Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo III 

Marx e Kardec 
(I de II) 

Karl Marx e Allan Kardec encarnam, nos tempos actuais, as duas grandes inquietudes do pensamento: o fenómeno social e o fenómeno espiritual. Marx traçou uma imagem do homem em desacordo com a realidade espiritual. Entretanto, no campo social, expressou verdades que, postas em prática, dariam solução à mais renhida luta de classes que, actualmente, no seu conjunto, chamamos capitalismo e comunismo. 

Marx viu o homem como um composto físico-químico, isto é, como um organismo material, governado e conduzido pelos modos de produçãoKardec, pelo contrário, compreendeu o homem como um espírito encarnado num corpo físico, para demonstrar a sua evolução e a sua realidade espiritual. Mas o homem de Marx e o homem de Kardec, iguais entre si quanto ao aspecto material e diferentes na sua realidade espiritual, constituem agora uma pessoa humana ou entidade existencial, com novos direitos e iguais deveres, diante dos progressos da sociedade moderna. 

Nessa pessoa existencial e humana, onde cabem tanto o homem marxista como o homem kardecista, devemos procurar a verdadeira filosofia Social. Nela se encontram os elementos indispensáveis para estabelecermos uma relação entre o problema social e o problema espiritual. Entretanto, Marx nos mostrou um homem melhor que o homem velho dependente do regime capitalista. O homem de Marx é um ser liberto da exploração económica, mas sem perspectivas metafísicas. As suas dimensões espirituais estão sujeitas ao terrestre, o que vale dizer que desaparecem com o corpo. Disso resulta ser o homem de Marx um Ser incapaz de satisfazer o anseio de imortalidade que o Espírito leva no seu íntimo. 

Marx, com efeito, legou-nos um homem sem espírito. Não obstante, exigiu-lhe mais do que podia dar. Esqueceu-se de que um homem chamado a efectuar a transformação do mundo, em todos os seus aspectos, não deveria morrercomo sustenta a desoladora teoria do materialismo histórico, sobre a qual fundamentou todo o seu sistema social. Como se verá, o homem de Marx morre para sempre, depois de se sacrificar pela instituição de um mundo melhor. É um tipo de homem que não tem vinculações palingenésicas com o processo histórico: nasce e morre sem saber qual o sentido do drama do planeta. 

Apesar do erro no tocante ao Ser do homem, Marx teve acertos extraordinários ao julgar o regime capitalista e com ele a “exploração do homem pelo homem”. O seu génio demonstrou à inteligência humana que o sistema de propriedade privada está obrigado a se transformar em sistema de propriedade colectiva. Fez ver à humanidade que o socialismo, ou regime de propriedade colectiva, corresponde a um novo sentido da vida e, assim o admite a doutrina social espírita, considerando-o como um avanço para o verdadeiro advento do cristianismo. Porque no dia em que a sociedade cristã for uma realidade, ela estará assente sobre as bases da propriedade colectiva. Vejamos o que diz o Evangelho: “Em verdade vos digo que um rico — ensinava Jesus aos seus discípulos, — dificilmente entrará no Reino dos Céus. em verdade vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mateus XIX, 23-24). 

homem velho, que geralmente está representado no rico de que falava o Nazarenoé o que resiste à evolução do sistema social e, deverá ler e meditar profundamente este ensinamento do Divino Mestre. Porque são os ricos e poderosos, mesmo sendo cristãos, os menos concordes com a essência revolucionária do cristianismo. Recordemos o seguinte ensinamento evangélico: “Certa vez, um jovem rico perguntou a Jesus o que deveria fazer para conquistar a vida eterna e, o Mestre lhe respondeu: Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e, terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Ouvindo o jovem estas palavras, retirou-se triste, porque tinha muitos haveres”. (Mateus XIX, 21-22). 

Esta a razão pela qual o cristianismo nunca poderá ser a doutrina ou a religião dos ricos, potentados, latifundiários e poderosos. O cristianismotal como o interpreta a sociologia espírita, é uma ideia que jamais se acomodará com os interesses das classes poderosas, nem com a exploração dos humildes e o luxo desmedido dos endinheirados. 

O cristianismo possui em si mesmo tudo o que Marx atribuiu (por culpa dos próprios cristãos) ao socialismo de tipo materialista. No dia em que o cristianismo se dedicar totalmente à organização social do mundo, a própria revolução comunista, tão temida na actualidade, aparecerá como um acontecimento insignificante e sem transcendência. 

