Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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domingo, 24 de setembro de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


A Doutrina Secreta ~

 Qual é a verdadeira doutrina do Cristo? Os seus princípios essenciais encontram-se claramente enunciados no Evangelho. É a paternidade universal de Deus e a fraternidade dos homens, com as consequências morais que daí resultam; é a vida imortal a todos franqueada e que a cada um permite em si próprio realizar “o reino de Deus”, isto é, a perfeição, pelo desprendimento dos bens materiais, pelo perdão das injúrias e o amor ao próximo.

 Para Jesus, numa só palavra, toda a religião, toda a filosofia consiste no amor:

 “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus, o qual derrama o seu sol sobre os bons e os maus e, faz chover sobre os justos e os injustos. Porque, se não amais senão aos que vos amam, que recompensa deveis ter por isso?” (Mateus, V, 44 e seguintes.).

 Desse amor o próprio Deus nos dá o exemplo, porque os seus braços estão sempre abertos para o pecador:

 “Assim, o vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um só desses pequeninos.”

 O sermão da montanha resume, em traços indeléveis, o ensino popular de Jesus. Nele está expressa a lei moral sob uma forma que nunca foi igualada.

 Os homens aí aprendem que não há mais seguros meios de elevação que as virtudes humildes e escondidas.

 “Bem-aventurados os pobres de espírito (isto é, os espíritos simples e rectos), porque deles é o reino dos céus. – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. – Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. – Bem-aventurados os limpos de coração, porque esses virão a Deus.” (Mateus, V, 1 a 12; Lucas, VI, 20 a 25.)

 O que Jesus quer não é um culto faustoso, não são umas religiões sacerdotais, opulentas de cerimónias e práticas que sufocam o pensamento, não; é um culto simples e puro, todo de sentimento, consistindo na relação directa, sem intermediário, da consciência humana com Deus, que é o seu Pai:

 “É chegado o tempo em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, porque tal quer, também, sejam os que o adorem. Deus é espírito e, em espírito e verdade é que devem adorar os que o adoram.”

 O ascetismo é coisa vã. Jesus limita-se a orar e a meditar, nos sítios solitários, nos templos naturais que têm por colunas as montanhas, por cúpula a abóbada dos céus e, de onde o pensamento mais livremente se eleva ao Criador.

 Aos que imaginam salvar-se por meio do jejum e da abstinência, diz:

 “Não é o que entra pela boca o que macula o homem, mas o que por ela sai.”

 Aos rezadores de longas orações:

 “O Vosso Pai sabe do que careceis, antes de lho pedirdes.”

 Ele não exige senão a caridade, a bondade, a simplicidade: “Não julgueis e não sereis julgados. Perdoai e sereis perdoados. Sede misericordiosos como o vosso Pai celeste é misericordioso. Dar é mais doce do que receber”.

 “Aquele que se humilha será exaltado; o que se exalta será humilhado”.

 “Que a tua mão esquerda ignore o que faz a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo; e então o teu Pai que vê em segredo, te retribuirá.”

 E tudo se resume nestas palavras de eloquente concisão:

 “Amai o vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. Nisso se encerram toda a lei e os profetas.

 Sob a suave e meiga palavra de Jesus, toda impregnada do sentimento da natureza, essa doutrina se reveste de um encanto irresistível, penetrante. Ela é saturada de terna solicitude pelos fracos e pelos deserdados. É a glorificação, a exaltação da pobreza e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilhoam o homem à Terra. A riqueza é um estorvo; impede o velo da alma e a retém longe do “reino de Deus”. A renúncia, a humildade, desatam esses laços e facilitam a ascensão para a luz.

 Por isso é que a doutrina evangélica permaneceu através dos séculos como a expressão máxima do espiritualismo, o supremo remédio aos males terrestres, a consolação das almas aflitas nesta travessia da vida, semeada de tantas lágrimas e angústias. É ainda ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram misturar, toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.

 A doutrina secreta ia mais longe. Sob o véu das parábolas e das ficções, ocultava concepções profundas. No que se refere a essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe as formas afirmando a sucessão das existências terrestres, nas quais a alma, reencarnada em novos corpos, sofreria as consequências de suas vidas anteriores e prepararia as condições do seu destino futuro. Ensinava a pluralidade dos mundos habitados, as alternâncias de vida de cada ser: no mundo terrestre, em que ele reaparece pelo nascimento, no mundo espiritual, ao qual regressa pela morte, colhendo num e noutro desses meios os frutos bons ou maus do seu passado. Ensinava a íntima ligação e a solidariedade desses dois mundos e, por conseguinte, a comunicação possível do homem com os espíritos dos mortos que povoam o espaço ilimitado.

