentam e corrigindo os que produzem
por meios próprios. Não é necessário que alguém se faça verdugo de outrem para
que a Lei cobre os débitos do infractor. Há mecanismos providenciais que actuam
automáticos e justos, refazendo e aprimorando espíritos, despertando consciências
milenarmente ergastuladas na criminalidade ou na viciação; pululam meios
salvadores e justiceiros, sem que outras consciências se entenebreçam nos
meandros de agressões do mesmo jaez. Levantando-se do equívoco ou do agravo, da
transgressão da ordem e do dever, o espírito pode recuperar-se mediante a
elaboração dos valores éticos, que, em verdade, são a alma das sociedades, em
todos os tempos.
Podia ver-se, ao longe, a colina e o vetusto Solar di Bicci,
A Condessa Beatriz falou, dedicada, ao marido:
– Estamos próximo, querido. Logo mais chegaremos a casa.
Girólamo aprumou-se e olhou a herdade com os seus ciprestes
altos, balouçantes. Um constrangimento interior seguido de mau augúrio sitiaram-no.
A alameda verdejante atraía. O amplo portão de acesso, em
ferro trabalhado, escancarou-se à aproximação do veículo. No pátio amplo, a
bela fonte jorrava linfa transparente.
A alacridade dos servos e de alguns aldeães que lá se
encontravam produziu agrado nos amos que chegavam. Ajudado zelosamente pelos
lacaios, Girólamo pôs-se de pé e seguiu directo à grande entrada, encimada
pelas armas tradicionais, com a introdução que mandara completar, iniciando o
seu período genealógico. É verdade que desejava filhos, para continuarem o clã,
e como estes demoravam, nisso encontrava justificação interior para mais se
entregar às fugas galantes…
Naqueles sítios, mesmo com o sol ardente, sempre se aspirava
algum ar, na forte quadra do verão. Assim esperava o guapo senense refazer-se. Tivera
o cuidado de transformar a peça da tragédia em sala de cómodo para diversos,
raramente utilizada, senão quando chegavam hóspedes considerados. Ele próprio
evitava, inconscientemente, a ala na qual se transformara em verdugo das vidas
indefesas e sicário de si mesmo… Entretanto, na conjuntura que experimentava,
voltava-lhe à mente, com assiduidade, o interesse de rever a recâmara, o que
fez no dia imediato, como a vencer-se, sobrepondo a vontade aos primeiros
lampejos de remorso.
Visitou-a constrangido e lá, embora a colocação das arcas e
dos pesados leitos em posição diversa, com reposteiros novos, experimentou a
fustigante recordação dos arranjos com que a mesma se apresentava na noite trágica
e que lhe ficaram indelevelmente gravados. O dia era claro e de sol abundante,
porém, sentiu-se mal, com dificuldade respiratória, como se tudo estivesse
cheio de fumo e sombras. O mal-estar que o acometeu dominou-o e fê-lo sofrer um
vágado. Logo o corpo tombou, sentiu-se flutuar fora da indumentária carnal e,
então, reencontrou o tio, a esperá-lo.
– Que pretendes, criminoso? – interrogou o fantasma do
desencarnado. – Por que não proclamas os crimes cometidos? Não sabes que mesmo
fugindo da mentirosa justiça dos homens não fugirás da de Deus?
Por miraculosa magia, o culpado não conseguia articular
justificação ou defesa, nem podia fugir.
– Serei impiedoso para contigo – prosseguiu o Espírito
atormentado –, e não te deixarei enquanto não me haja saciado demoradamente, após
seviciar-te até à exaustão. Rogarás misericórdia e desejarás morrer. Morrerás,
sim, é o que desejo, mas não como gostarias. E continuaremos unidos,
infelicitados por ti mesmo… Agora, desperta, cobarde, para sofrer…
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (1 de 3) 29º fragmento da
obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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