Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 2 de janeiro de 2021

O sentido da vida ~


Conclusões Práticas ~ 
(III de III

O nascimento e a morte não devem perturbar-nos mais do que o necessário para que sejam atendidos nas suas necessidades imediatas. As convenções humanas que cercam esses acontecimentos, procurando dar-lhes um carácter de mistério impenetrável, devem ser afastadas dos meios espíritas. Nada de sacramentos aparatosos inúteis, como os baptizados religiosos, as unções do moribundo, a colocação de velas ou crucifixos nas mãos do morto ou em torno de um cadáver, as preces em conjunto, lamuriosas e prejudiciais, nada de gritos de desespero ou de choradeiras infindáveis, nada de semblantes carregados, de préstitos sombrios, carregados de coroas, nada de luto e de aparências dolorosas. O espírita sabe que o nascimento e a morte não são mais do que acontecimentos normais da existência terrena. Sabe que os aparatos de que os homens revestiram, através dos tempos, essas ocorrências, são apenas produto da ignorância, agora já superada pelos conhecimentos doutrinários. Deve banir, por isso mesmo, das casas espíritas, todos esses velhos meios da superstição e de atraso espiritual da humanidade, transformados no mais estéril e prejudicial dos convencionalismos. 

Por outro lado, na sua vida diária ele deve fazer o mesmo. A todo o momento terá de encontrar-se com as manifestações convencionais do mundo. São os hábitos criados na sociedade pela incompreensão do homem, firmados através dos tempos, constituindo a rotina quotidiana das convenções. Contra ela, o espírita irá firmando os novos hábitos denunciadores de uma diferente visão das coisas. A sua atitude será a de um simplificador da vida, a de um destruidor de convenções inúteis. Na sua vida particular, como homem de família e de sociedade, substituirá as expressões convencionais pelas atitudes simples e naturais, ditadas pelo coração em cada momento. Será o que realmente for, não o que pretendam que ele seja. Na vida comercial ou profissional procurará substituir a ganância desenfreada ou o desejo instintivo de superar os companheiros para tirar vantagens pessoais, pelo simples cumprimento do dever, com vista à realização das tarefas que lhe cabem e à satisfação das suas necessidades económicas reais. Como a ama-de-leite de que nos fala Ramakrishna, ele saberá sempre que a fortuna, o êxito, a boa-posição, não são mais do que o filho do patrão, do qual ele deve cuidar com o máximo de carinho e sem apego. (*)

No tocante aos princípios doutrinários, sabendo, como sabe, que o mundo necessita deles, tudo fará pela sua difusão. Trabalhando a sua própria vida, trabalhará também a vida do seu próximo, através da pregação e do exemplo. A pregação, ele a fará nas ocasiões oportunas, sempre que puder desviar a conversação dos rumos habituais, de futilidade e de maldade, para outros rumos, mais altos e mais belos, relacionando acontecimentos que sirvam de lições ou indicando mesmo as soluções doutrinárias para todos os problemas da vida. Não é somente através de discursos e de conferências que podemos pregar. Todos os espíritas, até os mais pobres de recursos intelectuais, podem tornar-se excelentes pregadores, despertando os homens para a compreensão verdadeira da vida. exemplo ele o dará através dos seus actos, da sua maneira de viver, de comerciar, de se desempenhar dos seus encargos profissionais, de tratar com os semelhantes na vida social. Mas feito isso, resta-lhe ainda um dever a cumprir: o trabalho em conjunto. Conhecedor que é da lei de fraternidade, não pode ele fechar-se, dentro do movimento doutrinário, numa espécie de individualismo espírita, fazendo Espiritismo somente na sua casa ou no âmbito individual das suas actividades. É necessário ir mais longe, ligando-se às associações doutrinárias, contribuindo para o trabalho dos Centros e dos Núcleos, esforçando-se em favor das boas iniciativas espíritas. 

Chegamos, neste ponto, a um assunto da maior relevância para todos os espíritasA vida das sociedades doutrinárias é de grande importância para a boa e séria propagação dos princípios espíritas no mundo. Por isso mesmo, cabe a todos nós uma parcela de responsabilidade pelas actividades dessas associações. Grande número delas, infelizmente, se desviam facilmente do caminho seguro, levados por homens vaidosos e ignorantes, que a si mesmos se atribuem poderes excepcionais, assistência privilegiada, capacidade única de direcção. Os espíritas sinceros e esclarecidos não podem fechar os olhos a essa situação.. É seu dever contribuir para a volta das associações a um roteiro seguro, se não pessoalmente, por falta de aptidões pessoais, pelo menos reforçando o trabalho dos que lutam contra essas deturpações e esses desvios. 

Um dos vícios ainda persistentes no movimento espírita é o do personalismo mais feroz, na realização de obras de carácter doutrinário. Todo o indivíduo que se julga dotado de capacidade para fazer alguma coisa, procura logo fazê-la por conta própria, individualmente, não raro firmando o seu nome, como se ele fosse o objectivo e não o realizador da iniciativa. Contra isso temos de lutar, incessantemente. Precisamos convencer os espíritas da necessidade de trabalhos em conjunto, visando as soluções mais amplas dos problemas doutrinários. A União das Sociedades Espíritas – USE, surgida em São Paulo, é uma tentativa nesse sentido e, devemos prestigiá-la. Não obstante, é necessário o maior cuidado, para que um movimento como a USE também não seja desviado dos seus verdadeiros objectivos. O perigo desse desvio já se tornou evidente, com a criação de um departamento de unificação nacional, no Rio de Janeiro, subordinado à Federação Espírita Brasileira. 

A unificação do movimento espírita, tanto no âmbito municipal, através das Uniões Municipais Espíritas, quanto no estadual ou no federal e, até mesmo, futuramente, no continental e no mundial – já existem organismos desta natureza, como a Confederação Espírita Pan-americana e a Federação Espírita Mundial –, deve ser feita através de organismos amplos, de representação colectiva e, não de pequenas sociedades, enfeixadas nas mãos de um grupo reduzido. Em cada organismo unificador devem estar presentes os representantes eleitos de grandes massas espíritas, da maneira mais democrática possível, a fim de que o movimento não se desvie do seu sentido livre e libertador; isso porque o Espiritismo é doutrina, como vimos, de liberdade e fraternidade, jamais de coação e imposição, através de autoridades arbitrariamente constituídas. O nosso trabalho deve ser no sentido de unir os espíritas para o esforço comum em prol da causa e, não de submetê-los ao arbítrio de instituições dirigentes. 

/… 
(*) O grande espiritualista hindu, Ramakrishna, dizia aos seus discípulos que eles deviam viver como uma ama-de-leite. E explicava: 
“A ama-de-leite, ao referir-se à casa dos seus patrões, diz: “a nossa casa”. Ela sabe, entretanto, que a sua casa está longe, numa aldeia distante, para a qual se dirigem os seus pensamentos. Ao referir-se ao filho dos patrões, que traz nos braços, dirá: “o meu Hari está muito travesso” ou “o meu Hari gosta disto ou daquilo”, e assim por diante. Não obstante, ela sabe que Hari não é seu. Aos que me procuram, digo-lhes que vivam uma vida de desapego, como essa ama-de-leite, que vivam desligados deste mundo, que vivam no mundo mas não sejam do mundo e, tenham ao mesmo tempo a mente dirigida a Deus, a casa celeste de onde todos viemos. Que implorem o amor de Deus, que os ajudará a viver assim.” 
In O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (II de III), J. Herculano Pires.


José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (III de III), 16º fragmento desta obra 
(imagem de contextualização: Ramakrishna, finais do século XIX, pintura de Franz Dvorak)

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