Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 3 de maio de 2015

Inquietações Primaveris ~


Dialéctica | da Consciência

Deus não morreu, mas morreu o Papa. Os teólogos agoureiros da Morte de Deus também vão morrer, um a um, cada qual com a sua morte individual e intransferível. Paulo VI passou silencioso pelo tumulto do mundo. Fiel à sistemática da Igreja, não inventou reformas nem tentou cercar as reformas audaciosas de João XXIII. Ante a insubordinação do Cardeal Lefevre, que ordenou exércitos de novos padres para lutar contra ele, não se atemorizou nem promoveu represálias sagradas. Acusado brutalmente de pecados horríveis quando cardeal de Milão, limitou-se a lamentar o caluniador. Dava a impressão de um Júpiter envelhecido, que não dispunha mais de forças para desfechar os raios da ira mitológica sobre os atrevidos. Dedicou-se à semeadura da paz entre os homens, ofereceu-se como refém nos casos de sequestro e, ao invés de ameaçar os incrédulos com o espantalho do Diabo, chegou a prestar a mais espantosa homenagem ao Anjo Rebelado, afirmando: “Quem não acredita no Diabo não é cristão”. Ultimamente passou a falar na sua morte próxima, como se preparasse o mundo para aceitá-la como ele a aceitava. Se não conseguiu pacificar os homens, pelo menos manteve a paz da Igreja, desapontando os arruaceiros que tudo faziam para merecer uma maldição. Fez jus ao título de Sua Santidade, que tantos dos seus antecessores ostentaram sem dar mostras de merecimento.

A impressão que se tem, agora que o seu cadáver está diante do mundo com um apelo silencioso à concórdia e ao amor, é a de que ele foi o último Papa. O Colégio Cardinalício que deve eleger o novo Papa está com dificuldades. (i) Se o Espírito Santo não pousar docemente na cabeça veneranda de um dos candidatos à sua sucessão, não se sabe como os votantes farão a escolha. A Barca de Pedro está balançando indecisa sobre as águas, como a Arca do Dilúvio. Talvez tenha chegado o momento da Igreja, que há muito luta em vão para sair dos recifes teológicos em que encalhou depois da última conflagração mundial.

A consciência não é, como Sartre supôs, um vazio que se enche com dados do mundo. Pelo contrário, a consciência é a garra psíquica do homem, com a qual ele se apodera do mundo para transformá-lo, subjugando-o e adaptando-o às exigências humanas. Desde a selva esse diálogo se desenvolve através das civilizações. Os dados da consciência antecedem o mundo, provêm das regiões arquetípicas do inconsciente humano, onde se desenvolvem as estranhas florações dos anseios de perfeição, justiça e beleza, que deixaram as suas marcas por toda a parte, desde as inscrições e os desenhos rudes das cavernas até às obras-primas da escultura grega, das lendas e das canções do Folclore mais remoto até à pintura italiana e às sinfonias de Beethoven. O vazio que deve ser cheio é o do mundo, pelos dados subjectivos da consciência. O mundo é criado por Deus no mistério infinitesimal da mónada, essa ideia platónica que encerra em si toda a realidade futura, como, na teologia hebraica, a alma de Arão já continha em si todas as almas futuras. O mundo vazio, sem a presença humana, é apenas a matéria-prima de que a consciência do homem irá servir-se mais tarde para se desenvolver. A criança que nasce desprovida até mesmo das garras, instrumentos defensivos dos animais, traz em si mesma as potencialidades humanas da Humanidade em perspectiva. A semente necessita da Terra para germinar e desenvolver-se, a mónada necessita da carne e das suas formas para actualizar a sua espantosa potencialidade humana e divina. As forças naturais preparam, por milénios incalculáveis, com os elementos dos reinos inferiores, o material flexível e vibrátil que a consciência modelará no tempo, imprimindo-lhe lentamente os moldes secretos dos seus anseios.

As Filosofias incipientes apegam-se aos efeitos sensíveis dos processos e esquecem as suas causas. A leviandade humana, essa herança no homem da irresponsabilidade animal, leva os pensadores e os cientistas à formulação de hipóteses e teses absurdas sobre uma realidade que não conhecem. Proliferam as sabedorias vazias, os doutores pontificam nas cátedras e nos púlpitos fazendo afirmações temerárias que só servem para aumentar a insegurança e a angústia do homem nas sociedades formalizadas. Não obstante essa gratuidade aparente, a consciência fermenta as inquietações e aguça a curiosidade, liberando os vectores do espírito no plano das realizações superiores. Até mesmo as pompas assombrosas da morte contribuem para desencadear no homem as suas aspirações de uma visão mais segura e precisa da realidade a que foi lançado como um náufrago na praia de um país estranho. Nas civilizações mais adiantadas a pressão dos formalismos sócio-culturais esmaga as criaturas. Rousseau rompeu as muralhas da Genebra formalista ao tentar a aventura da liberdade humana. Voltaire armou-se da ironia para derrubar as instituições mentirosas. A consciência se definiu como ameaça perigosa nos burgos e nos castelos, inflamando nos homens o amor sacrificial pela castelã desconhecida a que nos pósteros chamariam de Liberdade. Sem essa dama solitária e temida o mundo jamais escaparia da barbárie.

