Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 26 de setembro de 2017

~ em torno do mestre


– A Paciência não se perde ~

"Pela paciência possuireis as vossas almas."

É muito comum ouvirmos esta exclamação: perdi a paciência! Como sabem, porém, que perderam a paciência? Porque quando precisaram daquela virtude para se manterem calmos e serenos não a encontraram consigo, e, por isso, se exasperaram, praticaram desatinos, proferiram impropérios e blasfémias?

Só pelo facto de não encontrarem no seu património moral aquela virtude, alegam logo que a perderam. Como poderiam, porém, perder o que não possuíam?

Será melhor que os homens se convençam de que eles não têm paciência, que ainda não alcançaram essa preciosa qualidade que, no dizer do Mestre insigne, é a que nos assegura a posse de nós mesmos: Pela paciência possuireis as vossas almas. E não pode haver maior conquista que a conquista própria. Já alguém disse, com justeza, que o homem que se conquistou a si mesmo vale mais que aquele que conquistou um reino. Os reinos são usurpados mediante o esforço e o sangue alheio, enquanto que a posse de si mesmo só pode advir do esforço pessoal, da porfia enérgica e perseverante da individualidade própria, agindo sobre si mesma.

Todos esses, pois, que vivem constantemente alegando que perderam a paciência, confessam involuntariamente que jamais a tiveram. Paciência não se perde como qualquer objecto de uso ou como uma soma de dinheiro. Os que ainda não lograram alcançá-la, revelam essa falha precisamente no momento em que se exasperam, em que perdem a compostura e cometem despautérios. Quando, depois, o ânimo serena, o homem diz: perdi a paciência. Não perdeu coisa nenhuma; não tenho paciência é o que lhe compete reconhecer e confessar.

Ás virtudes, esta ou aquela, fazem parte de uma certa riqueza cujo valor imperecível Jesus encarece sobremaneira no seu Evangelho, sob estas sugestivas palavras: Granjeai aquela riqueza que o ladrão não rouba, a traça não rói, o tempo não consome e a morte não arrebata. Tais bens são, por sua natureza, inacessíveis às contingências da temporalidade, e não podem, portanto, desaparecer em hipótese alguma. Constituem propriedade inalienável e legitimamente adquirida pelo Espírito, que jamais a perderá.

Não é fácil adquirirmos certas virtudes, entre as quais se encontra a paciência. A aquisição da paciência depende da aquisição de outras virtudes que lhe são correlatas, que se encontram entrelaçadas com ela numa trama perfeita. A paciência — podemos dizer — é filha da humildade e irmã da fortaleza, do valor moral. O orgulho é o seu grande inimigo. A fraqueza de Espírito é outro obstáculo à conquista daquele precioso tesouro. Todos os movimentos intempestivos, todo o acto violento, toda a atitude colérica são oriundos da susceptibilidade do nosso amor próprio exagerado. A seu turno, os desesperos, as aflições incontidas, os estados de alucinação, os impropérios e as blasfémias são consequências da fraqueza de ânimo ou debilidade moral. A calma e a serenidade de ânimo, em todas as emergências e conjunturas difíceis da vida, só podem ser conservadas mediante a fortaleza e a humildade de Espírito. É essa condição inalterável de ânimo que se denomina paciência. Ela é incontestavelmente o atestado eloquente de alto padrão moral.

Naturalmente, em épocas de calmaria, quando tudo corre ao sabor dos nossos desejos, parece que possuímos aquele preciosíssimo bem. Os homens, quando dormem, são todos bons e inocentes. É exactamente nas horas aflitivas, nos dias de amargura, quando suportamos o baptismo de fogo, que verificamos, então, a inexistência da sublime virtude connosco.

No mundo, observou o Mestre, tereis tribulações, mas tende bom ânimo: eu venci o mundo. Como ele venceu, cumpre-nos, como discípulos, imitá-lo, vencendo também. O Cristo é o modelo sublime, é o grande paradigma. Não basta conhecer os seus ensinamentos, é preciso praticá-los. Daqui a necessidade de fortificarmos o nosso Espírito, retemperando-o nos embates quotidianos como o ferreiro que, na forja, tempera o aço até que o torna maleável e ou resistente.

