Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Victor Hugo e o invisível ~


A consciência palingenésica nos homens | e nos povos

   Sem dúvida alguma, é no Oriente que a concepção palingenésica do ser tem as suas mais profundas raízes. Embora a sua interpretação seja tristemente estática entre os orientais, a ideia dos renascimentos é uma realidade espiritual e religiosa. Países como a Índia e o Japão têm-na como "base moral" do mundo. No Egipto e na Grécia, a ideia paligenésica do homem é interpretada como uma sucessão de provas planetárias, o que fornece ao Ocidente bases para os primeiros vislumbres de um conceito reexistencialista do Ser.

   Na Grécia, a ideia de reencarnação expressou-se através desse luminoso fenómeno poético que são os poemas órficosOs poetas dessa escola, sentiam em si mesmos, o imperativo moral das vidas sucessivas, que lhes surgia inesperadamente dos extractos mais profundos do subconsciente. Filósofos como Sócrates, Platão, Pitágoras, Apolónio de Tiana e, Empédocles apresentaram-se como uma realidade nas suas concepções filosóficas. Em quase toda a filosofia órfica e druídica está presente essa ideia do renascimento do Ser que Nietzsche denominou "eterno retorno".

   Platão escreve com toda a clareza a ideia da reencarnação em A Répública, Fedra, Timeu e em Fédon. Em Fedra lê-se: "É certo que os vivos nascem dos mortos e que as almas dos mortos renascem ainda". Em Fédon"A alma é mais velha que o corpo. As almas renascem sem cessar do Hado, para voltar à vida actual".

   Este pensamento socrático-platónico sobre a reencarnação não foi valorizado ontologicamente nem teologicamente como seria correcto, fazendo com que caísse como que um véu sobre a mentalidade do Ocidente. A história da filosofia não penetrou, como era de esperar, na exposição palingenésica de SócratesPlatão e de PitágorasAs chamadas ''reminiscências platónicas'' deveriam ter penetrado fundo no pensamento filosófico do cristão; ter-se-ia evitado assim, a tragédia agonística e existencial de homens como Pascal, Nietzsche, Kierkegaard, Chestov, Unamuno e, de existêncialistas como Sartre, Camus, Berdiaev e até de alguns tomistas contemporâneos. O homem como expressão da existência, ou seja, com a lei da reencarnação teria dado ao pensamento do Ocidente um novo sentir sobre a vida e a história. Um novo dinamismo moral teria surgido do chamado sentido trágico da existência. A vida como prova planetária do Ser estaria assente na sucessão de existências vividas pelo espírito. O homem, como acontece agora, não seria um Ser espiritual alheio aos variados processos da história; seria uma potência que do visível e do invisível manejaria conscientemente toda a realidade histórica.

   Isso daria um novo sentido às responsabilidades morais dos actores intervenientes no drama universal.

   palingenesia expressou-se no Egipto através dos chamados mistérios de Ísis, onde seres preparados para isso estavam destinados a revelar os segredos das vidas passadas do homem. Por isso, toda a ciência egiptológica se viu na necessidade de voltar ao passado em busca das verdadeiras raízes do Ser e da pessoa humana. Na Grécia, as vidas sucessivas do homem e dos seres era ensinada nos mistérios de Elêusis, tão profundos como os de Ísis. Mas, nos segredos eleusinos intervinham os mistérios de Perséfone, que simbolizavam a representação existencial dos renascimentos do homem.

   Toda a arte grega está impregnada dessa beleza espiritual cuja origem se encontra na mentalidade palingenésica, que prevalecia entre os maiores pensadores da antiga HéladeA beleza entre os gregos não era apenas uma idealização do Ser, mas uma expressão divina da vida como função vivente dos actos morais do homem. A beleza era entre os antigos gregos um estado superior da alma, que se engrandecia cada vez mais pela prática do Bem e da Verdade.

   Mas esta ideia palingenésica do homem encontrou também o seu clima favorável no império romano. Os homens mais destacados desse período, como OvídioCícero e Virgílio, sustentaram-na nas suas obras literárias. Virgílio cantou-a em Eneida, dizendo que a alma ao fundir-se com a carne perde a noção de si mesma. Embora não se tenha expandido muito na cultura romana, os seus mais ilustres pensadores consideraram a ideia palingenésica como uma realidade necessária para explicar os variados assuntos psicológicos do Ser.

