Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

~se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha~


   No ponto a que chegou
no século XIX, terá a ciência resolvido todas as dificuldades do problema da Génese?

   Seguramente que não,
mas é incontestável que
destruiu sem retrocesso
todos os erros capitais e
que estabeleceu os fundamentos mais essenciais sobre dados irrecusáveis;
os pontos ainda
incertos não são,
a bem dizer,
mais do que questões de pormenor cuja solução,
seja ela qual for no futuro,
não poderá prejudicar
o todo.

   Por outro lado, apesar de todos os recursos de que pode dispor,
faltou-lhe até hoje um elemento importante  sem o qual a obra não poderia nunca estar completa.

   De todas as Géneses antigas, a que mais se aproxima dos dados científicos modernos, apesar dos erros que contém e que são hoje demonstrados à evidência, é incontestavelmente a de Moisés.
Alguns desses erros são mesmo mais aparentes do que reais e provêm quer da falsa interpretação de certas palavras cujo primitivo significado se perdeu ao passar de língua para língua em traduções ou cuja acepção se alterou com os hábitos dos povos, quer da forma alegórica característica do estilo oriental e de que tomámos a letra em vez de procurarmos o espírito.

   A Bíblia contém evidentemente factos que a razão, desenvolvida pela ciência, hoje não poderia aceitar e outros que parecem estranhos e repugnam porque se ligam a costumes que já não são nossos.
Mas, juntamente com isso, haveria parcialidade em não reconhecer que encerra grandes e belas coisas.
A alegoria tem aí um lugar considerável e, sob esse véu, esconde verdades sublimes que surgem se procurarmos o fundo da ideia, porque então o absurdo desaparece.

   Nesse caso, por que não levantámos esse véu mais cedo?
É, por um lado, a falta de saber que só a ciência e uma sã filosofia poderiam proporcionar e, do outro, o princípio de imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito demasiado cego pela letra perante a qual a razão se deveria inclinar e, portanto, o receio de comprometer o enorme monte de crenças construído sobre o sentido literal.
Partindo estas crenças de um ponto primitivo, receou-se que, acabassem por separar; foi por isso que, apesar de tudo, se fecharam os olhos; mas fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo.
Quando um edifício cede, não é mais prudente substituir imediatamente as pedras más por boas em vez de esperar, por respeito para com a velhice do edifício, que o mal não tenha remédio e que seja preciso reconstruí-lo do princípio ao fim?

   A ciência, levando as suas investigações até às entranhas da Terra e profundidade do céu, demonstrou então de forma irrecusável os erros da Génese moseísta tomada à letra e a impossibilidade material das coisas se terem passado tal como aí são textualmente relatadas; por isso mesmo, lesou profundamente as crenças seculares.
A fé ortodoxa sensibilizou-se com isso porque julgou ver retirados os seus fundamentos; mas quem teria razão: a ciência, caminhando prudente e progressivamente no terreno sólido dos números e da observação, sem nada afirmar antes de ter a prova na mão, ou uma relação escrita numa época em que os meios de observação faltavam em absoluto?
Quem deve vencer, afinal: o que diz que 2 e 2 são 5 e se recusa a verificar ou o que diz que 2 e 2 são 4 e o prova?

   Mas então, dir-se-á, se a Bíblia é uma revelação divina, Deus enganou-se?
Se não é uma revelação divina, já não tem autoridade e a religião cai por falta de base. Das duas uma: ou a ciência não tem razão ou tem-na; se tem razão, não pode fazer com que uma opinião contrária seja verdadeira; não há revelação que possa vencê-la quando à autoridade dos factos.

   Incontestavelmente, Deus, que é todo verdade, não pode induzir os homens em erro, nem consciente nem inconscientemente, sem o que não seria Deus.
Se então os factos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, é preciso concluir logicamente que não as pronunciou ou que foram tomadas no sentido errado.

    Se a religião sofre nalgumas partes destas contradições, o defeito não é de maneira nenhuma da ciência, que não pode fazer com que aquilo que é não o seja, mas dos homens, por terem criado prematuramente dogmas absolutos, de que fizeram uma questão de vida ou de morte, sobre hipóteses susceptíveis de serem desmentidas pela experiência.

   Há coisas com o sacrifício das quais temos de nos resignar, de boa ou má vontade, quando não podemos proceder doutro modo. Quando o mundo avança, não podendo a vontade de alguns fazer com que pare, o mais sensato é segui-lo e acomodarmo-nos ao novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que desaba, correndo o risco de cairmos com ele.

   Era preciso, por respeito para com os textos considerados sagrados, impor o silêncio à ciência? Seria uma coisa tão impossível como impedir a Terra de girar. As religiões, sejam elas quais forem, nunca ganharam nada em sustentar erros manifestos. A missão da ciência é descobrir as leis da natureza; ora, como estas leis são obra de Deus, não podem ser contrárias às religiões fundadas na verdade. Lançar um anátema ao progresso por atentatório da religião, pois é lançá-lo à própria obra de Deus; é, além disso, trabalho inútil, pois todos os anátemas do mundo não impediriam a ciência de avançar, nem a verdade de surgir à luz do dia. Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avança sozinha.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE números de 4 a 9, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem: São Bartolomeu, segurando a faca do seu martírio e a sua pele arrancada. O rosto na pele é um auto-retrato de Michelangelo. Detalhe de "O Juizo Final" afresco pintado na parede do altar da Capela Sistina, por Michelangelo)

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