Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo III 

Marx e Kardec 
(I de II) 

Karl Marx e Allan Kardec encarnam, nos tempos actuais, as duas grandes inquietudes do pensamento: o fenómeno social e o fenómeno espiritual. Marx traçou uma imagem do homem em desacordo com a realidade espiritual. Entretanto, no campo social, expressou verdades que, postas em prática, dariam solução à mais renhida luta de classes que, actualmente, no seu conjunto, chamamos capitalismo e comunismo. 

Marx viu o homem como um composto físico-químico, isto é, como um organismo material, governado e conduzido pelos modos de produçãoKardec, pelo contrário, compreendeu o homem como um espírito encarnado num corpo físico, para demonstrar a sua evolução e a sua realidade espiritual. Mas o homem de Marx e o homem de Kardec, iguais entre si quanto ao aspecto material e diferentes na sua realidade espiritual, constituem agora uma pessoa humana ou entidade existencial, com novos direitos e iguais deveres, diante dos progressos da sociedade moderna. 

Nessa pessoa existencial e humana, onde cabem tanto o homem marxista como o homem kardecista, devemos procurar a verdadeira filosofia Social. Nela se encontram os elementos indispensáveis para estabelecermos uma relação entre o problema social e o problema espiritual. Entretanto, Marx nos mostrou um homem melhor que o homem velho dependente do regime capitalista. O homem de Marx é um ser liberto da exploração económica, mas sem perspectivas metafísicas. As suas dimensões espirituais estão sujeitas ao terrestre, o que vale dizer que desaparecem com o corpo. Disso resulta ser o homem de Marx um Ser incapaz de satisfazer o anseio de imortalidade que o Espírito leva no seu íntimo. 

Marx, com efeito, legou-nos um homem sem espírito. Não obstante, exigiu-lhe mais do que podia dar. Esqueceu-se de que um homem chamado a efectuar a transformação do mundo, em todos os seus aspectos, não deveria morrercomo sustenta a desoladora teoria do materialismo histórico, sobre a qual fundamentou todo o seu sistema social. Como se verá, o homem de Marx morre para sempre, depois de se sacrificar pela instituição de um mundo melhor. É um tipo de homem que não tem vinculações palingenésicas com o processo histórico: nasce e morre sem saber qual o sentido do drama do planeta. 

Apesar do erro no tocante ao Ser do homem, Marx teve acertos extraordinários ao julgar o regime capitalista e com ele a “exploração do homem pelo homem”. O seu génio demonstrou à inteligência humana que o sistema de propriedade privada está obrigado a se transformar em sistema de propriedade colectiva. Fez ver à humanidade que o socialismo, ou regime de propriedade colectiva, corresponde a um novo sentido da vida e, assim o admite a doutrina social espírita, considerando-o como um avanço para o verdadeiro advento do cristianismo. Porque no dia em que a sociedade cristã for uma realidade, ela estará assente sobre as bases da propriedade colectiva. Vejamos o que diz o Evangelho: “Em verdade vos digo que um rico — ensinava Jesus aos seus discípulos, — dificilmente entrará no Reino dos Céus. em verdade vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mateus XIX, 23-24). 

homem velho, que geralmente está representado no rico de que falava o Nazarenoé o que resiste à evolução do sistema social e, deverá ler e meditar profundamente este ensinamento do Divino Mestre. Porque são os ricos e poderosos, mesmo sendo cristãos, os menos concordes com a essência revolucionária do cristianismo. Recordemos o seguinte ensinamento evangélico: “Certa vez, um jovem rico perguntou a Jesus o que deveria fazer para conquistar a vida eterna e, o Mestre lhe respondeu: Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e, terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Ouvindo o jovem estas palavras, retirou-se triste, porque tinha muitos haveres”. (Mateus XIX, 21-22). 

Esta a razão pela qual o cristianismo nunca poderá ser a doutrina ou a religião dos ricos, potentados, latifundiários e poderosos. O cristianismotal como o interpreta a sociologia espírita, é uma ideia que jamais se acomodará com os interesses das classes poderosas, nem com a exploração dos humildes e o luxo desmedido dos endinheirados. 

O cristianismo possui em si mesmo tudo o que Marx atribuiu (por culpa dos próprios cristãos) ao socialismo de tipo materialista. No dia em que o cristianismo se dedicar totalmente à organização social do mundo, a própria revolução comunista, tão temida na actualidade, aparecerá como um acontecimento insignificante e sem transcendência. 

A comunhão de bens ou propriedade colectiva, antes do socialismo, pertenceu ao cristianismo, como sistema social. Nos Actos dos Apóstolos lê-se o seguinte: “E todos os que acreditavam estavam juntos; e tinham todas as coisas em comum (11-44). E não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam herdades e casas vendiam-nas e depunham o valor aos pés dos apóstolos, para ser distribuído a cada um, segundo as suas necessidades.” (IV-34-35)

Esta doutrina do cristianismo primitivo mostra-nos que a ideia de propriedade colectiva, principal instrumento do socialismo moderno, já era praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a cristandade deverá renovar a presente estrutura social, aplicando o ideal económico ensinado por Jesus e os seus apóstolos e, evitando assim a implantação de um conceito materialista do homem e da sociedade. 