A existência humana é urdida de vicissitudes e de imprevistos. Tais são as condições que havemos de suportar como consequências do nosso passado. A cada dia a sua aflição — reza o Evangelho na sua empolgante sabedoria. Portanto, cumpre nos tornemos fortes para vencermos. Fomos dotados dos predicados para isso. Tudo que eu faço, asseverou o Mestre, vós também podeis fazer. Se nos é dado realizar os feitos maravilhosos do Cristo de Deus, porque permanecemos neste estado de miserabilidade moral? Simplesmente porque temos descurado a obra da nossa educação. A educação do Espírito é o problema universal.

A obra da salvação é obra de educação, nunca será demais afirmar esta tese.

A religião que o momento actual da Humanidade reclama é aquela que apela para a educação sob todos os aspectos: educação física, educação intelectual, educação cívica, educação mental, educação moral.

A fé que há de salvar o mundo é aquela que resulta desta sentença: Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito.


– A Felicidade

Existe a felicidade? Será ficção ou realidade? Se não existe, porque tem sido essa a aspiração de todas as gerações através dos séculos e dos milénios? Já não seria tempo de o homem se desiludir? Se existe, porque não a encontram os que a buscam com tanto empenho?

Que nos responda o poeta:

"A felicidade está onde nós a pomos; e nunca a pomos onde nós estamos".

Eis a questão. A felicidade é um facto desde que a procuremos onde realmente ela está, isto é, em nós mesmos.

O desapontamento de muitos com relação à felicidade, desapontamento que tem gerado incredulidade e pessimismo, origina-se de a terem procurado no exterior, onde ela não está; origina-se ainda de a suporem dependendo de condições e circunstâncias externas, quando todo o seu segredo está no nosso foro íntimo, no labirinto dos refolhos do nosso ser.

O problema da felicidade é de natureza espiritual. Circunscrito à esfera puramente material, jamais o homem o resolverá. O anseio de felicidade que todos sentimos vem do Espírito, são protestos de uma voz interior.

O erro está em querermos atender a esses apelos por meio das sensações da carne e da gratificação dos sentidos. Daí a insaciabilidade, daí a eterna ilusão! O fracasso vem da maneira como pretendemos acudir ao clamor do Espírito. Ao rufiar das asas, respondemos com o escarvar das patas.

A ideia de felicidade é tão real como a da imortalidade: aquela, porém, como esta, diz respeito à alma, não ao corpo. Ao Espírito cumpre alcançar a felicidade que está, como a imortalidade, em si mesmo, na trama da própria vida, dessa vida que não começa no berço nem termina no túmulo.

A felicidade, neste mundo onde tudo é relativo, não exclui o sofrimento. Mesmo na dor, a felicidade legítima permanece actuante como lenitivo.

De outra sorte, sofrermos durante certo tempo e vermo-nos, depois, livres do sofrimento, já não será felicidade? O doente que recupera a saúde e o prisioneiro que alcança a liberdade já não se sentem, por isso, felizes? A saudade que nos mortifica, não se transforma em gozo quando, novamente, sentimos palpitar, bem junto ao nosso, o coração amado?

Não é bom sofrer para gozar? É assim que, muitas vezes, a felicidade surge da própria dor como a aurora irrompe da noite tenebrosa.

O descanso é um prazer após o trabalho; sem este, que significação tem aquele? Assim a felicidade. Ela representa o fruto de muitos labores, de muitas porfias e de acuradas lutas. Vencer é alcançar a felicidade. Podemos, por acaso, conceber a vitória sem as refregas? Quanto mais árdua é a peleja, maior será a vitória, mais saborosos os seus frutos, mais viçosos os seus louros.

Para a felicidade fomos todos criados. "Quero que o meu gozo esteja em vós, e que o vosso gozo seja completo." As graças divinas estão em nós, mas não as percebemos. A vida animalizada que levamos ofusca o brilho da luz íntima que somos nós mesmos. Vivemos como que perdidos, insulados, ignorando-nos a nós próprios. Encontrarmo-nos e nos reconhecermos como realmente somos — eis a felicidade. Fugirmos da espiritualidade é fugirmos de nós mesmos. Querendo fruir prazeres sensuais, adulteramos a nossa natureza íntima, resvalando para o abismo da irracionalidade. Desse desvirtuamento vem a dor, dor que nos chama à realidade da vida e nos conduz à felicidade.

A alegria de viver é a consequência natural de um certo estado de alma, e significa viver profundamente.

