Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 20 de dezembro de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~

  Enquanto o coche devorava as distâncias, na manhã de sol, acompanhando o esposo de retorno ao lar, Beatriz reflectia sobre os presságios que a perturbaram nos dias anteriores. As sensações aflitivas que a visitaram prenunciavam tragédia que, felizmente, não se consumou. Afervorada à devoção que mantinha com o santo de Assis, entregara-lhe, desde então, o espírito aturdido, confiando no socorro do Poverello. Asserenada da angústia, não dissipara da mente a estranha sensação de que estava vivendo em atmosfera maléfica. Era como se demónios se tivessem apossado da herdade em que vivia. Aliás, mais de uma vez instara com o marido para viverem uma larga temporada em Siena, onde não teriam dificuldade em adquirir um dos muitos palácios vazios, desde a grande crise que assolara a Toscana… O marido demonstrava amá-la verdadeiramente, não o duvidava, conquanto mantivesse naturais suspeitas considerando as viagens frequentes que ele fazia, justificando-as com negócios complexos, intermináveis. Sempre que retornava, porém, mimava-a com presentes e tecidos, desejando-a bela e vaidosa. Pela primeira vez, sentia que algo cruel os espreitava: a ela e ao esposo. Discretamente, mirou o jovem companheiro, reclinado em estofado de plumas, lívido.

  “Era belo! – considerou. – Talvez ele desejasse os filhos, que tardavam chegar. Se lhe pudesse oferecer algum varão, enchê-lo-ia de orgulho e o reteria mais demoradamente em casa.”

  Os olhos se lhe encheram de lágrimas, pois que o amor, em qualquer expressão, dulcifica as almas, estruturando nelas as bases da verdadeira felicidade, que nem sempre os homens sabem preservar, quando a têm, ou construir, quando a não possuem real. Emocionada, tocou suavemente a nívea mão do amado, que estremeceu, descerrou os olhos e sorriu, um pouco intrigado.

  – Que se passa? – interrogou ele, cansado.

  – Pensava! – retorquiu ela, com ternura.

  – Pensar? – contestou, gentil –, não é arte que pertence aos homens? Preocupada comigo? Isto logo passará. Deve ser o peso dos problemas que me têm afligido ultimamente.

  – E por que não mos contas? Jurei que seria tua, na alegria e na dor, para a vida e para a morte. (A voz tremia-lhe e um assomo de meiguice emoldurava-a, transmitindo ao enfermo raios vivificantes e reparadores.) Amo-te muito, marido. Vejo-te preocupado, semblante carregado, arredio… Evito perturbar-te…

  Aproximou-se ainda mais do consorte e olhou-o com emoção.

  O esposo fitou-a demoradamente e, pela primeira vez, uma cogitação honesta lhe dominou o pensamento. Talvez o cansaço, a perda de energias lhe hajam facultado a lucidez, fazendo-o pensar. Pela mente turva, reexaminou os actos pretéritos e lamentou intimamente ser tarde… Logo, porém, refreou os lampejos que poderiam denunciá-lo, reassumindo a atitude de tola soberba, fechando os olhos, encerrando o benéfico entendimento.

  Quando os homens se reconhecerem fracos e interdependentes uns dos outros; quando as nobres expressões da honestidade moral dirigirem os impulsos; quando os desejos grosseiros forem submetidos à reflexão e à competente disciplina; quando as máximas do Cristo se espraiarem para além do Livro da Boa-Nova para se incorporarem no livro dos actos humanos de cada criatura; quando o amor deixar de ser uma utopia e for exercitado pelos indivíduos, a felicidade reinará sobre as vidas na Terra e o Reino dos Céus, estabelecido desde então, se alongará indefinidamente.

  Consideram os parvos e apressados, os gozadores e os cínicos que é impossível se transformarem sonhos em realidades; assentem os negligentes e os fracos, os impiedosos e facínoras, os displicentes e atormentados que a religiosa, a fé na vida futura, na imortalidade, é ópio embriagante e mentiroso, e deixam-se consumir por outros opiáceos, de imediata e maléfica consequência, a distância dos homens que auguram e logo esperam o primado do espírito Imortal na Terra. Felizmente, amanhece já, em madrugada de esperanças, esse período, embora as nuvens espessas que teimam em perdurar nos céus da actualidade social e moral da Terra, nesta transição dos períodos evolutivos. Graças a isso, milhares de corações concretizam, no momento, as esperanças de Jesus-Cristo, arrojando-se nos labores da fraternidade, em todos os sítios e lugares. Ei-los na frente das batalhas desconhecidas, contra a miséria de qualquer matiz, junto aos órfãos e obsidiados, aos ignorantes e revoltados, à velhice sem rumo e à enfermidade sem medicamento, elaborando e firmando as primícias da era da Paz e do Amor.

  Nos dias do amor, os homens se sustentarão uns aos outros e já não se farão lobos do próprio homem. A amizade se transformará em licor de entusiasmo, a correr nas veias dos sentimentos, conduzindo hemácias de simpatia nutriente, que se converterão em plasmas de vida sadia. O comércio psíquico com os infelizes do mundo espiritual inferior não mais se fará, porque, sendo sol, o amor é vida que anula e subtrai as forças nefastas, transformando-as.