Marx esboçou um indivíduo sem vinculações com o espiritual e o eterno. Acreditou que o Espírito constituía um embaraço para o advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filósofo como o religioso aplacavam as reivindicações dos oprimidos, falando-lhes de uma felicidade ultraterrena. Deste modo, o poderoso se livrava das reclamações de servos e servidores, hoje trabalhadores e obreiros em geral. 

O autor de O Capital, conhecedor deste jogo, desliga-se do Espírito e atém-se unicamente à realidade objectiva das coisas. Concebe por isso um homem material, cujo destino termina com a sua morte física. Sente repulsa pelo espiritual e metafísico, porquanto a oligarquia e a opressão de todos os tempos têm submetido os homens, prometendo-lhes recompensas no além. 

Daí o homem marxista estar desvinculado de todo o conceito espiritual e religioso. Marx acreditava que a verdade jamais escraviza o homem, mas o eleva e melhora nas condições da vida social. Viu, entretanto, que a verdade espiritual praticada por cristãos, clérigos, sociólogos e filósofos, até meados do século 19, era uma verdade espiritual que exaltava os poderosos e lhes submetia os humildes e deserdados, isto é, a todos os que seguiam Jesus. O cristianismo eclesiástico, que não é o cristianismo do Espírito de Verdade, hoje proclamado pela Terceira Revelaçãoprestou-se a esse jogo aviltante, que consistia em sufocar toda a ideia de rebeldia entre os explorados. E Marx, por essa razão, negou aquela verdade espiritual, chegando à conclusão de que a única realidade se encontra no mundo físico e na vida material do homem. Terminou sustentando que a verdade sempre libertará os indivíduos e, que toda a ideia religiosa, que tratasse de subjugá-los com promessas ultraterrenas, representaria uma falsa verdade ou um argumento das forças reaccionárias, para impedir a justiça social e a democracia. 

Hoje, é reconhecida a razão de Marx, no que respeita ao socialismo, mas quanto à interpretação materialista do homem e da história, como se vem a comprovar, Marx permanece num plano de absoluto equívoco. É este o motivo que dá argumentos aos misoneístas para combaterem Marx, não tanto com o fim de refutar a sua ideologia materialista, mas para defender o regime capitalista, onde os seus instintos possessivos possam continuar a obra de avareza e de egoísmo. 

Se Marx nos legou uma falsa imagem do homem, foi devido ao procedimento moral, que já assinalamos, dos que se chamaram espiritualistas e cristãos e, que em vez de estarem com a mensagem de Cristo e, consequentemente com os pobres, despojados e explorados, estiveram com os poderosos e os afortunados. No nosso tempo, continua ainda este jogo de religiosos, espiritualistas e cristãos, que se protegem sob o poder estatal para defender os seus interesses de classe afortunada. Esta atitude dos poderosos frente aos humildes destrói, a cada momento, na vida dos povos, a ideia de Deus e do Espírito, ao ponto de serem consideradas inexistentes e, repetindo o que dizia Marx, se continua a considerá-las como instrumentos mentais para aplacar os anseios de justiça. 

Mas se o homem marxista é um erro no seu aspecto espiritual e, uma verdade na sua face social, o homem kardecista é uma verdade integral: o homem de Kardec é verdadeiro tanto no espiritual como no social. Estes mundos, na concepção espírita, não se excluem entre si, segundo afirma a mentalidade religioso-materialista. Para Kardec, estes dois mundos estão representados por dois elementos: o material e o espiritual, que deverão unir-se para revelar uma única realidade: a da vida universal. 

Kardec nos assinala que esses elementos, o material e o espiritual, constituem as duas realidades através das quais deverá passar o Espírito do homem. Esta concepção confirma-nos que a justiça social e a justiça espiritual deverão desenvolver-se de forma paralela, já que tanto o processo visível como o invisível do homem e da história contribuem para o processo que conduz ao amor e à fraternidade sociais. Isso nos mostra que o mundo material e o mundo espiritual se relacionam mutuamente e, que o desenvolvimento histórico se efectua mediante estas relações materiais e espirituais, ao lado do desenvolvimento da forma e da vida. 

/... 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, PRIMEIRA PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III, MARX E KARDEC (I de II) / 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (imagem parcial) uma pintura de Salvador Dali, 1936)

domingo, 6 de dezembro de 2020

Deus na Natureza ~


 ~ a 
origem dos seres ~ 
(III de III) 

  “O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o aprovisionou de vestuário para o preservar das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, nem em força com o touro selvagem e, foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que os outros animais para alimentar-se de ervas e de frutos que a Natureza espontaneamente oferecia e foi essa faculdade admirável que o ensinou a governar e a adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento quando e onde quisesse. 

  “Desde o momento em que se utilizou da primeira pele para a sua indumentária, da primeira lança na caça, da primeira semente no plantio, da primeira vara na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não teve semelhança em qualquer fase da história do mundo, uma vez que um ser existia guarnecido para as mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, possuía pois os meios para controlá-la, para regular-lhe as actividades e, podendo manter-se em harmonia com ela, não lhe modificando a sua forma corporal, porém, aperfeiçoando-lhe o espírito.” 