"Eu vim para terdes vida e vida em abundância". A verdadeira vida é sempre cheia de alegria; é um dia sem declínio, um sol sem ocaso. O céu é a região da luz perpétua. A ele não iremos pela estrada ensombrada de tristezas, luto e melancolia. O caminho que conduz à felicidade, resolvendo os problemas da vida, é estreito: não é escuro, nem sombrio. Estreito, no caso, significa difícil, mas não lúgubre.

A alegria de viver nasce do optimismo, o optimismo nasce da fé. Sem fé ninguém pode ser feliz. Sem fé e sem amor não há felicidade.

As virtudes são as suas ajudas. Haverá felicidade maior que nos sentirmos viver no coração de outrem? "Pai, quero que eles (os discípulos) sejam um em mim, como eu sou um contigo." A fusão de nossa vida em outra vida é a máxima expressão da ventura. O egoísmo é o seu grande inimigo. Alijá-lo de nós é dar o primeiro passo na senda da felicidade.

Sendo a felicidade resultante de uma série de conquistas, é, por isso mesmo, obra de educação. Através da auto-educação de nosso Espírito, lograremos paulatinamente a felicidade verdadeira. O reino de Deus — que é o do amor, da justiça e da liberdade — está dentro de nós, disse Jesus com o peso de sua autoridade. Descobri-lo, torná-lo efectivo, firmar em nós o império desse reino, vencendo os obstáculos e os embaraços que se lhe opõem — tal é a felicidade.

Para finalizar, concedamos a palavra a Léon Denis, o grande apóstolo da Nova Revelação:

Como a educação da alma é o senso da vida, importa resumir os seus preceitos em palavras: Aumentar tudo quanto for intelectual e elevado. Lutar, combater, sofrer pelo bem dos homens e dos mundos. Iniciar os seus semelhantes nos esplendores do verdadeiro e do belo. Amar a verdade e a justiça praticar para com todos a caridade, a benevolência tal é o segredo da FELICIDADE, tal é o Dever, tal é a Religião que o Cristo legou à Humanidade.

/...

" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. "
                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Paciência não se perde / Felicidade, 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Hippolyte Léon Denisard Rivail

~ O Espiritismo entre os Druidas ~

Há cerca de dez anos, sob o título Le vieux neuf (*), publicou o Sr. Édouard Fournier (i), no Le Siècle (i), uma série de artigos tão notáveis do ponto de vista da erudição, quanto interessantes pelas suas relações históricas. Passando em revista todas as invenções e descobertas modernas, prova o autor que se o nosso século tem o mérito da aplicação e do desenvolvimento, não tem, pelo menos para a maioria delas, o da prioridade. À época em que o Sr. Édouard Fournier escrevia estes eruditos folhetins (i) não se cogitava (i) ainda de Espíritos, sem o que não teria deixado de nos mostrar que tudo quanto se passa hoje é apenas uma repetição do que os Antigos sabiam muito bem, e talvez melhor que nós. E, o que lastimamos por nossa conta, porque as suas profundas investigações ter-lhe-iam permitido esquadrinhar a Antiguidade mística, como perscrutou a Antiguidade industrial; donde, fazemos votos para que as suas laboriosas pesquisas sejam dirigidas um dia para esse lado. Quanto a nós, não nos deixam as nossas observações pessoais nenhuma dúvida sobre a antiguidade e a universalidade da Doutrina que os Espíritos nos ensinam. Essa coincidência, entre o que nos dizem hoje e as crenças dos tempos mais remotos, é um facto significativo da mais alta importância. Faremos notar, entretanto, que, se por toda a parte encontramos traços da Doutrina Espírita, em parte nenhuma a vemos completa: tudo indica, ter sido reservado à nossa época coordenar esses fragmentos esparsos entre todos os povos, a fim de se chegar à unidade de princípio através de um conjunto mais completo e, sobretudo, mais geral de manifestações, que dariam razão ao autor do artigo que citamos acima, a propósito do período psicológico no qual a Humanidade parece estar a entrar.

Quase por toda a parte a ignorância e os preconceitos desfiguraram esta doutrina, cujos princípios fundamentais se misturam às práticas supersticiosas de todos os tempos, exploradas para abafar a razão. Todavia, sob esse amontoado de absurdos germinam as mais sublimes ideias, como sementes preciosas ocultas debaixo de silvado, não esperando senão a luz vivificante do sol para se desenvolverem. Mais universalmente esclarecida, a nossa geração afasta a moita de silvas; tal limpeza de terreno, porém, não pode ser feita sem transição. Deixemos, pois, às boas sementes o tempo de se desenvolverem e, às ervas daninhas, o de desaparecerem.

