Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 9 de março de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – II
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – Mas, então, se o passado se pode assim fundir no presente, se a realidade e a visão se consorciam desse modo, se as personalidades mortas de há muito podem ser vistas ainda, agindo no cenário da vida; se as novas construções e as metamorfoses de uma cidade do tipo de Paris podem desaparecer e deixar ver em seu lugar a cidade de outrora; se, enfim, o presente pode esvair-se para ressurreição do passado; em qual certeza podemos doravante confiar? Em que se torna a ciência de observação? Que será das deduções e das teorias? Sobre o que estão fundados nossos conhecimentos, que nos parecem os mais sólidos? E se aquelas coisas são verdadeiras, não deveremos de futuro duvidar de tudo, ou crer em tudo?

   Lúmen – Essas considerações, e outras, meu amigo, me absorveram e atormentaram; mas, todas elas não puderam destruir a realidade que eu via. Quando adquiri a certeza de que tínhamos presente, sob os olhos, o ano 1793, reflecti imediatamente que a própria ciência, longe de combater essa realidade (pois duas verdades não se podem opor uma à outra), devia dar-me disso a cabível explicação. Interroguei a Física e esperei a sua resposta.

   Quœrens – Quê! O facto era real?

   Lúmen – Não somente real, mas também compreensível e demonstrável. Ides receber a explicação astronómica. Examinei, inicialmente, a posição da Terra na constelação do Altar, da qual vos falei. Orientando-me em relação à estrela polar e ao zodíaco, assinalei que as constelações não eram muito diferentes das que são vistas da Terra e, afora algumas estrelas particulares, sua posição continuava sensivelmente a mesma. Orion reinava no equador terrestre; a Grande Ursa, detida em seu curso circular, tendia ainda ao Norte. Reportando-me às coordenadas dos movimentos aparentes, suspensos daí em diante, constatei então que o ponto onde eu via o grupo do Sol, da Terra e dos planetas devia marcar a 17ª hora da ascensão recta, isto é, ao 256° grau, mais ou menos (eu não dispunha de aparelho para tomar exacta mensuração). Observei, em segundo lugar, que esse ponto se encontrava rumo do 44° grau de distância do pólo Sul. Tais pesquisas tinham por fim identificar a estrela sobre a qual havia eu pairado e deram lugar a que eu concluísse encontrar-me num astro situado rumo do 76° grau de ascensão recta, e do 46° de declinação boreal. Sabia, por outro lado, pelas palavras do ancião, que o astro onde nos achávamos não estava muito distanciado do nosso Sol, pois este se incluía entre os astros vizinhos. Com a ajuda de tais elementos, pude facilmente encontrar nas minhas reminiscências qual a estrela em concordância com as posições assim determinas. Uma única a isso correspondia; era a estrela, de primeira grandeza, Alfa do Cocheiro, denominada também Capela ou a Cabra. Não havia a menor dúvida a respeito.

   Assim, eu estava então certamente num mundo dependente do sistema dessa estrela. De lá, o brilho do nosso Sol fica reduzido ao de uma simples estrela e, em consequência da viagem que faz, vai colocar-se em perspectiva diante e na constelação do Altar, situada precisamente em oposto à do Cocheiro, para o habitante da Terra. Desde então, procurei recordar qual era a paralaxe dessa estrela. Lembrava-me de que um dos meus amigos, astrónomo russo, já a havia calculado, e seu cálculo – confirmado – dava a essa paralaxe 0”,046 (*).

   Expresso em milhões de quilómetros, o número é 681.568.000. Assim, o astro sobre o qual eu me encontrava distava da Terra 681 triliões 568 milhões de quilómetros.

   Elucidado desse modo o problema, estavam três quartas partes resolvidas. Ora, eis aqui agora o facto capital, aquele para o qual chamo a vossa particular atenção, pois nele reside, no momento, a explicação da mais estranha das realidades.

   Sabeis que a luz não vence instantaneamente à distância de um lugar a outro, e sim sucessivamente. Não deixastes de assinalar decerto que, atirando uma pedra em águas tranquilas, uma série de encíclicas se sucedem em redor do ponto onde a pedra caiu. Assim se dá com os sons no ar, quando passam de um extremo a outro, assim ocorre com a luz no Espaço: ela se transmite gradualmente por ondulações sucessivas. A luz de uma estrela emprega, pois, certo tempo para chegar à Terra e essa duração depende naturalmente da distância entre uma e outra.

   O som percorre 340 metros por segundo. Um tiro de canhão é ouvido pelos artilheiros vizinhos da peça no preciso momento em que parte; um segundo depois por aqueles que estejam na distância de 340 metros; 3 segundos pelos que se acham a 1 quilómetro; 12 segundos para os a 4 quilómetros; 2 minutos para os ao décuplo desta distância; 5 minutos para os que, colocados a 100 quilómetros, ouçam ainda esse trovão dos homens. A luz se transmite com uma velocidade muito maior, porém não instantânea, conforme acreditavam os antigos. Ela percorre 300.000 quilómetros por segundo e faria oito vezes o giro do Globo em um segundo, se pudesse fazer voltas; emprega 15 segundos e 1/4 para vir da Lua à Terra; 8 minutos e 13 segundos se partir do Sol; 42 minutos para nos chegar de Júpiter; 2 horas saindo de Urano e 4 horas para fazer a viagem desde Neptuno. Vemos, pois, os corpos celestes, não tal qual eles são no momento em que os observamos, mas tal qual eram no instante da partida do raio luminoso que nos chegou. Se um vulcão, por exemplo, entrasse em erupção em um desses mundos referidos, não o veríamos projectar suas chamas senão 1 segundo e 1/4 depois, se se tratasse da Lua; 42 minutos decorridos, se estivesse em Júpiter; 2 horas mais tarde, se viessem de Urano; 4 horas após, caso proviessem de Neptuno. Se nós nos transportássemos para além do sistema planetário, as distâncias seriam incomparavelmente mais vastas e maior a demora na chegada da luz. Assim, o raio luminoso saído da estrela mais próxima da Terra, a Alfa do Centauro, despende mais de 1.400 dias para nos atingir; o que procede de Sírio emprega perto de um decénio para atravessar o abismo que nos separa desse sol.

   Estando a estrela Capela separada da Terra pela distância que mencionei, é fácil calcular, à razão de 300.000 quilómetros por segundo, quanto tempo necessita a luz para franquear tal intervalo. O cálculo feito dá sete decénios, 20 meses e 24 dias. O raio luminoso que sai de Capela, para vir à Terra, não nos chega senão depois de marchar, ininterruptamente, esses 14 lustros, 20 meses e 24 dias.

   Igualmente, o raio luminoso que parte da Terra, para atingir a estrela, ali não chega antes de tal decurso.

   Quœrens – Se o raio luminoso que nos vem dessa estrela emprega aquele tempo para atingir o nosso mundo, a luz que nos traz é pois a de quase 864 meses do momento da partida?

   Lúmen – Haveis compreendido com exactidão. E aí está precisamente o facto que importa bem penetrar.

   Quœrens – Assim, em outros termos, o raio luminoso é semelhante a um correio que nos traz as novidades da situação do país de onde vem e que, se demora 3.744 semanas em chegar, nos traz as notícias do país relativas ao momento da sua partida, isto é, de sete decénios anteriores ao instante em que nos chegam.

   Lúmen – Adivinhastes o mistério. Vossa comparação demonstra haverdes erguido uma ponta do véu. Para falar mais exactamente ainda, o raio luminoso seria um correio trazendo, não notícias escritas, mas a fotografia, ou, mais rigorosamente ainda, o próprio aspecto do país donde saísse. Vemos esse aspecto tal qual era no momento em que os raios luminosos enviados de cada um dos pontos do país no-lo fazem conhecido – na ocasião, repito, em que de lá saíram. Nada é mais simples, mais incontestável. Quando, pois, examinamos ao telescópio a superfície de um astro, não a vemos tal qual ela é no instante em que a observamos, e sim tal qual era ao tempo em que a luz, que ora nos chega, foi emitida pela dita superfície.
/…

(*) Ninguém ignora que, quanto mais distante se encontra um objecto, mais ele parece menor. O que é visto no ângulo de um segundo, está distante 206.265 vezes do seu tamanho natural, qualquer que seja o objecto, pois existindo 1.296.000 segundos em uma circunferência, a relação desta para o diâmetro é de 3,14159, e 1.296.000 / (3,14159 x 2) = 206.265.
A estrela Capela não divisando o meio diâmetro da órbita terrestre senão sob um ângulo 22 vezes menor, sua distância é 22 vezes maior; ela é, consequentemente, de 4.484.000 vezes o raio da órbita terrestre. As medidas micrométricas futuras poderão modificar as cifras desta paralaxe, mas em nada alterarão o princípio que serviu de base ao presente livro.


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – II, fragmento global 6º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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