Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Março de 1917|

   A ideia de Deus, na nossa pátria obscurecida e alterada pelas religiões, apagou-se em muitas almas.

   Já há muito tempo que se formara na França uma corrente de incredulidade que tem minado, secretamente, os alicerces da religião e até de toda a ordem social.

   As horas trágicas chegaram e, sob uma devastadora tempestade de ferro e de fogo, a França conheceu a necessidade de um ideal nobre e de uma força moral que torne possível olhar a morte frente a frente, suportando, sem vacilações, todos os golpes da adversidade. A proximidade do perigo impôs, mesmo para os mais frívolos, uma gravidade concentrada e muitos pensamentos se voltaram para o Além.

   Tudo isso parecia ser outro tanto dos indícios de renovação espiritual. Do fundo do abismo de sofrimentos em que caímos, um grito de súplica se eleva para o céu; aspirações ascendem a formas religiosas mais altas e mais puras, proporcionando ao homem meios eficientes, capazes de desenvolver nele o que existe de imortal e divino.

   As ideia do passado poderão influir para essa recuperação, porém, já o afirmamos, na nova ciência, enaltecida e espiritualizada, é que se encontrará a religião do futuro, os princípios das sua crença e os elementos de convicção, porque a religião e a ciência não são antagónicas, excepto quando as consideramos nos seus aspectos inferiores. Elas se identificam e se fundem na sua directriz fundamental, no seu objectivo maior, que são o conhecimento do Universo e a comunhão íntima com a causa de todas as coisas: Deus!

   Talvez, na sua evolução, a religião enfraqueça no seu carácter colectivo, mas se fortalecerá em cada um de nós pelo desenvolvimento do conhecimento e da consciência individuais.

   É importante dirigirmos um olhar de conjunto para o Universo, para nos encontrarmos na presença de leis majestosas, que dominam os seres e as coisas sob a acção de um soberano poder. Ora, não existe lei alguma sem uma mente que a crie e sem uma vontade que zele pelo seu cumprimento.

   Nas silenciosas vastidões do abismo da vida onde gravitam os mundos uma Inteligência preside à ascensão das almas e à eterna harmonia do cosmo. (i)

   As anomalias e as contradições que muitos crêem descobrir no estudo do Universo nascem simplesmente da pobreza de suas observações. Os nossos grosseiros sentidos, mesmo ajudados pelos instrumentos que a tecnologia nos oferece, não nos podem dar senão uma pálida ideia do conjunto das coisas.

   A nossa ignorância sobre o mundo invisível mais ajuda a enfraquecer os nossos julgamentos e somente a revelação dos espíritos vem, oportunamente, preencher as principais lacunas do nosso entendimento, mostrando-nos, por exemplo, que as leis morais e as leis físicas se inter-relacionam e se fundem num todo harmónico, o mesmo ocorrendo com a ideia de Deus que se aperfeiçoa e se engrandece.

   Para o espírito que abandona as formas materiais e os limites dos cultos, Deus já não é um ser antropomórfico, isto é, o homem divinizado de que nos falam os livros sagrados e as crenças de idades antigas.

   Não! Deus é pura essência, é um princípio e uma meta, uma causa e um fim.

   Os espíritos bastante evoluídos para o poderem contemplar (e, neste caso, só conheço um), descrevem-no como um imenso foco de luz, cujo brilho e esplendor quase não se pode suportar e de onde partem as vibrações poderosas que animam o Universo inteiro. 

   Dele resulta uma impressão majestosa, mesclada por eflúvios de amor que penetram e comovem a quantos se aproximem dele.

   Com as asas do pensamento e da oração, no recolhimento dos sentidos, qualquer alma pode comunicar-se com esse foco eterno e sentir as suas irradiações. Todos os impulsos do pensamento religioso se permutam em contemplação e em êxtase, quando chegam a tais alturas.

   Realmente, no seu começo e no seu nobre fim, todas as crenças estão irmanadas e convergem para um único ponto.

   Assim como a fonte límpida e o regato murmurante, vão, finalmente, reunir-se no mar imenso, também o Bramanismo, o Budismo, o Cristianismo, o Judaísmo, o Islamismo e os seus derivados, nas suas mais nobres e puras formas, poderiam fundir-se numa vasta síntese e as suas orações, unindo-se às harmonias do mundo, se transformariam em um hino universal de adoração e de amor!

   Inspirado nesse sentimento de ecletismo espiritualista, muitas vezes me aconteceu juntar-me às orações de irmãos de outras religiões, sem me agarrar às fórmulas usadas em semelhantes meios, podendo orar com fervor, tanto nas grandes catedrais góticas, como nos templos protestantes, nas sinagogas ou mesmo nas mesquitas.

   No entanto, a minha oração consegue maior impulso e ardor à beira do mar, quando o embala o ritmo das ondas, assim como nos altos cumes, ante o panorama das planícies e dos montes, ou sob o domo imponente das florestas ou, à noite, sob a abóbada estrelada do firmamento, porque a natureza é o único templo verdadeiramente digno do Eterno.

   A necessidade, existente em cada um de nós, de criar um meio interior onde a alma possa encontrar refúgio contra as preocupações exteriores, contra os cuidados materiais, fortalecendo-se e voltando a tomar contacto com a pura essência de onde ela provém, é uma das condições indispensáveis da vida moral.

   No momento em que a idade e as doenças me privam dos grandes espectáculos da natureza, construí, por minha vontade, um templo interior onde o meu pensamento se alegra em ficar, nos momentos de calma e de isolamento, para render culto aos nobres espíritos cujo génio revelador aclarou, com a sua luz, os caminhos da humanidade.

   Nesse templo interior, por um esforço de imaginação, erigi as estátuas ideais, as imagens augustas dos messias, dos profetas e dos filósofos mais merecedores de respeito e admiração.

   No meio do santuário brilha o símbolo sagrado da Divindade, a quem, em primeiro lugar, as minhas adorações se dirigem. À sua direita, me aparece a grande figura do Cristo, meu venerável mestre, e à esquerda os mestres asiáticos: Krishna, Buda, Lao-Tse e Zoroastro, aos quais sucedem as estátuas dos filósofos gregos, desde Pitágoras a Platão. Diante deles me alegro, recitando os maravilhosos versos da sabedoria antiga.

   Por detrás do Cristo aparecem os mais autorizados representantes da doutrina cristã e, junto deles, repito para mim próprio o Sermão da Montanha, que é o resumo e a essência do próprio Cristianismo: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”, assim como os conceitos evangélicos reconhecidos como autênticos. Muito longe fiquei de me esquecer do grupo dos druidas e dos bardos. À frente deles se ergue a alta silhueta, a imponente figura de Taliesin e diante dele recito, com muita alegria, As Tríades, que são um maravilhoso monumento das tradições celtas, cuja ciência se iguala à profunda sabedoria do Oriente.

   Por último, depois, vem Allan Kardec, a quem considero o continuador e o renovador das grandes tradições de nossa raça.

   Peço ao leitor que me desculpe, prendendo-o com coisas tão pessoais, porém só lhe quis dar um exemplo de que pode conseguir ensinamentos úteis e inspirações salutares. Realmente, nas minhas visitas costumeiras a esses grandes espíritos, nos exercícios que a recordação deles provoca, isto é, no facto de recitar trechos de suas mais célebres obras, sempre encontrei a serenidade e o reconforto para o espírito.

   Não vejam, na diversidade das suas concepções, qualquer contradição, porque debaixo das suas formas variadas, em cada uma delas encontramos o mesmo impulso, a mesma aspiração para o bem e para a suprema beleza, que são outros tantos atributos de Deus, uma irradiação divina.

   De todo o conjunto se desprende uma síntese magnífica que resume o pensamento de todo um mundo no que ele possui de mais nobre e puro; síntese que narra, precisa e fecunda, o moderno espiritualismo, numa comunhão universal que um dia ligará todas as consciências e todos os corações.

   Lançando um olhar panorâmico sobre a história dos tempos modernos, parece que uma das missões da França é criar correntes de ideias para o mundo.

   Após dezoito séculos da vinda do Cristo, a França despertou a noção de fraternidade que dormitava no fundo das almas. Nenhuma outra nação trabalhou mais ardentemente para libertar o pensamento dos grilhões seculares e assegurar os direitos da consciência. Ela comunicou a chama de seu génio a várias teorias humanitárias e sociais.

   Na actual luta, o papel da França cresceu mais ainda, porque arrisca a sua liberdade e a sua própria existência para salvar a Europa da sua volta à barbárie. Assim obteve a simpatia e a admiração dos neutros, e até mesmo a consideração dos seus inimigos. Antes da guerra, acreditavam e afirmavam que se encontrava em franca decomposição, porém ela se sublimou, com um verdadeiro holocausto.

   Assim que acabar o sangrento drama a que assistimos, outra missão caberá à nossa pátria e essa concórdia, que une todos os seus filhos na hora do perigo, será mantida e garantida por outros meios, isto é, por novos processos de ensino e educação.

   A França deve ensinar ao mundo as regras da religião do futuro, dessa religião ampla e tolerante que terá por base a ciência dos factos e por coroamento as mais altas e mais puras aspirações do ideal espiritualista.

   Nessa religião, a fé e a ciência encontrarão um campo comum, uma possibilidade de comunhão de todos os espíritos e corações. Essa obra haverá de ser, entre todas, a mais preciosa para a humanidade, porque fará desaparecer a maior parte dos motivos de separação e de ódio, unindo os pensamentos e as vontades para esse “caminho real da alma”, do qual nos falou Platão, visando o fim elevado da alma, conforme a Doutrina dos Espíritos nos revela.

   Tal iniciativa garantiria que a França completasse a vitória das armas com uma vitória intelectual e moral mais bela e ainda mais frutífera. Dessa forma, o nosso país se elevaria à primeira classe das nações, merecendo o reconhecimento de todos os séculos futuros.

   Os tempos nunca foram mais favoráveis que agora para uma renovação religiosa, que excluiria qualquer espírito de sectarismo e de reacção. Da presente luta, assim esperamos, aparecerá uma nova sociedade, doutrinada pela provação, fortalecida pelo infortúnio e mais unida, disciplinada, consciente de seus deveres e responsabilidades.

   Parece que o progresso já se produz nos espíritos e que os homens compreenderam a natureza precária das coisas deste mundo, encarando com mais satisfação o problema dos destinos.

   Já faz três anos que a morte tem batido a tantas portas, tem visitado tantas casas que até os mais indiferentes a encararam, indagando a si mesmos, quem era esse misterioso hóspede e, pelas reflexões que a sua presença ditou, abriu-se nesses seres um caminho para o Infinito, para o Divino.

   No calor dos sofrimentos, a alma humana tornou-se mais apta a receber e compreender as verdades superiores e, de agora em diante, as futilidades e a sensualidade de outrora e as obras decadentes não poderiam mais satisfazê-la. Ela exige alimentos mais substanciais e mais fortes.

   Os estudos psíquicos, os testemunhos dos sábios com relação à sobrevivência da alma, lhe oferecerão condições mais sólidas para erguer um edifício mais digno dela e dos seus objectivos.

   A filosofia se aclarará com novas luzes, tiradas da doutrina de Allan Kardec. Em certas escolas já se compreende e se admite que a personalidade humana não se formou de um só golpe, porém lentamente e através dos séculos. A concepção apressada e insuficiente de uma única vida é trocada, paulatinamente, pela da evolução da alma através de existências sucessivas no infinito dos tempos.

   O nosso destino não é determinado por um favor particular ou pelo sacrifício de um salvador, mas por nós próprios. O ser consciente se constrói a si mesmo, tal como o escultor aperfeiçoa a sua estátua: a sua forma representativa só tem como valor a soma de seus esforços e cuidados. Ele se ilumina ou se obscurece conforme a natureza de seus pensamentos e de seus actos: a fonte das alegrias, das penas ou das recompensas reside nele, nas suas faculdades, nas suas percepções, aumentadas ou diminuídas.

   O destino não é senão o resultado das nossas obras boas ou más e recai sobre nós em forma de raios ou de chuva. Todo o sofrimento que se suporta com paciência é qual um golpe do cinzel do escultor que colabora para aperfeiçoar a sua obra.

   O resultado do nosso progresso é um desfrutar crescente de tudo que é grande, de tudo que é beleza, esplendor, luz e harmonia. É uma progressiva participação na vida universal, uma cooperação com a obra soberana, sob a forma de tarefas e missões que aumentam, gradualmente, de importância e extensão. Finalmente, é a plenitude da felicidade nas suas três formas importantes: virtude, génio e o amor...

   A nossa meta principal deve ser nos aproximarmos do foco supremo, deixando-nos penetrar pelas irradiações do pensamento divino, tornando cada vez mais estreita e mais profunda a comunhão com Deus, e, assim, atingirmos o conhecimento de todas as coisas, porque tudo se resume nele e vive nele.

   Tal é, na sua essência, o ensino que decorre da revelação dos grandes espíritos e que é bem conhecido dos que viveram na sua intimidade e deles receberam o pão da vida. Só participa desse ensino, por enquanto, um pequeno número de pessoas, mas ele deve ser estendido com profusão, para que as inteligências se aclarem, os caracteres se aperfeiçoem e as almas se elevem.

   Aí está por que, depois da guerra, os espíritas deverão divulgar essas verdades às mãos cheias, porque o terreno já estará admiravelmente bem preparado para a semeadura e eles não estarão sós no seu trabalho, porque a multidão imensa dos invisíveis os ampara e alenta.

   Sobre nós pairam, espiritualmente, os que deram a sua vida em sacrifício pela França e tombaram mortos na defesa da causa e do direito.

   Eles nos inspiram e nos exortam a não esquecermos do seu nobre exemplo e, por nossa vez, trabalharmos, de outras formas, para a salvação e fortalecimento da pátria.

   Eles se debruçam sobre os corações angustiados e as almas enlutadas, a fim de depositar nelas o bálsamo das consolações e das esperanças; asseguram-lhe que a sua afeição não se extinguiu e que a sua actividade não decresceu, mas que, pelo contrário, os seus sentimentos e a sua vida são mais intensos, mais reais e mais poderosos que os nossos.

   De toda a parte se levanta a voz dos espíritos para nos afirmar que sobre a atmosfera de ódio, vingança e pavor que pesa sobre o nosso infeliz planeta há um mundo superior onde reina a eterna justiça, onde os que lutaram e sofreram na Terra recolhem os frutos dos males que suportaram; um mundo no qual nos reuniremos algum dia para juntos comungarmos da paz serena e na divina harmonia!

/...
   Primeira Guerra Mundial 1914-1918.

   (i) Os nossos telescópios captaram mais de cem milhões de estrelas que, como sabemos, são outros tantos sóis, a maior parte dos quais superam o nosso em poder e brilho, arrastando, cada um deles, um maravilhoso cortejo de mundos.
Qual é a força que sustenta esses milhares de astros e planetas no vazio dos espaços, dirigindo a sua marcha interminável? É a mesma que regula o agrupamento dos átomos e as afinidades químicas, isto é, a lei da atracção. Pois bem, essa lei pertence ao domínio do invisível.



LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 2, Março de 1917 (2 de 2), 25º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

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