A doutrina druídica oferece-nos um curioso exemplo do que acabamos de dizer. Essa doutrina, de que não conhecemos bem senão as práticas exteriores, eleva-se, sob certos aspectos, até às mais sublimes verdades; mas essas verdades eram apenas para os iniciados: terrificado pelos sacrifícios sangrentos, o povo colhia com santo respeito o visgo sagrado do carvalho e via apenas a fantasmagoria. Poderemos julgá-lo pela citação seguinte, extraída de um documento tão precioso quão desconhecido, e que lança uma luz inteiramente nova sobre a teologia dos nossos ancestrais.

 “Entregamos à reflexão dos nossos leitores um texto céltico, há pouco tempo publicado, cujo aparecimento causou uma certa emoção no mundo culto. É impossível saber-se ao certo o seu autor, nem mesmo a que século remonta. Mas o que é incontestável é que pertence à tradição dos bardos da Gália, e essa origem é suficiente para lhe conferir um valor de primeira ordem.

“Sabe-se, com efeito, que ainda nos nossos dias a Gália se constitui no mais fiel abrigo da nacionalidade gaulesa que, entre nós, experimentou tão profundas modificações. Apenas abordada ao de leve pela dominação romana, que nela só se deteve por pouco tempo e fracamente; preservada da invasão dos bárbaros pela energia dos seus habitantes e pelas dificuldades do seu território; submetida mais tarde à dinastia normanda que, todavia, teve que lhe conceder um certo grau de independência, o nome de Galles, Gallia, que sempre ostentou, é um traço distintivo pelo qual se liga, sem descontinuidade, ao período antigo. A língua kymrique (**), outrora falada em toda a parte setentrional da Gália, nunca deixou de ser usada, e muitos costumes são igualmente gauleses. De todas as influências estranhas, a única que triunfou completamente foi o Cristianismo; mas não o conseguiu sem muitas dificuldades, relativamente à supremacia da Igreja Romana, da qual a reforma do século XVI mais não fez que determinar-lhe a queda, desde longo tempo preparada, nessas regiões cheias de um sentimento indefectível de independência.

“Pode mesmo dizer-se que os druidas, convertendo-se inteiramente ao Cristianismo, não se extinguiram totalmente na Gália, como na nossa Bretanha e em outras regiões de sangue gaulês. Como consequência imediata, tiveram uma sociedade muito solidamente constituída, dedicada em aparência sobretudo ao culto da poesia nacional, mas que, sob o manto poético, conservou com notável fidelidade a herança intelectual da antiga Gália: é a Sociedade bárdica da Gália que, após se ter mantido como sociedade secreta durante toda a Idade Média, por uma transmissão oral de seus monumentos literários e de sua doutrina, à imitação da prática dos druidas, decidiu, por volta dos séculos XVI e XVII, confiar à escrita as partes mais essenciais dessa herança. Desse fundamento, cuja autenticidade é atestada por uma cadeia tradicional ininterrupta, procede o texto de que falamos; e o seu valor, dadas essas circunstâncias, não depende, como se vê, nem da mão que teve o mérito de o escrever, nem da época em que a sua redacção pôde adquirir a sua última forma. O que nele transpira, acima de tudo, é o espírito dos bardos da Idade Média, eles mesmos os últimos discípulos dessa corporação sábia e religiosa que, sob o nome de druidas, dominou a Gália durante o primeiro período de sua história, mais ou menos do mesmo modo que o fez o clero latino na Idade Média.

“Mesmo que estivéssemos privados de toda a luz sobre a origem do texto de que se trata, estaríamos claramente no caminho certo, tendo em vista a sua concordância com os ensinamentos que os autores gregos e latinos nos deixaram, relativamente à doutrina religiosa dos druidas. Constitui-se esse acordo de pontos de solidariedade que não permitem nenhuma dúvida, porque se apoiam em razões tiradas da própria substância de tais escritos; e a solidariedade, assim demonstrada pelos escritos capitais, os únicos de que nos falaram os Antigos, estende-se naturalmente aos desenvolvimentos secundários. Com efeito, esses desenvolvimentos, penetrados do mesmo espírito, derivam necessariamente da mesma fonte; fazem corpo com o fundo e não podem explicar-se senão por ele. E, ao mesmo tempo em que remontam, por uma origem tão lógica, aos depositários primitivos da religião druídica, é impossível assinalar-lhes algum outro ponto de partida; porque, fora da influência druídica, a região de onde provêm só conheceu a influência cristã, totalmente estranha a tais doutrinas.

“Os desenvolvimentos contidos nas tríades estão de tal modo fora do Cristianismo que as raras influências cristãs, que resvalam aqui e ali no seu conjunto, se distinguem do fundo primitivo logo à primeira vista. Essas emanações, oriundas ingenuamente da consciência dos bardos cristãos, bem podiam, se assim podemos dizer, intercalar-se nos interstícios da tradição, mas nela não puderam fundir-se. A análise do texto é, pois, tão simples quanto rigorosa, visto que pode reduzir-se a pôr de lado tudo o que traz o sinete do Cristianismo e, uma vez operada a triagem, considerar como de origem druídica tudo quanto fica visivelmente caracterizado por uma religião diferente da do Evangelho e dos concílios. Assim, para citar apenas o essencial, e partindo do princípio tão conhecido de que o dogma da caridade em Deus e no homem é tão especial ao Cristianismo quanto o é o da transmigração das almas ao antigo druidismo, um certo número de tríades, nas quais respira um espírito de amor jamais conhecido na Gália primitiva, traem-se imediatamente como marcas de um carácter comparativamente moderno; enquanto que as outras, animadas por um sopro totalmente diferente, deixam ver ainda melhor a chancela da alta antiguidade que as distingue.

“Enfim, não é inútil observar que a própria forma do ensinamento contido nas tríades é de origem druídica. Sabe-se que os druidas tinham uma predilecção particular pelo número três e o empregavam de modo especial, como no-lo mostra a maioria dos monumentos gauleses, para a transmissão de suas lições que, mediante essa forma precisa, se gravavam mais facilmente na memória. Diógenes Laércio conservou-nos uma dessas tríades, que resume sucintamente o conjunto dos deveres do homem para com a Divindade, para com os seus semelhantes e para consigo mesmo: ‘Honrar os seres superiores, não cometer injustiça e cultivar em si a virtude viril.’ A literatura dos bardos propagou, até nós, uma multidão de aforismos do mesmo género, interessando a todos os ramos do saber humano: ciência, história, moral, direito, poesia. Não os há mais interessantes, nem mais próprios a inspirar grandes reflexões do que aqueles que publicamos aqui, segundo a tradução que foi feita pelo Sr. Adolphe Pictet.

“Dessa série de tríades, as onze primeiras são consagradas à exposição dos atributos característicos da Divindade.

É nessa secção que as influências cristãs, como já era de prever, tiveram mais acção. Se não se pode negar ao druidismo o conhecimento do princípio da unidade de Deus, é possível que, em consequência de sua predilecção pelo número ternário, tivesse concebido vagamente alguma coisa da divina trindade. Todavia, é incontestável que o que completa essa elevada concepção teológica, qual seja, a distinção das pessoas e particularmente da terceira, pôde permanecer perfeitamente estranho a essa antiga religião. Tudo leva a crer que os seus sectários estavam muito mais preocupados em estabelecer a liberdade do homem, do que em instituir a caridade; e foi mesmo em consequência dessa falsa posição do seu ponto de partida que ela pereceu. Também parece lógico associar a uma influência cristã, mais ou menos determinada, todo esse começo, particularmente a partir da quinta tríade.

“Em seguida aos princípios gerais relativos à natureza de Deus, passa o texto a expor a constituição do Universo. O conjunto dessa constituição é formulado superiormente em três tríades que, ao mostrarem os seres particulares em uma ordem absolutamente diferente da de Deus, completam a ideia que se deve formar do Ser único e imutável. Sob fórmulas mais explícitas, essas tríades não fazem, afinal, senão reproduzir o que já se sabia, pelo testemunho dos Antigos, da doutrina da transmigração das almas, passando alternativamente da vida à morte e da morte à vida. Pode-se considerá-las como o comentário de um célebre verso da Phrasale, no qual o poeta exclama, dirigindo-se aos sacerdotes da Gália, que, se aquilo que ensinam é verdade, a morte é apenas o meio de uma longa vida: Longae vitae mors media est.

/…
(*) N. do T.: O velho novo. (**) N. do T.: Grifo nosso.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, La Revue Spirite, O Espiritismo entre os Druidas, Jornal de Estudos Psicológicos de Abril de 1858, 1º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)