  O amor, por enquanto, na Terra, encontra-se oculto em jazidas profundas, das quais só a ganga, o cascalho tem merecido consideração. Os inesgotáveis filões permanecem desconhecidos.

  Dia virá!... E já chegam esses dias esperados, em que o Paracleto se alastra na Terra, corporificando vidas e vidas recristianizadoras, na epopeia do lídimo renascimento do Cristianismo, em sua primitiva grandeza e eloquente pureza.

  Dia Virá!...

  O colóquio, lamentavelmente interrompido pelo moço acossado, era inspirado pela Senhora duquesa, tentando, em nome da Divina Providência, ajudar, diminuir consequências dolorosas, envolvendo os nubentes nas defesas que somente o amor, a prece, a caridade podem proporcionar. No célere momento de intercâmbio salutar, energias balsâmicas e puras penetravam reciprocamente os cônjuges, emanadas da invisível mensageira da Luz. No entanto, acostumado ao clima mefítico em que se rebolcava, Girólamo não suportava a transferência de atmosfera, como se lhe produzisse mal a que era refazedora. A interferência da entidade benfazeja representava o amor do Sumo Pai, que dispõe de recursos capazes de rectificar todos os males, modificando-lhes as estruturas em que se assentam e corrigindo os que produzem por meios próprios. Não é necessário que alguém se faça verdugo de outrem para que a Lei cobre os débitos do infractor. Há mecanismos providenciais que actuam automáticos e justos, refazendo e aprimorando espíritos, despertando consciências milenarmente ergastuladas na criminalidade ou na viciação; pululam meios salvadores e justiceiros, sem que outras consciências se entenebreçam nos meandros de agressões do mesmo jaez. Levantando-se do equívoco ou do agravo, da transgressão da ordem e do dever, o espírito pode recuperar-se mediante a elaboração dos valores éticos, que, em verdade, são a alma das sociedades, em todos os tempos.

  Podia ver-se, ao longe, a colina e o vetusto Solar di Bicci, A Condessa Beatriz falou, dedicada, ao marido:

  – Estamos próximo, querido. Logo mais chegaremos a casa.

  Girólamo aprumou-se e olhou a herdade com os seus ciprestes altos, balouçantes. Um constrangimento interior seguido de mau augúrio sitiaram-no.

  A alameda verdejante atraía. O amplo portão de acesso, em ferro trabalhado, escancarou-se à aproximação do veículo. No pátio amplo, a bela fonte jorrava linfa transparente.

  A alacridade dos servos e de alguns aldeães que lá se encontravam produziu agrado nos amos que chegavam. Ajudado zelosamente pelos lacaios, Girólamo pôs-se de pé e seguiu directo à grande entrada, encimada pelas armas tradicionais, com a introdução que mandara completar, iniciando o seu período genealógico. É verdade que desejava filhos, para continuarem o clã, e como estes demoravam, nisso encontrava justificação interior para mais se entregar às fugas galantes…

  Naqueles sítios, mesmo com o sol ardente, sempre se aspirava algum ar, na forte quadra do verão. Assim esperava o guapo senense refazer-se. Tivera o cuidado de transformar a peça da tragédia em sala de cómodo para diversos, raramente utilizada, senão quando chegavam hóspedes considerados. Ele próprio evitava, inconscientemente, a ala na qual se transformara em verdugo das vidas indefesas e sicário de si mesmo… Entretanto, na conjuntura que experimentava, voltava-lhe à mente, com assiduidade, o interesse de rever a recâmara, o que fez no dia imediato, como a vencer-se, sobrepondo a vontade aos primeiros lampejos de remorso.

  Visitou-a constrangido e lá, embora a colocação das arcas e dos pesados leitos em posição diversa, com reposteiros novos, experimentou a fustigante recordação dos arranjos com que a mesma se apresentava na noite trágica e que lhe ficaram indelevelmente gravados. O dia era claro e de sol abundante, porém, sentiu-se mal, com dificuldade respiratória, como se tudo estivesse cheio de fumo e sombras. O mal-estar que o acometeu dominou-o e fê-lo sofrer um vágado. Logo o corpo tombou, sentiu-se flutuar fora da indumentária carnal e, então, reencontrou o tio, a esperá-lo.

  – Que pretendes, criminoso? – interrogou o fantasma do desencarnado. – Por que não proclamas os crimes cometidos? Não sabes que mesmo fugindo da mentirosa justiça dos homens não fugirás da de Deus?

  Por miraculosa magia, o culpado não conseguia articular justificação ou defesa, nem podia fugir.

  – Serei impiedoso para contigo – prosseguiu o Espírito atormentado –, e não te deixarei enquanto não me haja saciado demoradamente, após seviciar-te até à exaustão. Rogarás misericórdia e desejarás morrer. Morrerás, sim, é o que desejo, mas não como gostarias. E continuaremos unidos, infelicitados por ti mesmo… Agora, desperta, cobarde, para sofrer…

/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (1 de 3) 29º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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