(III de III)
O nascimento e a morte não devem perturbar-nos mais do que o
necessário para que sejam atendidos nas suas necessidades imediatas. As
convenções humanas que cercam esses acontecimentos, procurando dar-lhes um
carácter de mistério impenetrável, devem ser afastadas dos meios espíritas. Nada
de sacramentos aparatosos inúteis, como os baptizados religiosos, as unções do moribundo, a colocação de velas ou crucifixos nas mãos do morto ou em torno de
um cadáver, as preces em conjunto, lamuriosas e prejudiciais, nada de gritos de desespero ou de choradeiras infindáveis, nada de semblantes
carregados, de préstitos sombrios, carregados de coroas, nada de luto
e de aparências dolorosas. O espírita sabe
que o nascimento e a morte não são mais do que acontecimentos normais da existência terrena. Sabe que os aparatos de que os homens revestiram,
através dos tempos, essas ocorrências, são apenas produto da ignorância, agora já superada pelos conhecimentos doutrinários. Deve banir, por isso mesmo, das casas espíritas,
todos esses velhos meios da superstição e de atraso espiritual da humanidade,
transformados no mais estéril e prejudicial dos convencionalismos.
Por outro lado, na sua vida diária ele deve fazer o mesmo. A
todo o momento terá de encontrar-se com as manifestações convencionais do mundo. São os hábitos criados
na sociedade pela incompreensão do homem, firmados através dos tempos,
constituindo a rotina quotidiana das convenções. Contra ela, o espírita irá
firmando os novos hábitos denunciadores de uma diferente visão das coisas. A sua atitude será a de um simplificador da vida, a de um destruidor de
convenções inúteis. Na sua vida particular, como homem de família e de
sociedade, substituirá as expressões convencionais pelas atitudes simples e naturais, ditadas pelo coração em cada momento. Será o que realmente for, não o que pretendam que ele seja. Na vida comercial ou profissional procurará
substituir a ganância desenfreada ou o desejo instintivo de superar os companheiros
para tirar vantagens pessoais, pelo simples cumprimento do dever, com vista à
realização das tarefas que lhe cabem e à satisfação das suas necessidades
económicas reais. Como a ama-de-leite de que nos fala Ramakrishna,
ele saberá sempre que a fortuna, o êxito, a boa-posição, não são mais do
que o filho do patrão, do qual ele deve cuidar com o máximo de
carinho e sem apego. (*)
No tocante aos princípios doutrinários, sabendo,
como sabe, que o mundo necessita deles, tudo fará pela sua difusão. Trabalhando
a sua própria vida, trabalhará também a vida do seu próximo, através da
pregação e do exemplo. A pregação, ele a fará nas ocasiões
oportunas, sempre que puder desviar a conversação dos rumos habituais, de
futilidade e de maldade, para outros rumos, mais altos e mais belos, relacionando acontecimentos que sirvam de lições ou indicando mesmo as soluções doutrinárias para todos os problemas da vida. Não é somente através de
discursos e de conferências que podemos pregar. Todos os espíritas,
até os mais pobres de recursos intelectuais, podem tornar-se excelentes
pregadores, despertando os homens para a compreensão verdadeira da vida. O exemplo ele o dará através dos seus actos, da sua maneira de viver, de comerciar, de se desempenhar dos seus encargos profissionais, de tratar com os semelhantes na vida social. Mas
feito isso, resta-lhe ainda um dever a
cumprir: o trabalho em conjunto. Conhecedor que é da lei de fraternidade, não pode ele fechar-se, dentro do movimento
doutrinário, numa espécie de individualismo espírita,
fazendo Espiritismo somente
na sua casa ou no âmbito individual das suas actividades. É necessário ir mais
longe, ligando-se às associações doutrinárias, contribuindo para o trabalho dos Centros e dos Núcleos, esforçando-se em
favor das boas iniciativas espíritas.
Chegamos, neste ponto, a um assunto da maior relevância para
todos os espíritas. A
vida das sociedades doutrinárias é de grande importância para a boa e séria
propagação dos princípios espíritas no mundo. Por isso mesmo,
cabe a todos nós uma parcela de responsabilidade pelas actividades dessas associações. Grande número delas, infelizmente, se desviam facilmente do
caminho seguro, levados por homens vaidosos e ignorantes, que a si mesmos se atribuem poderes excepcionais, assistência privilegiada, capacidade única de direcção. Os espíritas sinceros e esclarecidos não podem fechar os olhos a essa situação.. É seu dever
contribuir para a volta das associações a um roteiro seguro, se não pessoalmente, por falta de aptidões
pessoais, pelo menos reforçando o trabalho dos que lutam contra essas
deturpações e esses desvios.
Um dos vícios ainda persistentes no movimento espírita é o do personalismo mais feroz, na realização de obras de carácter
doutrinário. Todo o indivíduo que se julga dotado de capacidade para fazer alguma coisa, procura logo
fazê-la por conta própria, individualmente, não raro firmando o seu nome, como
se ele fosse o objectivo e não o realizador da iniciativa. Contra
isso temos de lutar, incessantemente. Precisamos convencer os espíritas da
necessidade de trabalhos em conjunto, visando as soluções mais amplas dos
problemas doutrinários. A União das Sociedades Espíritas – USE, surgida em São
Paulo, é uma tentativa nesse sentido e, devemos prestigiá-la. Não obstante, é
necessário o maior cuidado, para que um movimento como a USE também não seja
desviado dos seus verdadeiros objectivos. O perigo desse desvio já se tornou
evidente, com a criação de um departamento de unificação nacional, no Rio de
Janeiro, subordinado à Federação Espírita Brasileira.
A unificação do movimento espírita, tanto no âmbito
municipal, através das Uniões Municipais Espíritas,
quanto no estadual ou no federal e, até mesmo, futuramente, no continental e no mundial – já existem organismos desta natureza, como a Confederação Espírita
Pan-americana e a Federação Espírita Mundial –, deve ser feita
através de organismos amplos, de representação colectiva e, não de pequenas
sociedades, enfeixadas nas mãos de um grupo reduzido. Em cada
organismo unificador devem estar presentes os representantes eleitos de grandes
massas espíritas,
da maneira mais democrática possível, a fim de que o movimento não se desvie do
seu sentido livre e libertador; isso porque o Espiritismo é
doutrina, como vimos, de liberdade e fraternidade, jamais de coação e imposição, através
de autoridades arbitrariamente constituídas. O nosso trabalho deve ser no
sentido de unir os espíritas para
o esforço comum em prol da causa e, não de submetê-los ao arbítrio de
instituições dirigentes.
/…
(*) O grande espiritualista hindu, Ramakrishna, dizia aos seus
discípulos que eles deviam viver como uma ama-de-leite. E explicava:
“A ama-de-leite, ao referir-se à casa dos seus patrões, diz:
“a nossa casa”. Ela sabe, entretanto, que a sua casa está longe, numa aldeia
distante, para a qual se dirigem os seus pensamentos. Ao referir-se ao filho
dos patrões, que traz nos braços, dirá: “o meu Hari está muito travesso” ou “o
meu Hari gosta disto ou daquilo”, e assim por diante. Não obstante, ela sabe
que Hari não é seu. Aos que me procuram, digo-lhes que vivam uma vida
de desapego, como essa ama-de-leite, que vivam desligados deste mundo, que
vivam no mundo mas não sejam do mundo e, tenham ao mesmo tempo a mente
dirigida a Deus, a casa celeste de onde todos viemos. Que implorem o amor de
Deus, que os ajudará a viver assim.”
In O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (II de III), J. Herculano Pires.
José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões
Práticas (III de III), 16º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: Ramakrishna,
finais do século XIX, pintura de Franz Dvorak)
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