Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 25 de fevereiro de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


3. O TESTAMENTO
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   Ante a efervescência dos convidados do Solar di Bicci e a leitura do testamento, o Espírito atribulado do Senhor duque, que se encontrava entorpecido no vágado demorado, de que fora vítima
desde a hora em que Girólamo cometera os crimes sórdidos, despertou e, dominado por inenarrável fúria, acompanhou a leitura e os conchavos maléficos realizados no grande refeitório do solar, explodindo em cólera de louco. Identificando no sobrinho o autor de tantas desgraças, atirou-se sobre ele, punhos cerrados e dentes rilhados, sem, no entanto, conseguir atingi-lo.

   À semelhança de um animal ferido, o Espírito do duque ululava, entre sombras espessas, de cujo bojo se destacavam o vulto odiento do sobrinho e o das personagens presentes, indiferentes ao seu próprio estado. Compreendeu, ante a leitura ouvida, que se encontrava definitivamente morto e que o ser sofria e se esganava em superlativa aflição e desconforto era ele mesmo, sim, em espírito vivo e indestrutível…

   Embora a dor que o dilacerava, recordou-se dos filhos trucidados, de Lúcia, da esposa, enquanto as lágrimas, como aço derretido, lhe escorriam ardentes, lenhando-o externa e interiormente.

   Sem o conforto de uma fé religiosa legítima, acostumado apenas ao culto externo e vazio da tradição, foi dominado pelo furor do ódio, deixando à margem toda a ternura e misericórdia de que ouvira falar, e de que se fizera portador aquele Nazareno Crucificado, em nome do Pai, e que dera a Sua pelas vidas dos homens de todos os tempos, ensinando mansidão e amor, até ao sacrifício supremo.

   Em esgares, transformando-se lentamente, porque vencido pela própria desdita, o antigo Senhor di Bicci di M., desde aquele momento, se converteu em obsessor de Girólamo, seguindo-o implacável, tentando uma comunhão psíquica que hoje ou depois se faria, irreversivelmente, pois o ódio – o amor desvairado – vibra, poderoso, e encontra sintonia naquele a quem se dirige por um processo natural de harmonia vibratória, em considerando as baixas faixas mentais e morais em que se demoram os homens. Poderoso, o ódio atrai à sua força imantadora aqueles que se comprazem na invigilância e na irresponsabilidade, pois que somente a abnegação, a humildade, o amor, a caridade – as virtudes clássicas! – são antídoto específico capaz de dissolvê-lo.

   A sombra de que se supunha seguido, conforme relatara Girólamo, eram os primeiros fios invisíveis do remorso que o atariam à sua vítima central, por cujos liames se apertariam as teias da trama da vingança cega e louca do desafecto nascido pela traição e pelo homicídio múltiplo. Utilizando-se do remorso que teceria as malhas de imantação entre um e outro, Dom Giovanni penetraria no recesso da consciência anestesiada do jovem e exerceria o seu predomínio em curso longo de obsessão vingadora, a se demorar pela esteira imensa do tempo. Não agora, porém, começariam os primeiros tormentos do criminoso. A Misericórdia Divina concede a bênção do tempo, em mil oportunidades, para o celerado reabilitar-se, mediante o arrependimento honesto em termos de acção pelo trabalho e pelo socorro ao próximo, através da construção do bem, dentro e fora do ergástulo em que se demora na carne. Todavia, soezes e frívolos, os facínoras se esquecem da justiça, e, quando esta não os alcança de imediato, supõem-se livres, prosseguindo na desenfreada cupidez, alucinação e prepotência, adicionando aos antigos novos débitos, acumpliciados com as mais vis manifestações do instinto, não totalmente domado ainda, e que lhes são portas da loucura inominável, em cujo corredor se atiram, sem possibilidade de próxima salvação. Era o que ocorria com Girólamo.

   Limitado pelas comportas carnais, podia ver as cenas de primitivismo a que se atirava o pai adoptivo, tentando feri-lo, destruí-lo, exacerbado no próprio desespero. Deambulando pelo imenso solar, agora sem visitas, com os poucos servidores já recolhidos, repassava, o moço, as cenas ali vividas e se sentia o senhor absoluto da herdade, antegozando a hora em que, triunfante, com os documentos de posse, viesse residir no palácio, demoradamente ambicionado. A realidade daquela hora parecia tirar-lhe a razão: sorria em alegria quase louca e bebia eufórico, seguido pela sombra do perseguidor.

   A Senhora Ângela, em espírito, que também estivera presente à leitura do testamento, permanecera orando, tentando penetrar os crepes pesados que envolviam o esposo, de modo a acenar-lhe com as bênçãos do perdão ao infractor, que não jornadearia impune para sempre, libertando-o dos miasmas do ódio, em que se consumia lentamente. Fechado a qualquer comunicação exterior, o lampejo da lembrança dos seres queridos foi logo abafado pelo fervor da paixão odienta e nefasta que o venceu terrivelmente. Assim, a nobre Entidade, que socorria, a seu turno, os filhinhos recém-chegados e a antiga serva, abandonou o recinto, buscando a esfera da paz em que amparava os amores, confiando no Pai de Misericórdia e na Mãe Santíssima, a Eles entregando o esposo perdido nas trevas da ignorância e da vingança…
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (fragmento 3 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


II
Cenas do Espaço.
Visões Reais da Guerra e da Epopeia

|Janeiro de 1915|
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   Acima de nossas linhas, inúmeras assembleias se realizam e aqueles que as compõem são nomes ilustres que, reunidos, resumem toda a glória dos séculos e toda história da França. Ali está Henrique IV junto a Napoleão; Vercingétorix encontra-se com os capitães de Carlos VII, os generais de Luís XIV e os da Revolução: todos os heróis de nossas lutas do passado e os libertadores da pátria.

   Ali também vemos vários chefes ingleses, pois toda a inimizade se extinguiu, existindo em todos esses espíritos um só pensamento e um sentimento único.

   Todos têm, por Joana, igual respeito e ninguém lhe toma a dianteira, discutindo-se gravemente os meios de ataque e os procedimentos necessários para essa guerra de trincheiras.

   Sobre essa assembleia paira o pensamento de Deus e quando o nobre espírito que a preside abre a sessão, invocando o nome do Pai, todos se inclinam respeitosamente.

   Se, para muitos, a França se tornou descrente, ímpia e entregue a todas as correntes do materialismo e da sensualidade, pelo menos no meio desse supremo conselho, onde se acham reunidos seus mentores invisíveis, impera uma fé ardente. Talvez seja por essa razão que diminuem, até certo ponto, as provações e os horríveis castigos que ela mereceu.