A comunhão de bens ou propriedade colectiva, antes do socialismo, pertenceu ao cristianismo, como sistema social. Nos Actos dos Apóstolos lê-se o seguinte: “E todos os que acreditavam estavam juntos; e tinham todas as coisas em comum (11-44). E não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam herdades e casas vendiam-nas e depunham o valor aos pés dos apóstolos, para ser distribuído a cada um, segundo as suas necessidades.” (IV-34-35)

Esta doutrina do cristianismo primitivo mostra-nos que a ideia de propriedade colectiva, principal instrumento do socialismo moderno, já era praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a cristandade deverá renovar a presente estrutura social, aplicando o ideal económico ensinado por Jesus e os seus apóstolos e, evitando assim a implantação de um conceito materialista do homem e da sociedade. 

Marx esboçou um indivíduo sem vinculações com o espiritual e o eterno. Acreditou que o Espírito constituía um embaraço para o advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filósofo como o religioso aplacavam as reivindicações dos oprimidos, falando-lhes de uma felicidade ultraterrena. Deste modo, o poderoso se livrava das reclamações de servos e servidores, hoje trabalhadores e obreiros em geral. 

O autor de O Capital, conhecedor deste jogo, desliga-se do Espírito e atém-se unicamente à realidade objectiva das coisas. Concebe por isso um homem material, cujo destino termina com a sua morte física. Sente repulsa pelo espiritual e metafísico, porquanto a oligarquia e a opressão de todos os tempos têm submetido os homens, prometendo-lhes recompensas no além. 

Daí o homem marxista estar desvinculado de todo o conceito espiritual e religioso. Marx acreditava que a verdade jamais escraviza o homem, mas o eleva e melhora nas condições da vida social. Viu, entretanto, que a verdade espiritual praticada por cristãos, clérigos, sociólogos e filósofos, até meados do século 19, era uma verdade espiritual que exaltava os poderosos e lhes submetia os humildes e deserdados, isto é, a todos os que seguiam Jesus. O cristianismo eclesiástico, que não é o cristianismo do Espírito de Verdade, hoje proclamado pela Terceira Revelaçãoprestou-se a esse jogo aviltante, que consistia em sufocar toda a ideia de rebeldia entre os explorados. E Marx, por essa razão, negou aquela verdade espiritual, chegando à conclusão de que a única realidade se encontra no mundo físico e na vida material do homem. Terminou sustentando que a verdade sempre libertará os indivíduos e, que toda a ideia religiosa, que tratasse de subjugá-los com promessas ultraterrenas, representaria uma falsa verdade ou um argumento das forças reaccionárias, para impedir a justiça social e a democracia. 

Hoje, é reconhecida a razão de Marx, no que respeita ao socialismo, mas quanto à interpretação materialista do homem e da história, como se vem a comprovar, Marx permanece num plano de absoluto equívoco. É este o motivo que dá argumentos aos misoneístas para combaterem Marx, não tanto com o fim de refutar a sua ideologia materialista, mas para defender o regime capitalista, onde os seus instintos possessivos possam continuar a obra de avareza e de egoísmo. 

Se Marx nos legou uma falsa imagem do homem, foi devido ao procedimento moral, que já assinalamos, dos que se chamaram espiritualistas e cristãos e, que em vez de estarem com a mensagem de Cristo e, consequentemente com os pobres, despojados e explorados, estiveram com os poderosos e os afortunados. No nosso tempo, continua ainda este jogo de religiosos, espiritualistas e cristãos, que se protegem sob o poder estatal para defender os seus interesses de classe afortunada. Esta atitude dos poderosos frente aos humildes destrói, a cada momento, na vida dos povos, a ideia de Deus e do Espírito, ao ponto de serem consideradas inexistentes e, repetindo o que dizia Marx, se continua a considerá-las como instrumentos mentais para aplacar os anseios de justiça. 

Mas se o homem marxista é um erro no seu aspecto espiritual e, uma verdade na sua face social, o homem kardecista é uma verdade integral: o homem de Kardec é verdadeiro tanto no espiritual como no social. Estes mundos, na concepção espírita, não se excluem entre si, segundo afirma a mentalidade religioso-materialista. Para Kardec, estes dois mundos estão representados por dois elementos: o material e o espiritual, que deverão unir-se para revelar uma única realidade: a da vida universal. 

Kardec nos assinala que esses elementos, o material e o espiritual, constituem as duas realidades através das quais deverá passar o Espírito do homem. Esta concepção confirma-nos que a justiça social e a justiça espiritual deverão desenvolver-se de forma paralela, já que tanto o processo visível como o invisível do homem e da história contribuem para o processo que conduz ao amor e à fraternidade sociais. Isso nos mostra que o mundo material e o mundo espiritual se relacionam mutuamente e, que o desenvolvimento histórico se efectua mediante estas relações materiais e espirituais, ao lado do desenvolvimento da forma e da vida. 

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, PRIMEIRA PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III, MARX E KARDEC (I de II) / 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (imagem parcial) uma pintura de Salvador Dali, 1936)

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