   A fortaleza e têmpera dos antigos romanos deveu-se a esse conhecimento da lei da reencarnação que possuíam. César, nos seus "Comentários sobre a guerra das Gálias", fez alusão ao carácter imperturbável que possuíam os druídas frente à morte, tendo como causa a consciência palingenésica que haviam atingido. O historiador francês Arbois de Jubainville assim se expressou: "Nos combates contra os romanos, os druídas permaneciam imóveis como estátuas, recebendo as feridas sem fugir nem defender-se. Sabiam que eram imortais e esperavam encontrar noutra parte do mundo um corpo novo e sempre jovem". Tácito confirmou também esse carácter palingenésico que se havia desenvolvido.

   A ideia palingenésica do Ser e da História há de reaparecer com a mesma intensidade que possuía nas idades passadas. O génio poético será um meio para atingir esse fim; os poetas contemporâneos inspirar-se-ão nesta nova visão do Ser, tal como o génio de Victor Hugo o fez na sua época.

/…


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, A consciência palingenésica nos homens e nos povos, 18º fragmento, o último desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

segunda-feira, 14 de maio de 2018

~~~Párias em Redenção~~~


INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(I)

   Na superlativa angústia em que se encontrava, hipnotizado pelo ódio de Dom Giovanni, Girólamo, que oscilava na demência, entre as alucinações e o remorso que lhe deixavam o travo do desespero, não pôde reflectir quanto ao gesto nefando da destruição da própria vida física, permitindo-se arrastar ao crime mais grave que o ser pode cometer contra si mesmo e a Divindade: o autocídio.

   Sem qualquer reflexão, porquanto as forças infelizes acalentadas na mente em desalinho e no coração rebelde produzem constrição impiedosa, que termina por vencer aqueles que as cultivam, arrojara-se desde cedo na mais infeliz das situações, qual a que ora o surpreendia.

   O suicídio revela no homem civilizado o estado aviltante a que ele relega a existência planetária, conduzido ao supremo ódio às Leis Divinas, por ver-se atingido pela inapelável força da evolução, cobrando ao infractor as dívidas não resgatadas. Nesse mister, o tempo não tem qualquer significação, importando não o período transcorrido entre o débito e o ressarcimento mas a dívida em si mesmo.

   O suicida é um espírito soberbo e calceta (i) que, na impossibilidade de atingir o fulcro da Divindade que lhe não permite continuar semeando destruição, alucinado pelas ambições crescentes e selvagens, se destrói, tentando, desse modo, alcançar o Sumo Espírito da Vida. Odiento e infeliz, arroja-se, porém, nos mais fundos despenhadeiros, cujo anteparo não consegue encontrar, experimentando inominável dor, enquanto perduram as novas impressões que se lhe adicionam às angústias das quais desejou fugir e que o enlouquecem, sem roubar-lhe a consciência da própria insânia.

   Os séculos de civilização, de ética e cultura não conseguiram fazer que o instinto de autodestruição – que apenas no homem se manifesta, já que os demais animais, não raciocinando, não se fazem vítimas do hediondo crime – fosse dominado pela análise fria e nobre da razão. Pelo contrário: parece que nas nações chamadas super-civilizadas, pelo abuso das faculdades que revestem o ser, o homem se atira cada vez mais opiado (i) no sorvedouro da autodestruição, consumido pelos excessos de todo o porte, ensoberbecido pela técnica e amolentado pela comodidade perniciosa.

   Se anteriormente a força anunciava a presença da civilização numa cidade, o alto índice de suicídios num povo, actualmente, revela a sua elevada cultura. Cultura, no entanto, pervertida, sem Deus nem amor, sem vida nem sentimento. Cultura da inteligência, com amarguras do sentimento, altas aquisições externas sem qualquer conquista interior. Vitórias sobre as realidades de fora e escravidão aos impositivos de dentro.