   As resoluções que nessa assembleia sejam tomadas serão transmitidas, por intuição e inspiração, aos generais que tenham a missão de executá-las. Para esse fim, cada um dos espíritos presentes a esses conselhos escolherá, dentre nossos comandantes, aqueles cuja natureza psíquica melhor se harmonize com a sua própria e, por meio de uma vontade persistente, os inspirará no sentido do que ficou resolvido.

   Sobre os soldados a influência dos espíritos se exercerá de modo diverso: eles terão por mira, principalmente, acrescentar ao ardor e à veemência, que são qualidades naturais da raça, a perseverança e a tenacidade na luta, tão necessárias no momento actual e que, às vezes, nos faltaram.

   Por tudo isso se demonstra que as almas dos mortos não são entidades vagas, indefinidas, como alguns acreditam, pois, atingindo as altas camadas da hierarquia espiritual, elas se convertem em poderes notáveis, em centros de actividades e de vida capazes de exercer sua acção sobre a humanidade terrestre.

   Pela sugestão magnética, podem influir sobre aquele que escolheram, fazendo nele germinar a ideia matriz e incitá-lo ao acto decisivo que vai coroar sua obra.

   É dessa forma que os invisíveis se envolvem nos actos dos vivos, para a concretização do bem e o cumprimento da justiça eterna.
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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, II – Cenas do Espaço, Visões Reais da Guerra e da Epopeia, fragmento 2 de 3.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

~uma espécie de frenesim para as da vida material~

   Só as religiões estacionárias podem temer as descobertas da ciência; estas descobertas só são funestas para as que se deixam distanciar das ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo das suas crenças; têm em geral uma ideia tão mesquinha da Divindade, que não percebem que assimilar as leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus nas suas obras; na sua cegueira, preferem homenagear o Espírito do mal. Uma religião que não estivesse em nenhum ponto em contradição com as leis da natureza, nada teria a recear do progresso e seria invulnerável.

   O Génesis compõe-se de duas partes: a história da formação do mundo material e a da humanidade, considerada no seu duplo princípio corporal e espiritual. A ciência limitou-se à procura das leis que regem a matéria; mesmo no homem, só estudou o invólucro carnal. A este respeito conseguiu perceber, com uma precisão incontestável, as principais partes do mecanismo do Universo e do organismo humano. Neste ponto capital, pode então completar a Génese de Moisés e dela retirar as partes defeituosas.

   Mas a história do homem, considerado como ser espiritual, liga-se a uma ordem especial de ideias que não é do domínio da ciência propriamente dita e que esta, por este motivo, não tomou como tema das suas investigações. A filosofia, que tem mais particularmente nas suas atribuições este tipo de estudo, sobre este ponto só formulou teorias contraditórias, desde a espiritualidade pura até à negação do princípio espiritual e até mesmo de Deus, sem outras bases para além das ideias pessoais dos seus autores; deixou portanto a questão indefinida, à falta de um controlo suficiente.

   Esta questão, no entanto, é para o homem a mais importante, pois trata-se do problema do seu passado e do seu futuro; a do mundo material só lhe toca indirectamente. O que lhe interessa antes de mais nada é saber de onde vem, para onde vai; se já viveu e se voltará a viver e qual a sorte que lhe está reservada.

   Sobre todas estas questões, a ciência fica muda. A filosofia só dá opiniões que vão em sentido diametralmente oposto, mas pelo menos permite discutir, o que faz com que muita gente se coloque do seu lado, dando-lhe preferência à religião, que não discute.

   Todas as religiões estão de acordo quanto ao princípio da existência da alma, sem no entanto o demonstrarem; mas não estão de acordo nem sobre a sua origem, nem sobre o seu passado, nem sobre o futuro, nem principalmente sobre o essencial, sobre as condições de que depende a sua sorte futura. Na sua maior parte, fazem do seu futuro um quadro imposto à fé dos seus adeptos, que só pode ser aceite por uma fé cega mas que não pode resistir a um exame sério. Estando o destino que dão à alma ligado, nos seus dogmas, às ideias que se tinham sobre o mundo material e ao mecanismo do Universo nos tempos primitivos, é inconciliável com o estado dos conhecimentos actuais. Só podendo perder com a observação e a discussão, acham mais simples banir uma e a outra.

   Destas divergências respeitantes ao futuro do homem nasceram a dúvida e a incredulidade. No entanto, a incredulidade deixa um vazio penoso; o homem encara com ansiedade o desconhecido para onde, mais tarde ou mais cedo, deve fatalmente ir; a ideia do nada gela-o; a sua consciência diz-lhe que, para lá do presente, há para ele qualquer coisa: mas o quê? A sua razão desenvolvida já não lhe permite aceitar as histórias com que lhe embalaram a infância, tomar a alegoria pela realidade. Qual é o sentido desta alegoria? A ciência rasgou uma ponta do véu, mas não lhe revelou o que lhe interessa mais saber. Questiona em vão, nada lhe responde de forma peremptória e apropriada para acalmar as suas apreensões; em todo o lado, encontra a afirmação chocando com a negação, sem provas mais positivas de um lado e de outro; daí a incerteza e a incerteza sobre coisas da vida faz com que o homem se atire com uma espécie de frenesim para as da vida material.

   É este o efeito inevitável das épocas de transição: o edifício do passado desmorona-se e o do futuro não está ainda construído. O homem é como um adolescente que já não tem a fé ingénua dos seus primeiros tempos e não possui ainda os conhecimentos da idade madura; só tem vagas aspirações que não sabe definir.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE números de 10 a 14, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem:  Amaldiçoados com figuras do submundo, Juízo Final, afresco, detalhe da parede do altar da Capela Sistina, Vaticano, Michelangelo)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


|o arquidruida|

   A França
enviou,
muitas vezes,
ilustres
representantes
a essas
assembleias.

Ali compa-
receram,
sucessi-
vamente,
os Srs.
Henri Martin,
Luzel,
H. de la Villemarqué,

de Blois, de Boisrouvray, Rio de Francheville e, mais recentemente, Le Braz, Le Goffic, etc. Em todos os lugares, as delegações francesas foram recebidas com grande honra e hospedadas em castelos ou em ricas casas burguesas. Quando elas desfilavam nas ruas das antigas cidades galesas ou na entrada das Assembleias, precedidas por seus tocadores de gaita de fole, tocando a ária nacional galesa “Marcha dos homens de Harlech”, as multidões as ovacionavam. Portanto, que contraste com as delegações escocesas, compostas de pessoas de alta estatura, com suas possantes gaitas de fole, e como, perto delas, nossas gaitas de fole tinham fraca aparência!

   A propósito dessa “Marcha dos homens de Harlech”, o Sr. Le Goffic lembra um facto histórico muito comovente. Na batalha de Saint-Cast, quando a armada inglesa desembarcava nas costas da Bretanha, uma companhia de fuzileiros galeses avançou ao encontro dos homens do Duque de Aiguillon, que defendiam o solo nacional. Das fileiras desses homens se elevou um canto no qual os galeses reconheceram o hino céltico e, de imediato, pararam hesitantes, admirados. O oficial inglês que os comandava interpelou-os rudemente, dizendo:

   – Tendes medo?

   – Não – responderam eles –, mas, pela ária que essa gente canta, reconhecemos que são homens de nossa raça. Nós também somos bretões.

   A música celta, de uma melancolia penetrante, é rica e variada; seus hinos, suas melodias, seus cantos populares são muito antigos e o Sr. Le Goffic foi levado a crer que os grandes compositores alemães se inspiraram nessas músicas. É certo que Haendel morou durante muito tempo na Inglaterra e conheceu as melodias populares galesas e escocesas. Certos trechos de Haydn e de Mozart se assemelham, de muito perto, às árias antigas que datam de dois ou três séculos passados.

   Essas Assembléias, pelo seu cerimonial, podiam parecer antiquadas e suscitar zombarias de certos críticos ignorantes, mas eis o que escreveu a esse respeito uma testemunha ocular:

“Aqueles que viram, no círculo de pedras sagradas, levantar-se o arquidruida, um velho embranquecido e alto, com peitoral de ouro maciço, com a cabeça cingida de folhas de carvalho bronzeado, e que ouviram sua oração para a multidão, inclinada e descoberta, a oração solene do Gorsedd; aqueles que prestaram atenção especialmente à emoção religiosa dessa gente e ao enorme suspiro que a sacudia, quando o arauto desenrolava a lista fúnebre dos bardos mortos, e depois ao entusiasmo que se erguia e tudo iluminava – quando esse mesmo arauto entoava a ária nacional galesa “A terra dos antepassados”, repetida em uníssono por um formidável coro de vinte mil vozes –, esses não mais sorriram do espectáculo e compreenderam a magia poderosa, a fascinação misteriosa que ele continua a exercer sobre a alma impressionável dos galeses.”
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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico. 5º fragmento.
(imagem: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – II
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

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   Quœrens – Que situação extraordinária para o vosso Espírito analista,
ó Lúmen! E qual o meio que vos permitiu chegar a conhecer a realidade?

   Lúmen – Os anciães da montanha tinham prosseguido a conversação, enquanto as reflexões precedentes se sucediam em meu espírito. Subitamente, ouvi o mais idoso, espírito venerável cuja cabeça nestoriana se impunha à admiração e ao respeito, exclamar, em tom tristemente ressonante: “De joelhos, meus irmãos, imploremos indulgência ao Deus universal. Essa terra, essa nação continua a ensopar-se em sangue: uma nova cabeça, a de um rei, acaba de tombar!”

   Seus companheiros pareceram compreendê-lo, porque ajoelharam sobre a montanha e prosternaram os alvos rostos contra o chão.

   Para mim, que ainda não estava habituado a distinguir figuras humanas no meio das ruas e praças públicas, e que não havia acompanhado a observação particular dos anciães, permaneci de pé e insistindo no exame do quadro distante.

   – Estrangeiro – disse o velho –, condenais a acção unânime de vossos irmãos, pois que não vos unistes à prece que fizeram?

   – Senador – respondi –, não posso condenar, nem aplaudir, pois não sei do que se trata. Chegado a esta montanha há pouco, desconheço a causa da vossa religiosa imprecação.

   Então, aproximei-me do velho e, enquanto seus companheiros se ergueram e entretinham em mútua conversação, eu lhe pedi que me narrasse as suas observações.

   Ensinou-me que, dada a intuição de que são dotados os Espíritos do grau dos habitantes desse mundo, e também pela faculdade íntima de percepção que lhes coube em partilha, possuem uma espécie de relação magnética com as estrelas vizinhas. Tais estrelas são em número de doze ou quinze, as mais próximas; fora desse perímetro a percepção resulta confusa. “Nosso Sol é uma dessas estrelas contíguas.” Conhecem, pois, vagamente, mas com exactidão, o estado das Humanidades que habitam os planetas dependentes desse Sol, e seu grau relativo de elevação intelectual ou moral.

   Além disso, quando uma grande perturbação atravessa uma dessas Humanidades, seja na ordem física, seja na ordem moral, eles sofrem uma espécie de comoção recôndita, à semelhança do que acontece com uma corda, vibrando, ao fazer entrar em vibração outra corda colocada à distância.

   Desde há um ano (um ano deste mundo é equivalente a dez dos nossos) eles se haviam sentido atraídos por uma emoção particular para o nosso planeta terrestre e os observadores tinham seguido com interesse e inquietude a marcha desse mundo. Haviam assistido ao fim de um reino, à aurora de uma liberdade resplendente, à conquista dos direitos do homem, à afirmação dos grandes princípios da dignidade humana. Depois, haviam visto a causa sagrada da Liberdade posta em perigo por aqueles que deveriam constituir-se seus primeiros defensores, e a força brutal substituir o raciocínio e a persuasão. Compreendi que se tratava da revolução de 1789 e da queda do velho mundo político diante do novo. Desde algum tempo, principalmente, havia, com intensa mágoa, acompanhado os frutos do terror e a tirania dos bebedores de sangue. Eles temiam pelos dias da raça humana e duvidavam, daí para o futuro, do progresso dessa Humanidade emancipada, que alienava – ela própria – o tesouro que acabara de conquistar.

   Guardei-me bem de declarar ao Senador ter chegado da Terra e nela vivido até contar setenta e dois aniversários de existência. Ignoro se ele teve alguma intuição a respeito, mas eu próprio estava tão estranhamente surpreendido de tal visão, que meu espírito se identificara com isso e não mais pensava na minha pessoa.

   Minha vista afinal se adaptara ao espectáculo observado, e destaquei, no meio da praça da Concórdia, um cadafalso rodeado de formidável aparelhamento de guerra, de tambores, canhões, e de uma densa multidão pintalgada, empunhando chuços.

   Uma charrete, guiada por certo homem vermelho, conduzia os despojos mortais de Luis XVI, dirigindo-se para os lados do arrabalde de Saint-Honoré.

   Um populacho ébrio parecia ameaçar o céu. Cavaleiros se seguiam, sabre em punho. Viam-se, rumo dos Campos Elíseos, fossas, nas quais caíam os curiosos.

   Mas, essa agitação, concentrada no local tumultuoso, não se estendia à cidade – que parecia morta e deserta. O terror a mergulhara em letargia.

   Eu não assistira ao acontecimento de 1793, pois esse fora o ano do meu nascimento, e experimentava indizível interesse em ser testemunha de tal cena, da qual os historiadores me haviam informado. Muitas vezes eu discutira o voto da Convenção Nacional, mas confesso que a execução de homens da estirpe de Lavoisier, o criador da Química; Bailly, historiador da Astronomia; André Chenier, o dulcíssimo poeta; ou a condenação de Condorcet, para o qual não tinham a escusa da razão de Estado, haviam-me causado mais indignação do que o suplício de Luís XVI. Ser testemunha dos acontecimentos dessa época transcorrida despertava em mim interesse sem igual. Todavia, por imenso que fosse tal interesse, podereis calcular que estivesse dominado por um sentimento mais poderoso ainda: achar-me no ano de 1864, e estar assistindo, presentemente, a um acontecimento desenrolado durante a Revolução Francesa.

   Quœrens – Parece-me, com efeito, que esse sentimento de impossibilidade devia tornar singularmente perturbada a vossa contemplação, pois, em última análise, ali estava uma visão que sentimos radicalmente ilusória e da qual não podemos admitir a realidade, mesmo assistindo a ela.

   Lúmen – Sim, meu amigo, impossível. Logo, compreendereis em que estado de ânimo me encontrava, enxergando, com os meus olhos, um tal paradoxo realizado? Certa expressão popular diz que, por vezes, não se pode crer nos próprios olhos. Era o meu caso; impossível negar; impossível admitir.

   Quœrens – Não seria uma concepção do vosso Espírito, um produto da vossa imaginação, uma exumação da vossa lembrança? Adquiristes a certeza de que se tratava de uma realidade, e não de um reflexo singular da memória?

   Lúmen – Foi o primeiro raciocínio que me veio ao espírito, mas era de todo tão evidente estar sob meus olhos a Paris de 1793 e o acontecimento de 21 de Janeiro, que não pude duvidar por muito tempo. E, por outra parte, tal raciocínio estava de antemão derribado pela circunstância de me haverem os velhos da montanha precedido na observação dos factos – que eles viam, analisavam e se comunicavam mutuamente a acção do momento, sem conhecer de qualquer modo a História da Terra e sem saber que eu conhecesse essa História. E, depois, tínhamos sob o olhar um facto presente, e não um acontecimento do passado.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – II, fragmento global 5º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

~influência providencial~


XIV

A EDIFICAÇÃO CRISTÃ

A missão de Paulo

No trabalho de redacção dos evangelhos, que constituem,
sem dúvida, o portentoso alicerce do Cristianismo, verificavam-se,
nessa época,
algumas dificuldades para que se lhes desse o preciso carácter universalista.


Todos os apóstolos do Mestre haviam saído do teatro humilde de seus gloriosos ensinamentos; mas, se esses pescadores valorosos eram elevados Espíritos em missão, precisamos considerar que eles estavam muito longe da situação de espiritualidade do Mestre, sofrendo as influências do meio a que foram conduzidos.

Tão logo se verificou o regresso do Cordeiro às regiões da luz, a comunidade cristã, de modo geral, começou a sofrer a influência do Judaísmo, e quase todos os núcleos organizados, da doutrina, pretenderam guardar feição aristocrática, em face das novas igrejas e associações que se fundavam nos diversos pontos do mundo.

É então que Jesus resolve chamar o espírito luminoso e enérgico de Paulo de Tarso ao exercício do seu ministério.

Essa deliberação foi um acontecimento dos mais significativos na história do Cristianismo.

As acções e as epístolas de Paulo tornaram-se poderoso elemento de universalização da nova doutrina.

De cidade em cidade, de igreja em igreja, o convertido de Damasco, com o seu enorme prestígio, fala do Mestre, inflamando os corações.

A princípio, estabelece-se entre ele e os demais apóstolos uma penosa situação de incompreensibilidade, mas sua influência providencial teve por fim evitar uma aristocracia injustificável dentro da comunidade cristã, nos seus tempos inesquecíveis de simplicidade e pureza.



ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, XIV – A EDIFICAÇÃO CRISTÃ, A missão de Paulo. Texto mediúnico recebido em 1938 por FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: O apóstolo Paulo em Meditação, por Rembrandt 1630)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O Espiritismo na Arte~


Parte I

(O Espírito e sua parcela do poder criador.
Arquitectura na Terra e no espaço.
A catedral terrestre e a catedral fluídica)

   Lembramos aqui que todo espírito emanado de Deus não possui somente uma centelha da inteligência divina; ele desfruta, ainda, de uma parcela do poder criador, poder que ele é chamado a manifestar mais e mais no decorrer da sua evolução, tanto nas encarnações planetárias quanto na vida do espaço.



   Voltemos à arquitectura, que o Esteta tomou como objecto das suas primeiras lições. Aqui na Terra já é arte sublime à qual se prendem todas as outras artes e que muitas vezes lhes serve de protecção.

   Assim como na Terra, a música representa a arte viva, a harmonia móvel e vibrante, a arquitectura representa a arte imóvel e passiva em suas formas imponentes e rígidas. Porém, enquanto que no âmago dos espaços o espírito modela, à sua vontade, a matéria fluídica e lhe dá as aparências, as cores, os contornos que lhe agradam, em nosso planeta a matéria opõe mais resistência à vontade do homem. O bloco resiste ao cinzel do escultor como à ferramenta do pedreiro. Às vezes, são necessários longos e pacientes esforços, um trabalho persistente para dar ao mármore, ao granito, a expressão da beleza.

   As lições de O Esteta fazem ressaltar a diferença que existe entre os procedimentos em uso na Terra e os do espaço para realizar criações artísticas. Enquanto que na Terra a catedral, tomada como modelo da arquitectura, é a obra paciente de uma colectividade laboriosa, desde o humilde talhador de pedra até ao grande artista que traçou o plano do conjunto, ela é, no espaço, a obra particular de um mestre que, instantaneamente e a seu bel-prazer, pode edificá-la ou destruí-la, auxiliado somente por um grupo de alunos que procuram assimilar e imitar sua ideia criadora. Aqui na Terra, o monumento é a obra da multidão humana, o trabalho dos séculos. Gerações de artistas e de operários trabalharam para elevar colunas, telhados, torres, fundiram vitrais, pintaram imagens, esculpiram estátuas. Assim foram se constituindo, lentamente, a pirâmide, o palácio, a catedral, Eis por que, em sua majestosa unidade, simbolizam o pensamento de um povo, o génio de uma raça, a alma de uma religião.

   Foi a fé, foi o entusiasmo, foi um espiritualismo ardente que erigiu, em direcção ao céu, essas “bíblias” de pedra. E, nessas obras colossais, o invisível tem o seu papel; ele pensa com o arquitecto, medita com o artista, trabalha com o artesão e o pedreiro. A todos ele inspira o pensamento de Deus e do Além, na medida em que eles podem compreendê-lo e interpretá-lo.

   Assim são edificados esses “livros” imponentes que são as catedrais e que, durante séculos, foram suficientes para guiar, para instruir, para consolar o espírito humano.

   A catedral terrestre serve de moldura a todas as artes. A música faz as suas imensas naves vibrarem, a pintura decora as suas paredes, a escultura a povoa de estátuas. No entanto, em seu conjunto, ela conserva a imobilidade fria e a opacidade do granito.

   O papel fundamental da arte é exprimir a vida em toda a sua potência, em sua graça e em sua beleza. Ora, a vida é movimento. E nisso exactamente reside a principal dificuldade da arte humana, que apenas pela música pode reproduzir o movimento. O escultor, pela postura que dá à sua estátua, reproduz o movimento que o seu pensamento concebe e, na imobilidade, cria a acção. A pintura dá a mesma impressão por meio do gesto fixado na tela e pela harmonia das cores, o jogo das perspectivas, a simulação das profundidades e dos horizontes fugidios. Há mais força na estatuária, e mais artifício em um quadro; porém, os dois podem exprimir a beleza ideal sob a forma de obras-primas que nos são conhecidas. No entanto, apesar da intenção genial que preside a sua execução, elas nos dão apenas a sensação incompleta.

   Não ocorre o mesmo com as obras de arte do espaço: nele tudo é vida, movimento, cor, luz. A catedral fluídica será como que animada e viva. Suas colunas terão a flexibilidade, a elasticidade da matéria mais subtil; suas paredes serão transparentes como cristal, e mil cores fundidas, desconhecidas na Terra, nelas se divertirão em jogos de sombra e luz. Todas as harmonias ali se combinam em ondas de uma suavidade inexprimível; tudo vibra no frémito de uma vida intensa e profunda.

   Os artistas da Terra deverão se inspirar nesses modelos sobre-humanos que os ensinamentos espíritas lhes tornaram familiares. A educação estética humana comporta concepções cada vez mais elevadas para que o sentimento do belo penetre e se desenvolva em todas as almas. Já se produz uma evolução nesse sentido; ela se acentuará sob a influência do Além. Os artistas do futuro se interessarão em dar mais fluidez às cores, mais vida ao mármore, mais espiritualidade a todas as suas obras. As artes complementares se idealizarão inteiramente, deixando à arquitectura a majestade das formas rígidas e a ilusão do imutável na inércia.

   A arte se realça e progride em todos os graus da escalada da vida, realizando formas cada vez mais nobres e perfeitas, e que se aproximam da fonte divina da eterna beleza.
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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I – O Espírito e sua parcela do poder criador, Arquitectura na Terra e no espaço, A catedral terrestre e a catedral fluídica. 3º Fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


3. O TESTAMENTO
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   Passados os dias mais angustiantes do luto, as autoridades se reuniram no Palácio di Bicci para a leitura do testamento. Foram convidadas algumas famílias e compareceram, também, convocados pela Justiça, alguns

remanescentes da família di Bicci di M., vinculados ao Senhor duque.

   Os archotes fumegantes voltaram a arder em brasas vivas no solar e, embora todos se encontrassem em pesado luto, o vinho capitoso escorria abundante, por ordem de Girólamo, que contratara alguns áulicos novos para ajudar os fâmulos remanescentes.

   O inverno rigoroso ainda não amainara de todo. Após as chuvas torrenciais e as trovoadas retumbantes, o frio cortava e as estradas se apresentavam quase intransitáveis. De quando em quando, uma pancada de água caía inesperada, ameaçando de interrupção total as péssimas vias de comunicação.

   Todos, portanto, desejavam libertar-se daquele desagradável dever para o qual foram convocados, excepto os interessados. Por uma hábil manobra, Girólamo convidara especialmente Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo de Siena para presidir à solenidade, de forma a sentir-se amparado pela velha astúcia do mau e cobiçoso sacerdote, que o defenderia diante da família do extinto, caso os que viessem aventurar-se criassem dificuldades em face do vasto espólio, ou para qualquer outra inesperada emergência.

   Com a intuição da possível vantagem, o prelado se fez acompanhar do séquito que o acolitava e antes que a Justiça terrena realizasse o seu mister apresentou-se como representante da Justiça Divina, abençoando o remanescente da família devorada pela tragédia e rogando a todos conformação ante os desejos do duque extinto. Terminada a oração, sem qualquer tónica de inspiração e autenticidade, o juiz convocou o notário à leitura do testamento, que, apresentado às testemunhas, estas declararam serem autênticos os selos e o documento, reconhecendo ter sido aquele que assinaram por solicitação de Dom Giovanni di Bicci di M.

   Estavam presentes, também, diversos membros do clã dos M., recém-chegados de várias cidades da Toscana: Florença, Siena, Pisa…, interessados na descoberta de qualquer haver que pudessem arrojar aos excessos e desperdícios a que se encontravam, e que igualmente examinaram o documento.

   Após pigarrear grotesco e asmático, o notário deu início à leitura, com voz fanhosa:

   “Eu, abaixo assinado, Giovanni di Bicci di M., duque pertencente ao grão-ducado da Toscana, viúvo e morador no Palácio di Bicci, nos arredores de Siena, achando-me com saúde, em meu perfeito juízo e livre de toda e qualquer coação, faço meu testamento do modo seguinte: Primeiro – Declaro que sou natural de Florença, donde procedem os meus ancestrais, todos eles comerciários e homens públicos, já falecidos; Segundo – Que me tendo consorciado com Ângela Venturi di Bicci, já falecida, tive do matrimónio três filhos: Grazziella, Carlo e Juliana, todos menores, vivos; Terceiro – Que me sendo permitido por lei dispor de minha terça e desejando favorecer aqueles que me têm servido e a quem amo, aos quais sempre tenho protegido, e não desejando que fiquem pela minha morte privados dos recursos necessários para a subsistência, resolvi utilizar da minha terça pela forma abaixo declarada; e nesta conformidade: Quarto – Determino que uma terça parte do que me pertence e de que posso dispor seja entregue à Catedral de Siena, para obras de piedade e celebração de missas pela minha e pela alma da Senhora duquesa, ficando as partes restantes para Lúcia, que serviu admiravelmente à minha esposa e a mim me tem servido com devoção. Deixo a cada um dos meus criados, quando eu vier a falecer, e que ainda estiverem a meu serviço, a importância de mil escudos, moeda toscana que lhes será entregue dentro de trinta dias, a contar da minha morte; Quinto – Como pelo falecimento de minha mulher os meus filhos já são possuidores das duas terças que lhes pertencem, a eles peço manter os meus desejos, já que lhes não fará falta o de que disponho, sendo esta a minha vontade; Sexto – Se, todavia, alguma desgraça vier a suceder aos meus filhos, de que lhes resulte a morte, todos os meus pertences devem passar à propriedade da aia de minha mulher, Lúcia di Francesco Felsina, a quem nomeio, desde já, tutora dos referidos menores, pela minha exclusiva vontade e com permissão da Justiça; Sétimo – Para Girólamo, a quem a minha extinta mulher tanto queria, este espólio somente lhe chegará às mãos por extinção das pessoas citadas neste testamento; e quando ele falecer, tudo será encaminhado à Ordem da Penitência, em Florença, sendo metade para obras de arte e a outra metade para missas pelos meus familiares; Oitavo – Excluo deste testamento quaisquer pessoas que se apresentem como meus familiares, aqui não referidos e que não necessitam do meu auxílio; Nono – E por esta forma tenho feito o meu testamento, pelo qual revogo todos os outros que fiz; e como me seria penoso escrevê-lo, pedi-o ao notário Dom Germano Victorio, a quem nomeio meu testamenteiro desta cidade, para que o fizesse por mim, e eu vou rubricar depois de lido e certificado de que está tal qual eu ditei e quero. Siena, doze de Janeiro de mil setecentos e quarenta e três.”

   – Devidamente assinado e aprovado, como pode ser visto – arrematou o tabelião –, devemos atender às exigências de Dom Giovanni.

   Irromperam entre os assistentes diversas exclamações de ódio e violência, surgindo alterações entre membros da família, que se acreditavam ludibriados. Revoltados, informaram que apelariam para a Justiça da Capital.

   Girólamo, abraçado pelo Bispo, chorava ou fazia crer que chorava. Dizia desconhecer o documento, no que foi ratificado pelo notário, que informou jamais o ter revelado a alguém – conquanto fosse conhecido dipsomaníaco, na cidade –, e pelo prelado da diocese, que se sentia ufano de ter sido a Igreja lembrada pelo falecido. Rejubilava-se, acreditando poder receber, também, um largo quinhão de Girólamo, quando este entrasse na posse dos bens, tendo em vista serem amigos e ter-se transformado em seu protector desde os aziagos acontecimentos já narrados.

   O Senhor Bispo, tomando a palavra no tumulto geral, tornando-se juiz da questão, levantou a voz e bradou:

   – Como os demais herdeiros – as crianças de di Bicci e a criminosa Lúcia – encontram-se mortos, todo o espólio por lei e direito pertence, desde este momento, a Girólamo, a quem cumpre o dever de atender os desejos do seu tio e pai adoptivo, Dom Giovanni – que Deus lhe guarde a alma, nos Céus!

   – Não posso receber nada, – falou o rapaz. – Esta casa está manchada pelo sangue de inocentes vítimas e esse dinheiro é amaldiçoado. Não posso, não posso!

   – Acalme-se, meu filho! – redarguiu o Bispo. – Celebraremos algumas missas aqui e abençoaremos o solar. Você ajudará a Igreja, terá o que merece e o que lhe pertence pela vontade de Deus e do Senhor di Bicci.

   Os familiares di Bicci di M., talvez recordando o antigo prestígio de que gozavam até há pouco, ameaçaram, furibundos, tudo retomar, utilizando-se do fastígio que lhes aureolava o nome, junto a Francisco de Lorena, da Áustria, e prometeram regularizar a situação posteriormente, expulsando a espadas o usurpador. Blasfemando, encolerizados, saíram em direcção a Siena…

   Asserenadamente, deixaram-se ficar alguns convidados, as testemunhas, que assinaram o documento, o notário e o Senhor Bispo, para uma demorada comemoração em família.

   Girólamo, aparentando uma emoção, uma tristeza que estava longe de sentir, solicitou ao testamenteiro e ao Senhor Bispo que cuidassem das questões legais, enquanto ele se afastaria com destino a Florença para um justo repouso, a fim de reorganizar as ideias, muito violentadas nos últimos tempos. Voltaria um mês depois, quando, de posse dos haveres, saberia recompensá-los devida, regiamente.

   Os olhos dos comensais espúrios do favor nefando brilharam e a noite continuou sombria, piscando estrelas no alto.
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (fragmento 2 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

~portas adentro do coração, só a essência deve prevalecer~



|Os
primeiros
cristãos|

   Atingindo
um período
de nova compreensão concernente aos mais graves problemas da vida, a sociedade da época
sentia de perto a insuficiência das escolas filosóficas conhecidas,

no propósito de solucionar as suas grandes questões. A ideia de uma justiça mais perfeita para as classes oprimidas torna-se assunto obsidente para as massas anónimas e sofredoras.

   Em virtude dos seus postulados sublimes de fraternidade, a lição de Cristo representava o asilo de todos os desesperados e de todos os tristes. As multidões dos aflitos pareciam ouvir aquela misericordiosa exortação: – Vinde a mim, vós todos que sofreis e tendes fome de justiça e eu vos aliviarei – e da cruz chegava-lhes, ainda, o alento de uma esperança desconhecida.

   A recordação dos exemplos do Mestre não se restringia aos povos da Judeia, que lhe ouviram directamente os ensinos imorredouros. Numerosos centuriões e cidadãos romanos conheceram pessoalmente os factos culminantes das pregações do Salvador. Em toda a Ásia menor, na Grécia, na África e mesmo nas Gálias, como em Roma, falava-se dele, da sua filosofia nova que abraçava todos os infelizes, cheia das claridades sacrossantas do Reino de Deus e da sua justiça. Sua doutrina de perdão e de amor trazia nova luz aos corações e os seus seguidores destacavam-se do ambiente corrupto do tempo, pela pureza de costumes e por uma conduta rectilínea e exemplar.

   A princípio, as autoridades do Império não ligaram maior importância à doutrina nascente, mas os apóstolos ensinavam que, por Jesus Cristo, não mais poderia haver diferença entre os livres e os escravos, entre patrícios e plebeus, porque todos eram irmãos, filhos do mesmo Deus. O patriciado não podia ver com bons olhos semelhantes doutrinas. Os cristãos foram acusados de feiticeiros e heréticos, iniciando-se o martirológio com os primeiros éditos de proscrição. O estado não permitia outras associações independentes, além daquelas consideradas como cooperativas funerárias e, aproveitando essa excepção, os seguidores do Crucificado começaram os famosos movimentos das catacumbas.

A propagação do Cristianismo

   Na Judeia cresce, então, o número dos prosélitos da nova crença. O hino de esperanças da manjedoura e do calvário espalha nas almas um suave e eterno perfume. É assim que os apóstolos, cuja tarefa Cristo abençoara com a sua misericórdia, espalham as claridades da Boa Nova por toda a parte, repartindo o pão milagroso da fé com todos os famintos do coração.

   A doutrina do Crucificado propaga-se com a rapidez do relâmpago.

   Fala-se dela, tanto em Roma como nas Gálias e no norte de África. Surgem os advogados e os detractores. Os prosélitos mais eminentes buscam doutrinar, disseminando as ideias e interpretações. As primeiras igrejas surgem ao pé de cada apóstolo, ou de cada discípulo mais destacado e estudioso.

   A centralização e a unidade do Império Romano facilitam a deslocação dos novos missionários, que podiam levar a palavra de fé ao mais obscuro recanto do globo, sem as exigências e os obstáculos das fronteiras.

   Doutrina alguma alcançara no mundo semelhante posição, em face da preferência das massas. É que o Divino Mestre selara com exemplos as palavras de suas lições imorredouras.

   Maior revolucionário de todas as épocas, não empunhou outra arma além daquelas que significam amor e tolerância, educação e aclaramento. Condenou todas as hipocrisias, insurgiu-se contra todas as violências oficializadas, ensinando simultaneamente aos discípulos o amor incondicional à ordem, ao trabalho e à paz construtiva. É por essa razão que os Evangelhos constituem o livro da Humanidade, por excelência. Sua simplicidade e singeleza transparecem na tradução de todas as línguas da Terra, prendendo a alma dos homens entre as luzes do Céu, ao encanto suave de suas narrativas.

A redacção dos textos definitivos

   Nesse tempo, quando a guerra formidável da crítica procurava minar o edifício imortal da nova doutrina, os mensageiros de Cristo presidem à redacção dos textos definitivos, com vistas ao futuro, não somente junto aos apóstolos e seus discípulos, mas igualmente junto aos núcleos das tradições. Os cristãos mais destacados trocam, entre si, cartas de alto valor doutrinário para as diversas igrejas. São mensageiros de fraternidade e de amor, que a posteridade muita vez não pôde ou não quis compreender.

   Muitas escolas literárias se formaram nos últimos séculos, dentro da crítica histórica, para o estudo e elucidação desses documentos. A palavra “apócrifo” generalizou-se como o espantalho de todo o mundo. Histórias numerosas foram escritas. Hipóteses incontestáveis foram aventadas, mas os sábios materialistas, no estudo das ideias religiosas, não puderam sentir que a intuição está acima da razão e, ainda uma vez, falharam, em sua maioria, na exposição dos princípios e na apresentação das grandes figuras do Cristianismo.

   A grandeza da doutrina não reside na circunstância de o Evangelho ser de Marcos ou de Mateus, de Lucas ou de João; está na beleza imortal que se irradia de suas lições divinas, atravessando as idades e atraindo os corações. Não há vantagem nas longas discussões quanto à autenticidade de uma carta de Inácio de Antioquia ou de Paulo de Tarso, quando o raciocínio absoluto não possui elementos para a prova concludente e necessária. A opinião geral rodopiará em torno do crítico mais eminente, segundo as convenções. Todavia, a autoridade literária não poderá apresentar a equação matemática do assunto. É, que, portas adentro do coração, só a essência deve prevalecer para as almas e, em se tratando das conquistas sublimadas da fé, a intuição tem de marchar à frente da razão, preludiando generosos e definitivos conhecimentos.


ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, XIV – A Edificação Cristã, Os primeiros Cristãos, A Propagação do Cristianismo, A Redacção dos Textos Definitivos. Texto mediúnico recebido em 1938 por FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: Pietà (dor) 1498-1499, obra-prima da Renascença escultura de MichelangeloSt. Basílica de Pedro, Vaticano)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~



II
Cenas do Espaço.
Visões Reais da Guerra e da Epopéia

|Janeiro de 1915|



   Eles se encontram ali, pairando sobre a enorme frente de batalha que vai das praias nevoentas aos picos dos Vosges, até as planícies da Alsace. Estão ali os espíritos de todos quantos, no correr dos séculos e em todos os sectores, principalmente no militar, contribuíram para abrilhantar a França, para construir sua glória imortal. Eles apoiam, arrastam e inspiram nossos soldados e seus comandantes.

   Faz quatro meses que os combatentes, semi-enterrados, ocultos nos acidentes do chão, cercados de redes de arame, continuam uma guerra de destruição e astúcia onde se apura a paciência e a coragem se esgota lentamente.

   Outrora a guerra possuía sua trágica beleza, sua grandeza. Lutava-se a peito descoberto, de cabeça erguida e com bandeiras desfraldadas. Hoje existem apenas ciladas, maquinações e covardias.

   Em toda parte, nos trabalhos da paz como nos da guerra, os alemães desnaturaram, amesquinharam e aviltaram tudo quanto foi nobre. A traição, a perfídia e a falsidade são os seus princípios rotineiros.

   Os génios do mal, os espíritos inferiores de homicídio e de rapina dos tempos medievais estão entre eles, reencarnados em suas fileiras ou invisíveis, participando de seus combates.

   Se eles triunfassem, a Europa ficaria escravizada, os fracos esmagados e os vencidos espoliados. Seria um retorno da humanidade aos tempos bárbaros.

   Os nobres espíritos que zelam pelos nossos exércitos conheceram lutas mais nobres, mais generosas, e por isso surpreendem-se com essas tácticas e se afligem com esses procedimentos. Há ocasiões em que, vendo infrutíferos tantos esforços, sentem-se invadir pela hesitação e pela inquietude, perguntando, angustiados, qual será o fim dessa terrível luta.

   Quanto sangue e lágrimas! Quantos jovens heróis sucumbidos! Quantos despojos humanos jazem sobre a terra! Nosso país verá aniquilar-se toda a sua força, toda a sua vitalidade?

   Aí então aparece, do alto do espaço infinito, um novo espírito, e ao vê-lo todos se agitam e se comovem: é uma mulher, e uma auréola lhe cinge a fronte; o entusiasmo e a fé lhe animam o rosto.

   Assim que ela aparece, um tremor perpassa por essas legiões de invisíveis. E um nome passa de boca em boca: Joana d’Arc!

   É a filha de Deus, a virgem das lutas!

   Ela vem revigorar as energias adormecidas, a coragem abalada. Desde o início da luta ela se mantinha afastada, entre suas irmãs celestes, num grupo de seres graciosos e encantadores, seres angélicos, cujo comando Deus lhe confiou após o martírio.

   Sua missão consiste em aplacar os sofrimentos humanos, diminuir as dores morais, pairando sobre as almas que suportam suas provas.

   A hora, porém, soou. Ao ter ciência dos males que devastam a pátria, essa França tão querida pela qual sacrificou sua existência, o coração da Virgem Lorena se sentiu turbado, apossando-se dela o desejo ardente de nos socorrer, e então ela cede a esse desejo.

   Na hora da partida, suas irmãs, companheiras do espaço, inclinam-se ante aquela que veneram, dizendo:

“Faremos preces pelo triunfo de vossas armas, filha amada de Deus”.

Assim, pois, Joana acode e em seu derredor se congregam, prestativos, os espíritos heróicos, protectores da França, para saudá-la e acompanhá-la.

Na sua simplicidade, ela lhes diz:

“Como nos séculos passados, senti a irresistível vontade de me juntar aos que estão lutando pela salvação da pátria. Aceitam-me em suas fileiras?”

Todos, num só entusiasmo, exclamaram:

“Ponha-se à nossa frente e marcharemos sob suas ordens!”
/...


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, II – Cenas do Espaço, Visões Reais da Guerra e da Epopeia, fragmento 1 de 3.
(imagem: Assalto francês às posições alemãs em Champagne, França, durante a Primeira Guerra Mundial.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

~se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha~


   No ponto a que chegou
no século XIX, terá a ciência resolvido todas as dificuldades do problema da Génese?

   Seguramente que não,
mas é incontestável que
destruiu sem retrocesso
todos os erros capitais e
que estabeleceu os fundamentos mais essenciais sobre dados irrecusáveis;
os pontos ainda
incertos não são,
a bem dizer,
mais do que questões de pormenor cuja solução,
seja ela qual for no futuro,
não poderá prejudicar
o todo.

   Por outro lado, apesar de todos os recursos de que pode dispor,
faltou-lhe até hoje um elemento importante  sem o qual a obra não poderia nunca estar completa.

   De todas as Géneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que contém e que são hoje demonstrados à evidência, é incontestavelmente a de Moisés.
Alguns desses erros são mesmo mais aparentes do que reais e provêm quer da falsa interpretação de certas palavras cujo primitivo significado se perdeu ao passar de língua para língua em traduções ou cuja acepção se alterou com os hábitos dos povos, quer da forma alegórica característica do estilo oriental e de que tomámos a letra em vez de procurarmos o espírito.

   A Bíblia contém evidentemente factos que a razão, desenvolvida pela ciência, hoje não poderia aceitar e outros que parecem estranhos e repugnam porque se ligam a costumes que já não são nossos.
Mas, juntamente com isso, haveria parcialidade em não reconhecer que encerra grandes e belas coisas.
A alegoria tem aí um lugar considerável e, sob esse véu, esconde verdades sublimes que surgem se procurarmos o fundo da ideia, porque então o absurdo desaparece.

   Nesse caso, por que não levantámos esse véu mais cedo?
É, por um lado, a falta de saber que só a ciência e uma sã filosofia poderiam proporcionar e, do outro, o princípio de imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito demasiado cego pela letra perante a qual a razão se deveria inclinar e, portanto, o receio de comprometer o enorme monte de crenças construído sobre o sentido literal.
Partindo estas crenças de um ponto primitivo, receou-se que, acabassem por separar; foi por isso que, apesar de tudo, se fecharam os olhos; mas fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo.
Quando um edifício cede, não é mais prudente substituir imediatamente as pedras más por boas em vez de esperar, por respeito para com a velhice do edifício, que o mal não tenha remédio e que seja preciso reconstruí-lo do princípio ao fim?

   A ciência, levando as suas investigações até às entranhas da Terra e profundidade do céu, demonstrou então de forma irrecusável os erros da Génese moseísta tomada à letra e a impossibilidade material das coisas se terem passado tal como aí são textualmente relatadas; por isso mesmo, lesou profundamente as crenças seculares.
A fé ortodoxa sensibilizou-se com isso porque julgou ver retirados os seus fundamentos; mas quem teria razão: a ciência, caminhando prudente e progressivamente no terreno sólido dos números e da observação, sem nada afirmar antes de ter a prova na mão, ou uma relação escrita numa época em que os meios de observação faltavam em absoluto?
Quem deve vencer, afinal: o que diz que 2 e 2 são 5 e se recusa a verificar ou o que diz que 2 e 2 são 4 e o prova?

   Mas então, dir-se-á, se a Bíblia é uma revelação divina, Deus enganou-se?
Se não é uma revelação divina, já não tem autoridade e a religião cai por falta de base. Das duas uma: ou a ciência não tem razão ou tem-na; se tem razão, não pode fazer com que uma opinião contrária seja verdadeira; não há revelação que possa vencê-la quando à autoridade dos factos.

   Incontestavelmente, Deus, que é todo verdade, não pode induzir os homens em erro, nem consciente nem inconscientemente, sem o que não seria Deus.
Se então os factos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, é preciso concluir logicamente que não as pronunciou ou que foram tomadas no sentido errado.

    Se a religião sofre nalgumas partes destas contradições, o defeito não é de maneira nenhuma da ciência, que não pode fazer com que aquilo que é não o seja, mas dos homens, por terem criado prematuramente dogmas absolutos, de que fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses susceptíveis de serem desmentidas pela experiência.

   Há coisas com o sacrifício das quais temos de nos resignar, de boa ou má vontade, quando não podemos proceder doutro modo. Quando o mundo avança, não podendo a vontade de alguns fazer com que pare, o mais sensato é segui-lo e acomodarmo-nos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que desaba, correndo o risco de cairmos com ele.

   Era preciso, por respeito para com os textos considerados sagrados, impor o silêncio à ciência? Seria uma coisa tão impossível como impedir a Terra de girar. As religiões, sejam elas quais forem, nunca ganharam nada em sustentar erros manifestos. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como estas leis são obra de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas na verdade. Lançar um anátema ao progresso por atentatório da religião, pois é lançá-lo à própria obra de Deus; é, além disso, trabalho inútil, pois todos os anátemas do mundo não impediriam a ciência de avançar, nem a verdade de surgir à luz do dia. Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE números de 4 a 9, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem: São Bartolomeu, segurando a faca do seu martírio e a sua pele arrancada. O rosto na pele é um auto-retrato de Michelangelo. Detalhe de "O Juizo Final" afresco pintado na parede do altar da Capela Sistina, por Michelangelo)