INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(I)
Na superlativa angústia em que se encontrava, hipnotizado
pelo ódio de Dom Giovanni, Girólamo, que oscilava na demência, entre as
alucinações e o remorso que lhe deixavam o travo do desespero, não pôde reflectir
quanto ao gesto nefando da destruição da própria vida física, permitindo-se
arrastar ao crime mais grave que o ser pode cometer contra si mesmo e a
Divindade: o autocídio.
Sem qualquer reflexão, porquanto as forças infelizes
acalentadas na mente em desalinho e no coração rebelde produzem constrição
impiedosa, que termina por vencer aqueles que as cultivam, arrojara-se desde
cedo na mais infeliz das situações, qual a que ora o surpreendia.
O suicídio revela no homem civilizado o estado aviltante a
que ele relega a existência planetária, conduzido ao supremo ódio às Leis
Divinas, por ver-se atingido pela inapelável força da evolução, cobrando ao
infractor as dívidas não resgatadas. Nesse mister, o tempo não tem qualquer
significação, importando não o período transcorrido entre o débito e o
ressarcimento mas a dívida em si mesmo.
O suicida é um espírito soberbo e calceta (i) que, na
impossibilidade de atingir o fulcro da Divindade que lhe não permite continuar
semeando destruição, alucinado pelas ambições crescentes e selvagens, se destrói,
tentando, desse modo, alcançar o Sumo Espírito da Vida. Odiento e infeliz,
arroja-se, porém, nos mais fundos despenhadeiros, cujo anteparo não consegue
encontrar, experimentando inominável dor, enquanto perduram as novas impressões
que se lhe adicionam às angústias das quais desejou fugir e que o enlouquecem,
sem roubar-lhe a consciência da própria insânia.
Os séculos de civilização, de ética e cultura não
conseguiram fazer que o instinto de autodestruição – que apenas no homem se
manifesta, já que os demais animais, não raciocinando, não se fazem vítimas do
hediondo crime – fosse dominado pela análise fria e nobre da razão. Pelo contrário:
parece que nas nações chamadas super-civilizadas, pelo abuso das faculdades que
revestem o ser, o homem se atira cada
vez mais opiado (i) no sorvedouro da autodestruição, consumido pelos excessos de
todo o porte, ensoberbecido pela técnica e amolentado pela comodidade
perniciosa.
Se anteriormente a força anunciava a presença da civilização
numa cidade, o alto índice de suicídios num povo, actualmente, revela a sua
elevada cultura. Cultura, no entanto, pervertida, sem Deus nem amor, sem vida
nem sentimento. Cultura da inteligência, com amarguras do sentimento, altas
aquisições externas sem qualquer conquista interior. Vitórias sobre as
realidades de fora e escravidão aos impositivos de dentro.
Face às concessões facultadas pela moderna tecnologia e
graças à decadência ética do mundo, favorecida pelo desgoverno e empobrecimento
da fé nas grandes massas humanas, o ser
marcha sob o azorrague (i) de mil angústias, encontrando no suicídio a porta falsa
para a equação de problemas que a ele compete resolver pelos processos da não-violência,
perseverando no dever sob o recto amparo do tempo. Impaciente, por acomodação
ao imediatismo, cujos frutos sempre colhe na árvore da oportunidade ligeira,
transforma a paisagem íntima num inferno e, entre as labaredas da inquietação
levanta a mão que converte em sicário da vida e atira-se na inditosa loucura da
morte voluntária, em busca de nada que seria o repouso eterno, numa violação
das mais graves ao Estatuto Divino.
Preferindo aceitar que o ser
humano é um acidente biológico na escala zoológica, por retirar da sua consciência
as responsabilidades para consigo mesmo o homem cultiva o orgulho, a soberba, desenvolve
a ferocidade, a rebeldia e jacta-se (i) de ser o senhor do mundo, sempre menos,
senhor de si mesmo.
Vivendo na condição predatória de explorar a mãe-Terra
quanto lhe facultam as possibilidades, faz-se ingrato, esquecendo de retribuir
todas as concessões gratuitas que usufrui sem a menor consideração: a vida física
e mental, o ar, a água refrescante, o fruto silvestre, a paisagem rica de
colorido e perfume, a maravilha do sol, a bênção da noite, a dádiva das
tempestades que lhe renovam a atmosfera… para somente pensar em si mesmo e nas
baixas expressões do prazer animalizante.
Escravo nas paredes celulares, encarcerado nas limitações do
sentimento, entorpece-se cada vez mais, até que um último grito de dor o arroja
do acume da vida – que deve sempre ser cultivada a qualquer preço de sacrifício
e sofrimento –, ao abismo em que se consumirá sem extinguir-se, enquanto
lentos, pela dor aumentada, correrão os tempos, realizando o seu abençoado
trabalho purificador.
Louca Humanidade! Conquista o mundo, transforma condições
climáticas, corrige o terreno, arrasa montanhas, rectifica ilhas e as faz penínsulas,
vence abismos com pontes audaciodas, reduz distâncias com aparelhos velozes,
envia imagens sonoras e visuais a qualquer parte do orbe, graças aos satélites
artificiais, atinge a Lua, mas prefere adiar o encontro com a consciência.
Vã cultura! Estuda a História do passado e do presente,
vaticina o futuro, arregimenta princípios de escolaridade intelectual, procede
a julgamentos de vultos que foram factores lídimos da Civilização, examina
estratégias bélicas e recompõe monumentos de arte, na pintura, na estatuária,
na arquitectura, na arqueologia, ressuscita partituras que trazem a música dos
Mundos Felizes e, no entanto, prossegue descontrolada, estiolando (i) esperanças e
espalhando pessimismo, sem penetrar no imortal conceito do “Nosce te ipsum” (*), mediante o qual poderia resolver os
magnos problemas da vida, pelo auto-descobrimento das virtudes e dos defeitos,
desenvolvendo as primeiras e limando os segundos, em incessante labor de
superação dos males acarretados pelas mesclas renascentes dos erros pretéritos,
na busca da luz futura.
Insensata Tecnologia! Invade o microcosmo e decifra milhares
de enigmas que antes infelicitavam a vida organizada no mineral, no vegetal, no
animal e no homem, e criavam graves desconcertos nas formas vivas,
identificando germens, vírus, flora e fauna de estrutura infinitesimal,
adentrando-se pelos laboratórios para proceder à elaboração de fórmulas e soluções
capazes de aniquilar os focos pestilenciais (i) que fazem sucumbir o corpo, não
conseguindo, porém, estancar as fontes do ódio, da inveja, da malquerença, do
ciúme, do despeito, da intriga, da impiedade, da ira, do orgulho, do egoísmo –
esses semens de acção corrosiva, por criarem campo de proliferação nos tecidos subtilíssimos
da alma. Irrompe pelo macrocosmos e mede as estrelas, sonha com as colmeias
globulares e as ilhas interplanetárias, identificando-as, classificando-as,
conhecendo-as mediante os sinais de rádio, amando-as; prevê-lhes a idade, a
distância em que se encontram, o envelhecer paulatino, a transformação pelo
desgaste da energia em que se consomem e, até as visualiza nos movimentos célicos,
em órbitas inconcebíveis, mas não utiliza as lunetas que penetram no continente
do espírito, para escudar os centros de vida que gravitam em torno da nebulosa
excelsa que envolve todo o Cosmo, como continente e conteúdo.
Após quase dose mil anos de Civilização, o homem parece
apetecer em ser não apenas “o lobo do homem” mas o chacal de si mesmo.
O suicida é o imaturo desajustado na escola da vida, fugindo
da consciência culpada para despertar de coração e mente estraçalhados.
Enquanto não rutilar a fé poderosa e pura, que traduza a
verdade maior do Amor no coração da Humanidade, o homem fugirá da vida para a
Realidade, afogando-se nos rios da Imortalidade, sem consumir-se no aniquilamento
que tanto persegue, não colimando o cobiçado objectivo.
A ética, que na Antiguidade oriental afirmava o “espírito e
negava o mundo”, renasceu no Cristianismo, oferecendo no pessimismo, em relação ao imediato, o optimismo de referência à Imortalidade, com as credenciais da
esperança e da paz.
No Espiritismo, o mais eficiente antídoto contra o suicídio –
suicídio em cujo corpo sempre se encontram as fortes amarras da obsessão
pertinaz, em conúbio danoso, de consequências imprevisíveis –, o optimismo no tocante à vida real e
indestrutível estabelece uma ligação entre a cultura actual e as culturas pretéritas,
em perfeita sintonia de ideias, dos quais a técnica e as modernas conquistas
podem extrair os frutos óptimos a beneficio da Civilização contemporânea.
Provenientes de séculos de nefasta ignorância e contínuo
primitivismo do sentimento, em que a força sobrepairou à legalidade e o
absolutismo do poder esteve em mãos fortes e ingratas, engendrando misérias
colectivas, infindáveis, renascem aqueles que foram factótum dos males, embrulhados
nos tecidos dos resgates, experimentando, entre revoltas injustificáveis, o
clima de dor e sombra que produziram para si mesmos.
Ambientados à dominação e açoitados pelas vítimas que
demoram em outra vibração da vida, raramente têm o carácter capaz de suportar
os impositivos evolutivos, deixando-se solapar pelo desânimo e pela acrimónia (i),
que culminam no suicídio enganoso e cruel.
Verdadeira chaga social, na velha Roma constituía honra dar
a sua pela vida do Imperador e, não poucas vezes homens ilustres foram
convidados ao suicídio, porque discordassem das diatribes e loucuras da sua época:
Petrónio, o arbiter elegantiarum, Séneca,
o filósofo, passando à imortalidade o exemplo de Sócrates, o pai da Filosofia,
que vem da Grécia, condenado a beber cicuta. Todos eles, no entanto,
sacrificados pela ferocidade do poder desmedido, tornaram as suas vidas alicerces
para as construções da dignidade humana, que sempre soube, também, expulsar do
dorso os usurpadores e criminosos.
A liberdade humana num crescendo transformou-se em
degradante libertinagem, nos dias modernos e, fez-se factor preponderante para
tornar o suicídio uma solução, considerando que o desvitalizar da pujança do
carácter faz que o homem seja somente o seu exterior dourado e enganoso, não as
suas qualidades morais elevadas.
Período cíclico, que representa trânsito na evolução do ser e do planeta que o agasalha, o
apagar das luzes da cultura optimista sob as sombras destrutivas do pessimismo
impõe que surja um claro-escuro, uma fímbria representativa do acender de novas
luzes que significam a madrugada do Novo Dia, no qual o aforismo latino Veneratio vitas (**) estabelecerá novas linhas de comportamento humano e social,
facultando ao homem a vitória sobre as tentações da fuga, o primitivismo das
sensações – altos objectivos que devem caracterizar a própria Humanidade.
/…
(*) Conceito que
se encontrava inscrito no pórtico do Santuário de Delfos, em grego: “Gnothi
seauton” e que significa: “Conhece-te a ti mesmo”, estrutura moral da filosofia
de Sócrates, na sua escola maiuêutica.
(**) Conceito
básico da ética latina, que significa “Respeito pela vida”, em toda e qualquer
manifestação.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (1 de 3) 34º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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