 Daí o amor activo, não somente pelos que sofrem na esfera da existência terrestre, mas também pelas almas que em volta de nós vagueiam atormentadas por dolorosas recordações. Daí a dedicação que se devem às duas humanidades, a visível e a invisível, a lei de fraternidade na vida e na morte e a celebração do que chamavam “os mistérios”, a comunhão pelo pensamento e pelo coração com os que, Espíritos bons ou medíocres, inferiores ou elevados, compõem esse mundo invisível que nos rodeia e, sobre o qual se abrem esses dois pórticos por onde todos os seres alternativamente passam: o berço e o túmulo.

 A lei da reencarnação é indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes: a volta à carne, para os Espíritos em via de aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.

 No seu diálogo com Nicodemos, Jesus assim se exprime:

 “Em verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não poderá ver o reino de Deus.” Objecta-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” Jesus responde: “Em verdade te digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e, o que é nascido do espírito é espírito. Não te maravilhes de te dizer: importa-vos nascer outra vez. O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do espírito.” (João, III, 3 a 8.)

 Jesus acrescenta estas palavras significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”

 O que demonstra que não se tratava do baptismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da reencarnação já ensinada no “Zohar”, livro sagrado dos hebreus. (ii)

 Esse vento, ou esse espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe o novo corpo, a nova morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É a única explicação satisfatória.

 Na Cabala hebraica, a água era a matéria primordial, o elemento frutificado. Quanto à expressão Espírito Santo, que se encontra no texto e que o torna incompreensível, é preciso notar que a palavra santo nele não está na sua origem e que foi aí introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos. (iii) É preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.

 Noutra ocasião, a propósito de um cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos perguntam a Jesus:

 “Mestre, quem foi que pecou? Foi este homem, ou o seu pai, ou a sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, IX, 1 e 2).

 A pergunta indica, antes de tudo, que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação (de uma vida anterior). No seu pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a lei da consequência dos actos, fixando as condições do destino. Trata-se aí de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência anterior.

 Daí essa ideia da penitência, que reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova existência; rectificai o vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de “haverdes pagado até ao último ceitil.” (Mateus, V, 26).

 Em vão têm procurado os teólogos explicar doutro modo, que não é pela reencarnação, essa passagem do Evangelho. Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de Amsterdão não pôde sair-se da dificuldade senão com este dizer: “o cego de nascença havia pecado no seio de sua mãe”. (iv)

 Era também opinião corrente, nessa época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações, continuar, concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra na pessoa de João Baptista. Jesus afirma-o nestes termos, dirigindo-se à multidão:

 “Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro e, mais que um profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. – O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Mateus, XI, 9, 14 e 15)

 Mais tarde, depois da decapitação de João Baptista, ele repete-o aos discípulos:

 “E os seus discípulos o interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem os escribas que importa vir primeiramente Elias? – Ele, respondendo, lhes disse:”

 “Elias, certamente, devia vir e restabelecer todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe fizeram quanto quiseram. – Então, conheceram os seus discípulos que de João Baptista é que ele lhes falara.” (Mateus, XVII, 10, 11, 12 e 15).

 Assim, para Jesus, como para os discípulos, Elias e João Baptista eram a mesma e uma única individualidade. Ora, tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante facto não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.

 Numa circunstância memorável, Jesus pergunta aos seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”

 E eles lhe respondem:

 “Uns dizem: é João Baptista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas.” (Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28)

 Jesus não protesta contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do cego de nascença. Ao demais, a ideia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a percorrer para se elevar à perfeição, não se encontra implicitamente contida nestas palavras memoráveis: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” Como poderia a alma humana alcançar esse estado de perfeição em uma única existência?

 De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob os véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.

 Aos primeiros fiéis escrevia Barnabé:

 “Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do que pode contribuir para a vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque, se vos escrevesse relativamente às coisas futuras, não compreenderíeis, porque elas se encontram expostas em parábolas.” (Epístola católica de São Barnabé, XVII, l, 5).

 Em observância a esta regra é que um discípulo de São PauloHermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na construção de um edifício espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).

 “Porque foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura dessa torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? – Era necessário, diz-me o senhor, que, antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio da água. Não poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que não fosse despojando-se da imperfeição da sua primeira vida.”

 Evidentemente essas pedras são as almas dos homens; as águas (v) são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida celeste. Há nisso um símbolo perfeito da reencarnação, cuja ideia era ainda admitida no século III e divulgada entre os cristãos.

 Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerónimo considera-o, “depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade – diz ele – que só a ignorância poderia negar”. S. Jerónimo vota tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerónimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.

 No seu livro célebre, “Dos Princípios”, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, numa palavra, na sucessão das vidas, o correctivo necessário à aparente desigualdade das condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se já não se admite uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.

 Errónea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral e, da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo concílio de Calcedónia e mais tarde pelo quinto concílio de Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes, (vi) reconhecemos que esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.

 Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma nunca foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro e é esse um ponto que é necessário estabelecer.

 Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos se encontra indicada no Evangelho, em forma de parábola:

 “Há muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos o lugar e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também.” (João, XIV, 2 e 3)

 A casa do Pai é o céu infinito; as moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé das quais a nossa pobre Terra não é mais que um mesquinho e obscuro planeta. É para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar um lugar, conforme os nossos méritos.

 Orígenes comenta essas palavras em termos positivos:

 “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos actuais e se tiverem revestido de outros novos.”

/…
(ii) Ver a nota complementar nº 5. ( link para aceder à nota)
(iii) Ver Bellemare, "Espírita e Cristão", págs. 351 e seguintes.
(iv) Ver nota complementar n° 5. ( link para aceder...)
(v) Essa parábola adquire maior relevo pelo facto de ser a água, para os judeus cabalista, a representação da matéria, o elemento primitivo, o que chamaríamos hoje o éter cósmico.
(vi) Ver Pezzani, "A pluralidade das existências", páginas 187 e 190.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – A Doutrina Secreta, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


Sentido oculto dos Evangelhos ~ 

 Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral e, aos Evangelhos em particular, um sentido oculto e alegórico. Alguns pensadores e filósofos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus, vendo nele, nas suas palavras, nos factos de sua vida, uma ideia filosófica, uma abstracção a que foi dado um corpo, para satisfazer a tradição que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias. 

 Na sua opinião, não passaria a história de Jesus de um drama poético, representando o nascimento, a morte e a ressurreição da ideia libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma série de figuras imaginadas para tornar perceptível às massas o lado prático e social do Cristianismo, a associação dos tipos divino e humano num modelo de perfeição, oferecido à admiração dos homens. 

 Aceite semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser considerados fábulas, invenções. O poderoso movimento do Cristianismo teria tido como ponto de partida uma impostura. Há nisso uma evidente exageração. Se a vida de Jesus não é mais que uma ficção, como pôde ser acolhida pelos seus contemporâneos, a princípio e, depois por uma longa série de gerações? 

 Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do Cristianismo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais concepções. Com excepção de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a incapacidade deles é evidente. A personalidade eminente de Jesus destaca-se, vigorosamente, do fundo da mediocridade dos seus discípulos. A menor comparação faz sobressair a impossibilidade de semelhante hipótese. 

 Não foi difícil, nos Evangelhos, distinguir as adições dos cristão-judeus, as quais denunciam claramente a sua origem e, formam contraste flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus. (ii) Daí resulta um facto evidente, o de que autores imbuídos a, esse respeito, de ideias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar uma personalidade, uma doutrina, uma vida, uma morte como as de Jesus. 

 Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reinavam o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor e da fraternidade só podia emanar de uma inteligência sobre-humana. 

 Se as Escrituras fossem, no seu conjunto, não mais que um amontoado de alegorias, uma obra de imaginação, a doutrina de Jesus não teria podido manter-se através dos séculos, no meio das correntes opostas que agitaram a sociedade cristã. A construção sem alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furacão dos tempos. Entretanto, ela ficou de pé e domina os séculos, a despeito das alterações sofridas, a despeito de tudo o que os homens fizeram para desfigurá-la, para submergi-la nas vagas de uma interpretação errónea. 

 A crença num mito não teria sido suficiente para inspirar aos primeiros cristãos o espírito de sacrifício, o heroísmo em face da morte; não lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religião que dura há vinte séculos. Só a verdade pode desafiar a acção do tempo e conservar a sua força, a sua moral, a sua grandeza, não obstante os esforços de sapa que procuram arruiná-la. Jesus é, positivamente, a pedra angular do Cristianismo, a alma da nova revelação. Ele constitui toda a sua originalidade. 

 Além disso, não faltam testemunhos históricos da existência de Jesus, posto que em reduzido número. 

 Suetónio, na história dos primeiros Césares, fala do suplício de “Christus”. Tácito e ele mencionam a existência da seita cristã entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por Tito

 O Talmude (i) fala da morte de Jesus na cruz e todos os rabinos israelitas reconhecem o alto valor desse testemunho. (iii) 

 Em caso de necessidade, o próprio Evangelho, só por si, bastaria para fornecer a prova moral da existência e da elevada missão do Cristo. Se numerosos factos apócrifos nele foram mais tarde introduzidos, se as superstições judaicas ali se encontram sob a forma de narrativas fantasistas e teorias obsoletas, duas coisas nele subsistem, que não poderiam ser inventadas e apresentam um carácter de autenticidade que se impõe: – o drama sublime do Calvário e a doce e profunda doutrina de Jesus. 

 Essa doutrina era simples e clara nos seus princípios essenciais; dirigia-se à multidão, sobretudo aos deserdados e aos humildes. Tudo nela era feito para mover os corações, para arrebatar as almas até ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências. Todavia, ela manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala muitas vezes por parábolas. O seu pensamento, de ordinário tão luminoso, mergulha por vezes na meia obscuridade. Não se percebem, então, mais que os vagos contornos de uma grande ideia dissimulada sob o símbolo. 

 É o que ele próprio explica por estas palavras, quando, citando Isaías (cap. VI, 9), acrescenta: 

 “Eu lhes falo por parábolas, porque a vós vos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é concedido.” (Mateus, XIII, 10 e 11.) 

 É evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo primitivo: a destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessíveis a todos e, a outra oculta, reservada aos discípulos e iniciados. É o que, de resto, existia em todas as filosofias e religiões da antiguidade. (iv) 

 A prova da existência desse ensino secreto encontra-se nas palavras já citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da parábola do semeador, que se encontra nos três evangelhos sinópticos, os discípulos perguntam a Jesus o sentido dessa parábola e ele lhes responde: 

 “A vós é concedido saber o mistério do reino de Deus; mas, aos que são de fora, tudo se lhes propõe em parábolas; 

 “Para que, vendo, vejam e não vejam e ouvindo, ouçam e não entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas, VIII, 10.). 

 São Paulo (i) confirma-o na sua primeira Epístola aos Coríntios, capítulo III, quando distingue a linguagem a usar com homens carnais ou com homens espirituais, isto é, com profanos ou com iniciados. 

 A iniciação era indubitavelmente gradual. Os que a recebiam eram ungidos e, depois de haverem recebido a unção, entravam na comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis estas palavras de João

 “Vós tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. Eu não vos escrevi como se ignorásseis a verdade, mas como a quem a conhece.” (1ª Epístola de João, cap. II, 20, 21 e 27.). (v) 

 Ao tempo da sua controvérsia com CelsoOrígenes defendeu energicamente o Cristianismo. Na sua vigorosa apologia, fala muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso arguído de possuir um cunho misterioso, Orígenes refuta essas críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado, no seu sentido geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é que o mundo inteiro (ou pouco falta) está mais familiarizado com essa doutrina que com as opiniões predilectas dos filósofos. 

 Esse duplo método de ensino – prossegue ele, em síntese – é, ao demais, adoptado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos mistérios, por toda a parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos geralmente admitidos? 

 O fundador do Cristianismo não separava a ideia religiosa da sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa perfeita sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra. Mas ele devia ir ao encontro dos interesses estabelecidos e suscitar em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um novo motivo para ocultar no mito, no milagre, na parábola, o que na sua doutrina ia ferir as ideias dominantes e ameaçar as instituições políticas ou religiosas. 

 As obscuridades do Evangelho são, pois, calculadas, intencionais. As verdades superiores nele se ocultam sob véus simbólicos. Aí se ensina ao homem o que lhe é necessário para se conduzir moralmente na prática da vida; mas o sentido profundo, o sentido filosófico da doutrina, esse é reservado à minoria. 

 Nisso consistia a “comunhão dos santos”, a comunhão dos pensamentos elevados, das altas e puras aspirações. Essa comunhão pouco durou. As paixões terrenas, as ambições, o egoísmo, bem cedo a destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os bispos, de humildes adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a princípio, se tornaram poderosos e autoritários. Constituiu-se a teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a luz debaixo do alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento profundo desapareceu. Só ficaram os símbolos materiais. Essa obscuridade tornava mais fácil governar as multidões. Preferiram deixar as massas mergulhadas na ignorância a elevá-las às eminências intelectuais. Os mistérios cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja. Foram mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores sinceros, que se esforçavam por adquirir novamente as verdades perdidas. Fez-se noite cada vez mais espessa sobre o mundo, depois da dissolução do Império Romano. A crença em Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em vez da religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi a religião do terror. 