A Dialéctica da Consciência se constitui da tese da realidade imediata em confronto, estática e poderosa na sua estruturação social, com a antítese da utopia, que lança Dom Quixote contra os moinhos de vento nas charnecas da Mancha. Sancho é o contrapeso que abrandará os seus excessos na busca de Dulcinéia. O desafio da Terra leva os homens aos sonhos e aos delírios. E apesar de todas as Condenações da sociedade acomodada e estática, o Quixote avança impávido, transfigurado pelo amor, na conquista do seu ideal. Ainda hoje os homens se matam, galopando em seus rocinantes de aço, contra todos os poderes da sociedade real, armada de explosivos atómicos, para salvar a castelã oprimida no castelo. Os interesses bastardos parecem haver asfixiado todas as esperanças humanas. Mas os anseios da consciência, que brotam das profundezas da alma humana, não cessam de sacudir e minar as estruturas do presente com os sonhos do futuro. Nada detém nem pode deter as forças secretas da consciência, vectores imponderáveis que transfiguram a realidade material do mundo.

O apego humano à realidade concreta decorre naturalmente do condicionamento animal da espécie, que por sua vez provém da unidade do Cosmos, da totalidade do real, que só se fragmenta na percepção sensorial. As pesquisas astronáuticas confirmaram essa unidade já percebida pelos gregos e confirmada rigorosamente pelo desenvolvimento actual da Física, da Biologia e da Psicologia. Os especuladores filosóficos do pluralismo se perdem nas discussões bizantinas sobre uma realidade caótica jamais comprovada. A multiplicidade que visualizam à distância na infinitude cósmica ou na variedade microscópica se resolve naturalmente na compreensão da natureza orgânica da realidade una. Quando passamos do politeísmo ao monismo o fazemos pelo simples motivo de havermos superado a ilusão sensorial da multiplicidade. Kardec resolveu esse problema através do encadeamento natural das coisas e dos seres, com este princípio gestáltico: “Tudo se encadeia no Universo”. Esse encadeamento é o próprio fundamento da Ordem Universal, sem a qual não haveria lógica na realidade e o conhecimento e a Ciência se tornariam impossíveis. Cassirer lembra que a fé na ordem universal equivale, na Ciência, à fé religiosa no Deus Único. Ambas não podem ser provadas por nenhuma pesquisa, mas se impõem a nós por necessidade lógica. Actualmente, com o acelerado desenvolvimento das pesquisas parapsicológicas, não há como negar a superação do sensório psicofisiológico pela percepção extra-sensorial da mente, que penetra em todas as dimensões do real comprovando e justificando as espantosas intuições dos gregos na Antiguidade.

A concepção monista do Universo corresponde à concepção monoteísta. Deus é uno porque é Consciência Cósmica, não em figura humana, mas num dinamismo consciencial abrangente, que tudo envolve, de maneira que ao mesmo tempo supera a realidade universal e nela se entranha. Por isso, como queria Flammarion, Deus está na Natureza e é a Natureza. Não obstante, o facto de ser natureza não obriga Deus à materialidade. A diferença entre Deus e a Natureza é qualitativa, a sua qualidade consciencial o distingue da qualidade material da Natureza. Espinosa colocou bem esse problema na sua teoria da Natura Naturata e da Natura Naturans, correspondentes aos princípios platónicos de sensível e inteligível. Mas isso não implica uma divisão da Natureza de Deus, que é una. Como em Platão, a Natureza Ideal de Deus reflecte-se no Universo como projecção criadora. Isso nos leva à teoria do elã criador em Bergson, esse impulso vital que penetra nas entranhas da matéria para produzir a vida. E nos leva também à teoria estética de Hegel, em que o Belo se infiltra e se desenvolve na criação artística, desde as formas primitivas e monstruosas da arte até ao equilíbrio harmonioso da arte clássica.

É evidente a relação de todos esses pensamentos com o problema da morte, em que a vida anima os corpos materiais e os leva a toda a perfectibilidade possível, como queria Kant, para depois reverter os elementos vitais, com a morte, a novas experiências criadoras. Sobre as teorias de Platão e Aristóteles, Tomás de Aquino e Santo Agostinho forjaram as bases da Teologia Cristã, amesquinhando o pensamento grego e desfigurando os princípios do Cristo na retorta dos dogmas sincréticos tirados de modelos pagãos. Dessas tentativas atrevidas surgiram as Religiões do Medo e da Morte, que levaram a Civilização Terrena à aberração do materialismo.

O estudo de um tema como o da educação para a morte exige incursões difíceis no pensamento antigo, moderno e contemporâneo, para o estabelecimento das conexões orientadoras. Não se pode entrar no labirinto sem o fio de Ariadne nas mãos, pois o Minotauro pode estar à nossa espera. Numa fase de transição cultural como a deste século o problema da morte exige de todos nós um esforço mental muitas vezes atordoante. Mas temos de fazer esse esforço, para que a vida não fracasse em nós. A vida nunca fracassa em si mesma, pois o elã vital nunca se enfraquece, mas pode fracassar em nós. Os que se apegam à sua vida, como ensinou o Cristo, a perderão, mas os que a perdem por amor d’Ele a reencontrarão em abundância. Quem impede o fluxo da vida suicida-se na barreira do seu egoísmo e volta ao círculo vicioso das reencarnações repetitivas. Esse é o castigo que o espírito preguiçoso se impõe a si mesmo.

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(i) No momento em que o Autor escrevia este capítulo, não havia sido eleito o substituto de Paulo VI. (N.E.)



José Herculano Pires – Educação para a Morte, Dialéctica da Consciência, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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