   Face às concessões facultadas pela moderna tecnologia e graças à decadência ética do mundo, favorecida pelo desgoverno e empobrecimento da fé nas grandes massas humanas, o ser marcha sob o azorrague (i) de mil angústias, encontrando no suicídio a porta falsa para a equação de problemas que a ele compete resolver pelos processos da não-violência, perseverando no dever sob o recto amparo do tempo. Impaciente, por acomodação ao imediatismo, cujos frutos sempre colhe na árvore da oportunidade ligeira, transforma a paisagem íntima num inferno e, entre as labaredas da inquietação levanta a mão que converte em sicário da vida e atira-se na inditosa loucura da morte voluntária, em busca de nada que seria o repouso eterno, numa violação das mais graves ao Estatuto Divino.

   Preferindo aceitar que o ser humano é um acidente biológico na escala zoológica, por retirar da sua consciência as responsabilidades para consigo mesmo o homem cultiva o orgulho, a soberba, desenvolve a ferocidade, a rebeldia e jacta-se (i) de ser o senhor do mundo, sempre menos, senhor de si mesmo.

   Vivendo na condição predatória de explorar a mãe-Terra quanto lhe facultam as possibilidades, faz-se ingrato, esquecendo de retribuir todas as concessões gratuitas que usufrui sem a menor consideração: a vida física e mental, o ar, a água refrescante, o fruto silvestre, a paisagem rica de colorido e perfume, a maravilha do sol, a bênção da noite, a dádiva das tempestades que lhe renovam a atmosfera… para somente pensar em si mesmo e nas baixas expressões do prazer animalizante.

   Escravo nas paredes celulares, encarcerado nas limitações do sentimento, entorpece-se cada vez mais, até que um último grito de dor o arroja do acume da vida – que deve sempre ser cultivada a qualquer preço de sacrifício e sofrimento –, ao abismo em que se consumirá sem extinguir-se, enquanto lentos, pela dor aumentada, correrão os tempos, realizando o seu abençoado trabalho purificador.

   Louca Humanidade! Conquista o mundo, transforma condições climáticas, corrige o terreno, arrasa montanhas, rectifica ilhas e as faz penínsulas, vence abismos com pontes audaciodas, reduz distâncias com aparelhos velozes, envia imagens sonoras e visuais a qualquer parte do orbe, graças aos satélites artificiais, atinge a Lua, mas prefere adiar o encontro com a consciência.

   Vã cultura! Estuda a História do passado e do presente, vaticina o futuro, arregimenta princípios de escolaridade intelectual, procede a julgamentos de vultos que foram factores lídimos da Civilização, examina estratégias bélicas e recompõe monumentos de arte, na pintura, na estatuária, na arquitectura, na arqueologia, ressuscita partituras que trazem a música dos Mundos Felizes e, no entanto, prossegue descontrolada, estiolando (i) esperanças e espalhando pessimismo, sem penetrar no imortal conceito do “Nosce te ipsum” (*), mediante o qual poderia resolver os magnos problemas da vida, pelo auto-descobrimento das virtudes e dos defeitos, desenvolvendo as primeiras e limando os segundos, em incessante labor de superação dos males acarretados pelas mesclas renascentes dos erros pretéritos, na busca da luz futura.

   Insensata Tecnologia! Invade o microcosmo e decifra milhares de enigmas que antes infelicitavam a vida organizada no mineral, no vegetal, no animal e no homem, e criavam graves desconcertos nas formas vivas, identificando germens, vírus, flora e fauna de estrutura infinitesimal, adentrando-se pelos laboratórios para proceder à elaboração de fórmulas e soluções capazes de aniquilar os focos pestilenciais (i) que fazem sucumbir o corpo, não conseguindo, porém, estancar as fontes do ódio, da inveja, da malquerença, do ciúme, do despeito, da intriga, da impiedade, da ira, do orgulho, do egoísmo – esses semens de acção corrosiva, por criarem campo de proliferação nos tecidos subtilíssimos da alma. Irrompe pelo macrocosmos e mede as estrelas, sonha com as colmeias globulares e as ilhas interplanetárias, identificando-as, classificando-as, conhecendo-as mediante os sinais de rádio, amando-as; prevê-lhes a idade, a distância em que se encontram, o envelhecer paulatino, a transformação pelo desgaste da energia em que se consomem e, até as visualiza nos movimentos célicos, em órbitas inconcebíveis, mas não utiliza as lunetas que penetram no continente do espírito, para escudar os centros de vida que gravitam em torno da nebulosa excelsa que envolve todo o Cosmo, como continente e conteúdo.

   Após quase dose mil anos de Civilização, o homem parece apetecer em ser não apenas “o lobo do homem” mas o chacal de si mesmo.

   O suicida é o imaturo desajustado na escola da vida, fugindo da consciência culpada para despertar de coração e mente estraçalhados.

   Enquanto não rutilar a fé poderosa e pura, que traduza a verdade maior do Amor no coração da Humanidade, o homem fugirá da vida para a Realidade, afogando-se nos rios da Imortalidade, sem consumir-se no aniquilamento que tanto persegue, não colimando o cobiçado objectivo.

   A ética, que na Antiguidade oriental afirmava o “espírito e negava o mundo”, renasceu no Cristianismo, oferecendo no pessimismo, em relação ao imediato, o optimismo de referência à Imortalidade, com as credenciais da esperança e da paz.

   No Espiritismo, o mais eficiente antídoto contra o suicídio – suicídio em cujo corpo sempre se encontram as fortes amarras da obsessão pertinaz, em conúbio danoso, de consequências imprevisíveis –, o optimismo no tocante à vida real e indestrutível estabelece uma ligação entre a cultura actual e as culturas pretéritas, em perfeita sintonia de ideias, dos quais a técnica e as modernas conquistas podem extrair os frutos óptimos a beneficio da Civilização contemporânea.

   Provenientes de séculos de nefasta ignorância e contínuo primitivismo do sentimento, em que a força sobrepairou à legalidade e o absolutismo do poder esteve em mãos fortes e ingratas, engendrando misérias colectivas, infindáveis, renascem aqueles que foram factótum dos males, embrulhados nos tecidos dos resgates, experimentando, entre revoltas injustificáveis, o clima de dor e sombra que produziram para si mesmos.

   Ambientados à dominação e açoitados pelas vítimas que demoram em outra vibração da vida, raramente têm o carácter capaz de suportar os impositivos evolutivos, deixando-se solapar pelo desânimo e pela acrimónia (i), que culminam no suicídio enganoso e cruel.

   Verdadeira chaga social, na velha Roma constituía honra dar a sua pela vida do Imperador e, não poucas vezes homens ilustres foram convidados ao suicídio, porque discordassem das diatribes e loucuras da sua época: Petrónio, o arbiter elegantiarum, Séneca, o filósofo, passando à imortalidade o exemplo de Sócrates, o pai da Filosofia, que vem da Grécia, condenado a beber cicuta. Todos eles, no entanto, sacrificados pela ferocidade do poder desmedido, tornaram as suas vidas alicerces para as construções da dignidade humana, que sempre soube, também, expulsar do dorso os usurpadores e criminosos.

   A liberdade humana num crescendo transformou-se em degradante libertinagem, nos dias modernos e, fez-se factor preponderante para tornar o suicídio uma solução, considerando que o desvitalizar da pujança do carácter faz que o homem seja somente o seu exterior dourado e enganoso, não as suas qualidades morais elevadas.

   Período cíclico, que representa trânsito na evolução do ser e do planeta que o agasalha, o apagar das luzes da cultura optimista sob as sombras destrutivas do pessimismo impõe que surja um claro-escuro, uma fímbria representativa do acender de novas luzes que significam a madrugada do Novo Dia, no qual o aforismo latino Veneratio vitas (**) estabelecerá novas linhas de comportamento humano e social, facultando ao homem a vitória sobre as tentações da fuga, o primitivismo das sensações – altos objectivos que devem caracterizar a própria Humanidade.

/…
(*) Conceito que se encontrava inscrito no pórtico do Santuário de Delfos, em grego: “Gnothi seauton” e que significa: “Conhece-te a ti mesmo”, estrutura moral da filosofia de Sócrates, na sua escola maiuêutica.
(**) Conceito básico da ética latina, que significa “Respeito pela vida”, em toda e qualquer manifestação.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (1 de 3) 34º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)