 A invasão dos bárbaros havia poderosamente contribuído para fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar a sociedade ao estado de infância, porque os bárbaros invasores, do ponto de vista da razão, não passavam de crianças. Do seio das vastas estepes e das extensas florestas, o mundo bárbaro se arremessava sobre a Civilização. Todas essas multidões, ignorantes e grosseiras, que o Cristianismo aliciou, produziram no mundo pagão em decadência e no novo meio, em que penetravam, uma depressão intelectual. 

 O Cristianismo conseguiu dominá-las, submetê-las, mas em seu próprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou material. Para impressionar a imaginação das multidões, voltou-se às práticas idólatras, próprias das primeiras épocas da Humanidade. A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela esperança, estranhos dogmas foram combinados. Já não se tratou de realizar no mundo o reino de Deus e de sua justiça, que fora o ideal dos primeiros cristãos. Depois, a profecia do fim do mundo e do juízo final, tomada à letra, as preocupações da salvação individual, exploradas pelos padres, mil causas em suma, desviaram o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensamento de Jesus numa torrente de superstições. 

 Ao lado, todavia, desses males, é justo recordar os serviços prestados pela Igreja à causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia e sólida organização, sem o papado, que opôs o poder da ideia, posto que obscurecida e deturpada, ao poderio do gládio, tem-se o direito de perguntar no que se teria tornado a vida moral, a consciência da Humanidade. No meio desses séculos de violência e trevas, a fé cristã animou de novo ardor os povos bárbaros, ardor que os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, à fundação da Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No silêncio e na obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A vida moral, graças às instituições cristãs, não se extinguiu, a despeito dos costumes brutais da época. Aí estão serviços que é preciso agradecer à Igreja, não obstante os meios de que ela se utilizou para a si mesma assegurar o domínio das almas. 

 Em resumo, a doutrina do grande crucificado, nas suas formas populares, queria a obtenção da vida eterna mediante o sacrifício do presente. Religião de salvação, de elevação da alma pela subjugação da matéria, o Cristianismo constituía uma reacção necessária contra o politeísmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de luz, mas não passando de foco de sensualismo e corrupção. O Cristianismo tornava-se um estágio indispensável na marcha da Humanidade, cujo destino é elevar-se incessantemente de crença em crença, de concepção em concepção, a sínteses sempre e cada vez mais amplas e fecundas. 

 O Cristianismo, com os seus doze séculos de dores e trevas, não foi uma era de felicidade para a raça humana; mas o fim da vida terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e a via dolorosa conduz com muito mais segurança à perfeição, que a dos prazeres. 

 O Cristianismo representa, pois, uma fase da história da Humanidade, a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a Humanidade, não teria sido capaz de realizar as obras sociais que asseguram o seu futuro se não se tivesse impregnado do pensamento e da moral evangélicos. 

 A Igreja, entretanto, delinquiu, trabalhando por prolongar indefinidamente o estado de ignorância da sociedade. Depois de haver nutrido e amparado a criança, tem querido mantê-la em estado de submissão e servilismo intelectual. Não libertou a consciência senão para melhor a oprimir. 

 A Igreja de Roma não soube conservar o farol divino de que era portadora e, por um castigo do céu, ou antes, por uma justa retroacção das coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se nela própria. Não cessou de opor obstáculos ao desenvolvimento das ciências e da filosofia, ao ponto de proscrever, do alto da cadeira de São Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e a civilização moderna” (artigo 80 do Sílabus). 

 Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um certo momento da História, que se operou todo o movimento, toda a evolução do espírito humano. Foram necessários séculos de esforços para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair da Idade Média. Fizeram-se necessárias a Renascença das letras, a Reforma religiosa do século XVI, a filosofia, todas as conquistas da Ciência, para preparar o terreno destinado à nova revelação, a essas vozes de além-túmulo que vêm aos milhares e em todas as regiões da Terra, atrair os homens aos puros ensinamentos do Cristo, restabelecer a sua doutrina, tornar compreensíveis, a todos, as verdades superiores amortalhadas na sombra das idades. 

/… 
(ii) Ver notas complementares nºs 2 e 3. (← links para aceder às notas) 
(iii) Ver "Os deicidas", por Cahen, membro do Consistório israelita. 
(iv) Ver a minha obra "Depois da Morte", págs. 9 a 100. 
(v) Ver também nota complementar nº 7. (← link para aceder à nota) 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Sentido oculto dos Evangelhos, 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel