Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 25 de fevereiro de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


3. O TESTAMENTO
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   Ante a efervescência dos convidados do Solar di Bicci e a leitura do testamento, o Espírito atribulado do Senhor duque, que se encontrava entorpecido no vágado demorado, de que fora vítima
desde a hora em que Girólamo cometera os crimes sórdidos, despertou e, dominado por inenarrável fúria, acompanhou a leitura e os conchavos maléficos realizados no grande refeitório do solar, explodindo em cólera de louco. Identificando no sobrinho o autor de tantas desgraças, atirou-se sobre ele, punhos cerrados e dentes rilhados, sem, no entanto, conseguir atingi-lo.

   À semelhança de um animal ferido, o Espírito do duque ululava, entre sombras espessas, de cujo bojo se destacavam o vulto odiento do sobrinho e o das personagens presentes, indiferentes ao seu próprio estado. Compreendeu, ante a leitura ouvida, que se encontrava definitivamente morto e que o ser sofria e se esganava em superlativa aflição e desconforto era ele mesmo, sim, em espírito vivo e indestrutível…

   Embora a dor que o dilacerava, recordou-se dos filhos trucidados, de Lúcia, da esposa, enquanto as lágrimas, como aço derretido, lhe escorriam ardentes, lenhando-o externa e interiormente.

   Sem o conforto de uma fé religiosa legítima, acostumado apenas ao culto externo e vazio da tradição, foi dominado pelo furor do ódio, deixando à margem toda a ternura e misericórdia de que ouvira falar, e de que se fizera portador aquele Nazareno Crucificado, em nome do Pai, e que dera a Sua pelas vidas dos homens de todos os tempos, ensinando mansidão e amor, até ao sacrifício supremo.

   Em esgares, transformando-se lentamente, porque vencido pela própria desdita, o antigo Senhor di Bicci di M., desde aquele momento, se converteu em obsessor de Girólamo, seguindo-o implacável, tentando uma comunhão psíquica que hoje ou depois se faria, irreversivelmente, pois o ódio – o amor desvairado – vibra, poderoso, e encontra sintonia naquele a quem se dirige por um processo natural de harmonia vibratória, em considerando as baixas faixas mentais e morais em que se demoram os homens. Poderoso, o ódio atrai à sua força imantadora aqueles que se comprazem na invigilância e na irresponsabilidade, pois que somente a abnegação, a humildade, o amor, a caridade – as virtudes clássicas! – são antídoto específico capaz de dissolvê-lo.

   A sombra de que se supunha seguido, conforme relatara Girólamo, eram os primeiros fios invisíveis do remorso que o atariam à sua vítima central, por cujos liames se apertariam as teias da trama da vingança cega e louca do desafecto nascido pela traição e pelo homicídio múltiplo. Utilizando-se do remorso que teceria as malhas de imantação entre um e outro, Dom Giovanni penetraria no recesso da consciência anestesiada do jovem e exerceria o seu predomínio em curso longo de obsessão vingadora, a se demorar pela esteira imensa do tempo. Não agora, porém, começariam os primeiros tormentos do criminoso. A Misericórdia Divina concede a bênção do tempo, em mil oportunidades, para o celerado reabilitar-se, mediante o arrependimento honesto em termos de acção pelo trabalho e pelo socorro ao próximo, através da construção do bem, dentro e fora do ergástulo em que se demora na carne. Todavia, soezes e frívolos, os facínoras se esquecem da justiça, e, quando esta não os alcança de imediato, supõem-se livres, prosseguindo na desenfreada cupidez, alucinação e prepotência, adicionando aos antigos novos débitos, acumpliciados com as mais vis manifestações do instinto, não totalmente domado ainda, e que lhes são portas da loucura inominável, em cujo corredor se atiram, sem possibilidade de próxima salvação. Era o que ocorria com Girólamo.

   Limitado pelas comportas carnais, podia ver as cenas de primitivismo a que se atirava o pai adoptivo, tentando feri-lo, destruí-lo, exacerbado no próprio desespero. Deambulando pelo imenso solar, agora sem visitas, com os poucos servidores já recolhidos, repassava, o moço, as cenas ali vividas e se sentia o senhor absoluto da herdade, antegozando a hora em que, triunfante, com os documentos de posse, viesse residir no palácio, demoradamente ambicionado. A realidade daquela hora parecia tirar-lhe a razão: sorria em alegria quase louca e bebia eufórico, seguido pela sombra do perseguidor.

   A Senhora Ângela, em espírito, que também estivera presente à leitura do testamento, permanecera orando, tentando penetrar os crepes pesados que envolviam o esposo, de modo a acenar-lhe com as bênçãos do perdão ao infractor, que não jornadearia impune para sempre, libertando-o dos miasmas do ódio, em que se consumia lentamente. Fechado a qualquer comunicação exterior, o lampejo da lembrança dos seres queridos foi logo abafado pelo fervor da paixão odienta e nefasta que o venceu terrivelmente. Assim, a nobre Entidade, que socorria, a seu turno, os filhinhos recém-chegados e a antiga serva, abandonou o recinto, buscando a esfera da paz em que amparava os amores, confiando no Pai de Misericórdia e na Mãe Santíssima, a Eles entregando o esposo perdido nas trevas da ignorância e da vingança…
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 3. O TESTAMENTO (fragmento 3 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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