  É nisso, tão-só, que vemos a verdadeira grandeza e dignidade do homem. (ii) 

  O homem ocupa um grau anatomicamente superior, ao em que assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hilaire em polémica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, estabelecida por Linnaeus no século passado. Cabe dizer que aqui falamos do ponto de vista anatómico, unicamente. Qualquer outro raciocínio invalidaria estas classificações. Somos, porém, de opinião que quando versamos anatomia, temos de fazer anatomia. 

  No capítulo seguinte, teremos oportunidade de prosseguir na comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro. 

  O lugar geológico do homem remonta à origem da nossa espécie a época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte tricorne, o elefante primigéneo, o mamute, a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida e que atesta a presença do homem, é muito posterior à fauna e à flora actuais. Entretanto, verifica-se não existirem já, nos nossos dias, umas tantas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos recifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nas redondezas de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropóides. Hoje ninguém contesta que a existência do homem seja anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária. 

  O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia e, em parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria já não elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objectos moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longo tacteamento. 

  A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze. 

  As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac (i) são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas. 

  Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e do baixo Egipto, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimónias esplêndidas, um estilo singular de arquitectura e inscrições, barragens dos rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucasiana, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível para ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.” 

  Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Ao demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e o Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do tempo necessário para formar o delta do Mississipi é de cem mil anos. 

  O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a cinco metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinquenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é um número exagerado, no nosso entender). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representam cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos. 

  A Arqueologia concorda com os historiadores e os poetas da antiguidade, quais HeródotoDiodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predilecção pelas cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos passados, mergulha na noite profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem. 

  Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, até que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fosse permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteligência nos seus primórdios se esforçava por desprender das possantes constrições da matéria. 

  Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo e, mesmo sem propósito. Constatamos os factos e a nossa ignorância, com sincera franqueza, persuadidos de que não se podendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afectar a causa do Ser supremo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta. 

  A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Charles Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a da sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que agora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao contrário da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras outras provas, de perfeição artística e científica, que o nosso século XIX ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades quiçá à concepção dos matemáticos vivos.” 

  Esta explicação física da origem das espécies não arrebata o ceptro das mãos do Governador do mundo. Já assinalamos acima a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as consequências imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos. Charles Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte declaração do geólogo Asa Grey, em que este evidencia claramente que a doutrina da variação e da selecção natural não tende a destruir os alicerces da Teologia natural e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer dos sãos princípios da História Natural. 

  “Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as operações da Natureza ocorrem, simplesmente, em virtude de forças comunicadas desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha havido, de tempos a tempos e, somente de tempos a tempos, uma intervenção da Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças produzidas resultem da acção metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e criadora. 

  “Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um género, não se possa explicar senão por acto directo de uma causa criadora, podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão dos fenómenos naturais podem não ser mais do que a aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de factos pode explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e, consequentemente, de um arquitecto.” 

  Parece-nos, com efeito, que a obstinação nada de mais tem a ganhar com esta hipótese do que com qualquer outra teoria natural. 

  Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da gravitação e grande número de outras descobertas foram consideradas de subversivas da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teólogos sobressaltados? 

  Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese da intermissão na Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos mamíferos superiores convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao contrário, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-nos o quadro de predominância crescente do espírito sobre a matéria. 

  Temos sido assaz prolixos em encarar as relações do homem com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as envolve. É que acreditamos, com Pascal; essas comparações sempre têm algum valor. 

  “É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir a sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é deixá-lo na ignorância de ambas.” 

  Ainda que o problema da antiguidade e a origem da espécie humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso deixa de se averiguar que a Humanidade procede de época muito mais remota do que se pode crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos antepassados fossem inferiores a nós e que o progresso se manifestou na Humanidade tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença na ancianidade do homem e, mesmo na sua origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode esta hipótese destruir a acção divina? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente de átomos, directora de todos os movimentos? Particularmente, na teoria da selecção natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana? 

  Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre, o efeito da vida e a vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência activa à lei intelectual do progresso? 

  Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções que lhes incumbe executar, bem como da construção homogénea de cada espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos domínios da destinação dos seres e das coisas. O nosso quarto livro objectivará este vasto problema. 

  Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada ser, que dispõe a matéria organizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos os pontos dos nossos adversários. Eles já não sustentam a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que apenas substituem a ideia da força. Esperamos que esses inconsequentes negadores fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente (*), visto que para eles as radicais força e vida eram sinónimos. O filósofo de Stagira já tinha sustentado que – “a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”. 

  Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência, para ficar abaixo dos Gregos. 

/… 
(*) Dos conceitos da harmonia das esferas dos gregos... à avaliação de Dominique Proust, astrofísico e organista... Adenda desta publicação.
(ii) Grandes homens contemporâneos não compartilham destas ideias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine (i), a quem propusemos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade actual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de consistir na sua inteligência progressiva. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (III de III), 24º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon