Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 29 de agosto de 2021

O Homem e a Sociedade


Capítulo IV 

A FILOSOFIA CIENTÍFICA DE GUSTAVE GELEY 
(I de II)

O fenómeno mediúnico e metapsiíquico permitirá à ciência antropológica um novo e amplo enfoque da existência do homem e do Universo. A teoria do paralelismo psicofisiológico, como já se assinalou, encontra-se em plena desvalorização, diante dos factos obtidos, especialmente os casos de físiologia supranormal, situados por Geley dentro dos cânones da ciência universitária. Este grande cientista e filósofo foi um dos estudiosos mais apaixonados da metapsíquica. A sua intuição não ficou na periferia dos fenómenos, mas penetrou nos seus extractos subjectivos, para mais tarde, sobre a base de factos inegáveis, apresentar uma filosofia metafísica idealista, como confirmação da doutrina espírita e dos seus postulados referentes à lei palingenésica

No seu livro, Do Inconsciente ao Consciente, Geley faz uma crítica geral do conhecimento e dos sistemas naturalistas mais conhecidos, para, a seguir, penetrar nos problemas mais importantes do Ser, fundamentando assim uma importante teoria sobre o Espírito e a existência

Ao estudar o inconsciente realiza um trabalho científico e filosófico que lhe permite estabelecer uma notável teoria metapsíquica e espírita, referente ao homem e ao Universo. Assinala que o estudo do inconsciente, até à época moderna, se desenvolve sobre bases intuitivas e metafísicas e, por isso mesmo se encontra emaranhado de obscuridades e contradições. Mas acrescenta que esse estudo, ao entrar nos domínios da filosofia científica, permitiu a fusão do génio oriental com o génio ocidental, construindo-se assim a base e o arcabouço de um ideal filosófico e científico capaz de abranger todas as aspirações e todos os ideais humanos. Reconhece em Schopenhauer o mérito de haver sido o primeiro a relacionar a filosofia com os factos, ao conceber o mundo como vontade e representação e, faz ao mesmo tempo uma profunda análise do pessimismo do filósofo alemão. A este respeito, acentua que o sistema pessimista de Schopenhauer não somente foi consequência das suas premissas filosóficas, mas que também se deve, muito especialmente, à sua visão da vida. 

“Esta visão — escreveu Geley — inspira-lhe imensa piedade: piedade pelos animais, que, quando não se devoram reciprocamente, sofrem todas as misérias, num inferno em que “os homens são os demónios”. Piedade pelos homens, que o desejo de viver conduz a penas e dores só compensadas por alguns gozos muito espaçados e, por fim, baseados na ilusão.” 

Mas a estas amargas considerações, oporá Geley a sua magnífica concepção da evolução palingenésica, pela qual os seres, do inconsciente, realizarão a soberana consciência, a soberana justiça e o soberano bem. Como veremos, nem o marxismo nem o materialismo dialéctico, sobre o qual aquele se funda, nem o existencialismo ateu, foram capazes de apresentar uma visão ideológica que permita chegar a uma conclusão tão reconfortante para a alma humana, não obstante o génio filosófico que a inspira, como a que oferece a filosofia palingenésíca de Geley, com os mesmos fundamentos metafísicos e morais da filosofia espírita. 

Ele, que teve a oportunidade de ver, com fé apostólica, as mais vivas realidades espirituais e biológicas da metapsíquica, consolidou, para o bem das gerações futuras, um esboço de idealismo filosófico, sobre o qual se poderia dizer: “Se este idealismo não for verdadeiro, a espécie humana jamais terá salvação, estando a alma do homem irremediavelmente destinada a perecer entre as sombras da morte e do nada.” 

Com a sua teoria sobre o indivíduo e a evolução, Gustave Geley começou o seu trabalho filosófico, mas sempre com a maior cautela. Por isso nos diz: “Deixaremos de lado, sistematicamente, tudo o que seja pura metafísica: os temas de Deus, do Infinito, do Absoluto, do Princípio e do Fim, da natureza essencial das coisas etc. Só enfrentaremos o que é possível saber e compreender sobre o destino do mundo e sobre o destino individual, segundo o grau de capacidade, a um tempo intuitivo e intelectual, que nos permite a realização evolutiva actual.” 

É evidente, acrescentava, que “isto é pouco, relativamente; entretanto, é muito mais do que ensina a filosofia clássica”. Mas, este sacrifício, ao qual se submetia Geley, permite, dizia: “evitar todas as vãs discussões especulativas, todas as fórmulas estéreis, todos os sistemas contraditórios, onde têm naufragado, umas após as outras, as mais ilustres inteligências e, que já não têm actualmente mais do que um interesse histórico ou artístico.” 

Para este sábio metapsíquico e espírita os dois postulados primordiais da filosofia — expostos magistralmente no seu citado livro — são os seguintes: 

1.°) — O que há de essencial no Universo e no Indivíduo é o dinamopsiquismo único, a princípio inconsciente, mas tendo em si todas as potencialidades. As aparências diversas e inumeráveis das coisas são apenas as suas representações. 

2.°) — O dinamopsiquismo essencial e criador passa, pela evolução, do inconsciente ao consciente. 

Como podemos ver, a concepção do homem e do Universo, segundo o pensamento de Geley, talvez seja a verdadeira ou, pelo menos, está assente sobre um cálculo seguro de probabilidades. A observação dos fenómenos metapsíquicos permitiu-lhe penetrar a verdadeira natureza do Ser e das coisas, assim como a queda de uma maçã permitiu a Newton descobrir os segredos da lei da gravidade. 

As aparências da matéria se desfizeram; com a realidade metapsíquica, o homem surge na sua origem essencial, o que nos demonstra que o ser humano é apenas uma representação transitória, durante o período que dura a sua existência material: é, numa palavra, uma materialização psíquica e espiritual. E esta tese não é inverosímil, se levarmos em conta que a ciência trata agora da materialização e desmaterialização da energiaassim como a metapsíquica nos indica a materialização e desmaterialização de forças supranormais

Quanta verdade e certeza havia em Geley, se pensarmos nos progressos da Física moderna, quando declarava: “Fomos obrigados a concluir que a forma não é mais do que uma ilusão temporal.” Ao que acrescentava o seguinte: “Os órgãos e os tecidos não têm verdadeiras determinações específicas; todos os órgãos e tecidos, assim como nasceram de uma célula primordial única, a célula mater, podem voltar, no curso da vida, a essa substância primordial única, que, seguidamente, poderá organizar-se em novas formas e construir, temporariamente, órgãos ou tecidos diferentes e distintos.” 

Penetrou assim no conhecimento da teoria da unidade substancial, ao referir-se ao corpo, do qual disse: 

“Numa palavra: tivemos que nos render à evidência de que o complexo orgânico — o corpo — não tem nem qualidades definitivas e absolutas, nem especificidade própria. Por sua origem, por seu desenvolvimento; por suas metamorfoses embrionárias e pós-embrionárias, por seu funcionamento normal, como por suas possibilidades chamadas supranormais, pela conservação da forma habitual, como pelas desmaterializações e rematerializações metapsíquicas, este organismo se resolve num dinamismo superior que o condiciona.” 

“O complexo orgânico se nos apresenta, não como o indivíduo completo, mas como um produto ideoplástico do que há de essencial no indivíduo: um dinamopsiquismo que o condiciona e, que é o todo. Em termos filosóficos, o organismo não é o indivíduo, mas a representação do indivíduo.” 

A concepção materialista, que ensinava ser o indivíduo o organismo, que encerrava em si todas as manifestações da actividade individual, encontrou na concepção metapsíquica e espírita de Geley uma nova explicação, que nos faz ver o homem e todos os seres como dinamopsiquismos essenciais, indestrutíveis, eternos, que, por representações sucessivas, avançam do inconsciente ao consciente mediante a evolução palingenésica 

O sábio francês resumia essa doutrina da seguinte maneira: Tudo acontece como se o dinamopsiquismo essencial se objectivasse para criar o indivíduo, não em uma representação única — o organismo — mas em uma série de representações hierarquizadas, que se condicionam umas às outras.” 

/… 


Humberto Mariotti (i)O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo IV A Filosofia Científica de Gustave Geley (I de II), 6º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Deus na Natureza ~


~ a personalidade humana ~ 
(II de II) 

  Se estamos iludidos acerca da própria personalidade, em que mais poderíamos crer e afirmar nesta vida? Admiramos esses senhores materialistas, que colocam uma tal dúvida em primeiro plano e ousam afirmá-la com pretensas observações de ciência positiva. Não vos parece que sejam eles, por sua vez, joguetes de mirífica ilusão quando assim tão ingenuamente sustentam não passar de uma miragem a identidade pessoal, para que sejamos tão só um adjectivo do elemento cerebral? Sim, porque, deveriam estar persuadidos de que não lhes sendo as próprias ideias mais que produto do fósforo e da potassa, a natureza das mesmas ideias depende da natureza das combinações e, consequentemente, não lhes fica bem essa atitude de pregoeiros pessoais. Essa prerrogativa lhes escapa e, se quiséssemos levar o seu mesmo sistema às suas burlescas consequências, começaríamos por considerá-los pessoalmente inexistentes e, em lugar de a eles nos dirigirmos como a criaturas pensantes, nos ateríamos à constituição do seu cérebro. Aqui, é oportuno lembrar, com Hersehel, não haver absurdo que um alemão não teorize. 

  Atingidos estes exageros, não há como deixar de olhar para trás e lembrar a Ontologia (i) no trono de que ela abdicou em benefício da república científica. Sem restabelecer o equilíbrio, somos tentados a perguntar, com de Broglie (*), se a Ontologia será bem uma asneira e se os ontologistas não serão uns loucos, idiotas, uns sonhadores. No entanto, responderemos com um académico. A Ontologia não é coisa que se deva tomar em sentido pejorativo, pois é um dos ramos da Filosofia geral, ciência do ser, em oposição à do fenómeno, ou da sua aparência. 

  O homem, dizem os filósofos, aborda directamente os fenómenos e apreende-os, ora pelos sentidos, ora pela consciência; estuda-os, descreve-os, compara-os Entretanto, debaixo do fenómeno há o ser que persiste enquanto ele – o fenómeno – muda ou passa. Independentemente dos atributos, das modificações, há a substância que suporta os atributos e sofre as modificações. Às qualidades e aparências é necessário um objecto de inerência, um suporte, ou o que melhor nome tenha. Enquanto as ciências naturais descrevem os fenómenos sensíveis e a Psicologia descreve os fenómenos conscienciais, a Ontologia sonda a legitimidade do processo pelo qual passamos do fenómeno ao ser

  Aqui não queremos, porém, entrar nem conduzir o leitor a essa cripta ainda muito obscura, da ciência abstracta, pois tememos, como ninguém, as emanações soporíferas que a cripta exala. 

  Temos, por essencial, permanecer no plano activo e luminoso da observação experimental. Notamos mesmo – tão certos estamos da vitória e de ultrapassar com prazer todas as dificuldades – que a autoridade da consciência pode, sob um certo prisma, ser posta em dúvida e que importa não aceitar sem controlo o testemunho puro e simples do senso íntimo. Como o princípio pensante sofre a cada instante uma multidão de influências derivadas do mundo exterior e não lhe sendo possível descobri-lo e remontá-lo, poder-se-ia, talvez, pretender que a convicção da sua existência seja uma ilusão devida a uma ignorância invencível do respectivo jogo dos elementos componentes. A essa objecção, responderemos com Magy, (**) no encadeamento das proposições seguintes: 

  Na alma humana, como em toda a Natureza, encontramos em coexistência a força e a extensão. Os factos de molde a revelar uma actividade própria, no ser pensante, são visíveis a cada passo, na marcha dos nossos estudos. 

  Com efeito, a primeira condição do aprendizado é, para o nosso espírito, um esforço espontâneo para neutralizar as causas tendentes a nos manter na inércia e na ignorância, tais como os imperativos da vida social, as necessidades do corpo, as paixões, a falta de aptidões, as dificuldades próprias do estudo. 

  Esse esforço preliminar não cessa com o início do estudo, mas, ao contrário, mantém-se e avulta no período das aquisições. 

  Torna-se necessária uma atenção firme e persistente, para nos penetrarmos dos conhecimentos a que aspiramos. Essa atenção é tão indispensável ao aluno como ao maior dos génios. Newton não teria chegado à atracção universal senão pela sua constante tensão espiritualArquimedes, absorvido na investigação de um problema, não dá pela tomada de Siracusa e sucumbe trespassado pelo gládio invasor, vítima – diga-se – do dinamismo da sua almaDescartes vislumbra em todas as coisas um motivo de meditação. E não sabemos, todos nós, que a Ciência só se adquire a preço de esforços perseverantes e depois de maturada contensão espiritual sobre o objecto do estudo? 

  Mais ainda: essa mesma energia, indispensável ao espírito para adquirir o saber, torna-se-lhe necessária para conservá-lo. O melhor meio de reter na memória a Ciência está em concentrar-se demoradamente em cada ideia ou facto, em dar conta minuciosa dos processos de pesquisa utilizados pelos inventores, em lhes apreender o método e fixar, de qualquer modo, o estudo no cérebro. Estes factos atestam que o ser pensante, no adquirir conhecimentos, os assimila mediante um trabalho que lhe é próprio, comportando-se com força individual. Agora, o modo fundamental de acção da causa inteligente prova, peremptoriamente, que essa força é individual e não um conjunto de forças distintas. 

  Todas as operações da inteligência humana são análises sintéticas, ou sínteses analíticas, isto é: consistem essencialmente na decomposição de um dado todo, ou na coordenação de elementos distintos, em que cada qual intervém com a sua quota-parte e toma o seu lugar lógico. – Qualquer que seja a ciência focalizada, nela se afirma a lei do espírito humano, sem a qual não haveria qualquer relação entre os diversos objectos do nosso conhecimento, nem a própria Ciência existiria. Pensamos não ser necessário exemplificar, no pressuposto de estarem os leitores já habituados com os processos intelectuais íntimos, para que bem os compreendam simplesmente enunciados na sua profundidade e universalidade. 

  Pois bem: se julgarmos a alma pela sua acção intelectual, reconheceremos, sem hesitação, que a força pensante não pode ser um agregado de forças elementares. De facto, como poderia a alma centralizar todas as observações que se lhe impõem, agrupar silogismos secundários em torno do principal, associar julgamentos segundo as regras da Lógica, perceber a relação dos termos convenientemente enunciados, coordenar numa mesma intuição os fenómenos estudados, formular hipóteses, comparar resultados? Como poderia, em suma, abstrair e generalizar, senão como força absolutamente simples, indivisível e dotada da faculdade de tudo chamar a si, como juiz único, em consciência única? 

  Os partidários da secreção cerebral repetirão, ainda uma vez, que essa alma pessoal não passa de uma resultante de todas as forças elaboradas pelos órgãos do cérebro e sintonizadas num dinamismo bem regulado, assim estabelecendo a unidade e a harmonia do trabalho intelectual. 

  Mas, este singular acordo de todas essas pequeninas almas, para formarem uma grande alma, é a hipótese mais complicada e, por consequência, mais afastada que a nossa da verdade natural. Ao contrário de estabelecer a unidade da alma, ela a destrói. Localizando as faculdades nos diversos órgãos do cérebro, Gall dizia que todas elas eram dotadas da faculdade de percepção, de atenção, de memória, de recordação, de julgamento e de imaginação! Que bela república! Quando uma que tal faculdade sobrepujar as vizinhas (o que a observação demonstra em cada indivíduo), estas suportarão submissas o seu despotismo? Quando duas faculdades se desentenderem, por exemplo a de nº 5 (pendor para a morte) e a de nº 24 (benevolência), quem dominará o antagonismo? Há que imaginar logo um generalíssimo e, neste caso, oficiais e soldados se tornam inúteis e o nosso general ficará sendo, simplesmente ele, o próprio espírito, pois, como acabamos de ver, dado o modo de acção intelectual da alma, bem como o testemunho da consciência, essa alma é única, idêntica e indivisível. 

  É fácil reconhecer o carácter dinâmico da alma em todas as suas manifestações. Se observarmos um espírito culto, o que logo se revela nele é uma sede insaciável de conhecimentos, é a força virtual da alma a traduzir-se em obras eloquentes. 

  Se baixarmos às camadas inferiores da sociedade, a essas zonas penumbrosas onde a flama da instrução ainda não radia, vemos já não uma actividade em função intelectualmas passional, um modo de actividade psicológica universal. 

  À tendência passional do indivíduo junta-se, ainda, a energia de uma paixão dominante e a esta uma vontade que a combate, ou que a dirige. A faculdade de vencer ou de nortear as suas paixões é, pois, ainda uma forma dinâmica da essência da alma. Se, enfim, baixarmos das nossas vontades particulares aos hábitos que elas engendram e mantêm em nós, chegaremos a reconhecer que todos os actos, desde a obra criadora do pensamento até ao movimento mais simples de um membro, denunciam a força íntima que nos governa e se traduz em acto material, por intermédio dos centros nervosos, dos nervos e dos músculos. Sabemos que a fonte de todo o movimento orgânico reside no espírito. Ninguém ousará negar que o meu braço ou a minha perna se movem ao impulso de minha vontade, qual se dá com a locomotiva à pressão do vapor, dirigida pelo maquinista. O meu corpo em si e, por si só, é inerte. Descartes e Locke, neste ponto, estão de acordo com LeibnitzO pensamento é acção da alma: será preciso mais para sustentar que a alma é força? O próprio Cabanis não anda longe de o confessar, quando diz que “para ter uma ideia justa das operações que originam o pensamento, importa se considere o cérebro como um órgão particular, especialmente destinado a produzi-lo, assim como o estômago e os intestinos se destinam a operar a digestão; o fígado a filtrar a bílis, as parótidas e as glândulas maxilares para a preparação da saliva. As impressões, atingindo o cérebro, fazem-no entrar em actividade e a sua função peculiar é perceber cada impressão particular, ligar os sinais, combinar as diferentes impressões, compará-las entre si e tirar ilações e determinações, tal como a função dos outros órgãos é actuar sobre as substâncias nutritivas, cuja presença os estimula, dissolvendo-os e assimilando-lhes os sucos”. Cabanis acrescenta que essa maneira de ver levanta “a dificuldade suscitada por quantos, ao considerarem a sensibilidade uma faculdade passiva, não compreendem como julgar, raciocinar, imaginar, não seja outra coisa que sentir. A dificuldade desaparece quando se reconhece nestas diversas operações a acção do cérebro sobre as impressões que lhe são transmitidas”. Consequentemente, notaremos nós, com Magy, segundo os fisiologistas menos espiritualistas, o cérebro é um sistema cuja função é produzir e elaborar o pensamento, que assim se torna, literalmente, dele resultante. Aí, param eles, sem perceberem que, por tudo explicarem, só lhes resta uma palavra a acrescentar. 

  Todos quantos – em face da correlação notável que une a alma ao corpo em todas as manifestações destes dois princípios – afirmam a identidade substancial da força pensante e da energia cerebral, se assemelham aos que dão à matéria atributos divinos. Eles transferem para o cérebro as faculdades inerentes ao Ser pensante, que a consciência revela no fundo da nossa actividade íntima. 

  Todas as vossas pretensões se evaporam, ó desprezadores da Inteligência! A Humanidade em peso vos impõe este vocábulo imperecível – Alma. E cada ser pensante afirma, em particular, o Eu que rege, que centraliza a sua própria vida. Em vão procurais ligar essa personalidade a um movimento material da espinal medula! A isso oponho eu, vitoriosamente, a minha potência intelectual, que diz: eu penso, eu julgo, eu quero; essa potência inatacável, que considera o visível como o invisível, o material como o imaterial, o presente, o passado, o futuro; que não pode filiar-se à matéria, uma vez que a sua vida e os seus actos se completam no mundo moral. 

  Oponho-vos, enfim, o meu pensamento, que a vós se dirige fremente pelo vosso atentado e que, por estas mesmas palavras, através destas linhas, vos atesta a minha existência individual, quanto afirma a minha personalidade. Pretendereis que este protesto possa provir de um lóbulo do meu cérebro? 

  Não, meus senhores, parai com o gracejo; eu sei (e vós também) que quem aqui vos fala é o meu espírito e não um nervo ou uma fibra... 

  Para encerrar este capítulo concernente à personalidade humana, poderíamos acrescentar algumas reflexões sobre uns tantos motivos de estudo, ainda misteriosos e nada insignificantes. O Sonambulismo natural, o Magnetismo e o Espiritismo oferecem aos pesquisadores sérios, capazes de os enfrentar cientificamente, factos característicos, que bastariam para mostrar a insuficiência das teorias materialistas. 

  É triste, confessamo-lo, para o observador consciencioso, ver o charlatanismo descarado intrometer-se, ávido e pérfido, em causas respeitáveis; triste assinalar que noventa por cento dos factos podem ser falsos, ou imitados. Mas, um só facto, bem averiguado, é suficiente para baldar todas as explicações. Ora, qual é a atitude de uns tantos doutos diante desses factos? Negá-los sumariamente. 

  “A Ciência está convencida, – diz Büchner –, em particular, de que todos os casos presumidos de clarividência não passam de conluios e de trapaças. A visão lúcida, por motivos de ordem natural, é impossível. É um imperativo das leis da Natureza que os efeitos dos sentidos se adstrinjam a determinados e intransponíveis limites no espaço. A ninguém é dado adivinhar pensamentos, nem ver de olhos fechados o que se passa em volta. As verdades são estas procuradas em leis naturais, imutáveis e sem excepções.” 

  Ó senhor juiz! conheceis vós todas as leis naturais? Nada existirá oculto para vós na Criação? Feliz, vós, que ainda não sucumbistes à sobrecarga da vossa ciência! Mas, como? Eis que viro duas páginas e leio: – “O Sonambulismo é um fenómeno do qual não temos, infelizmente senão observações muito inexactas, não obstante carecermos de noções precisas, atendendo à importância que ele tem para a Ciência. 

  “E todavia, sem dados certos (vede bem), é lícito relegar à conta de fábulas todos os factos maravilhosos extraordinários, que se atribuem aos sonâmbulos. A um só, destes, não é permitido escalar os muros, etc.”. Sensato que é o vosso raciocínio! 

  E como teríeis procedido bem se, antes de escrever, procurásseis conhecer um pouco os assuntos que abordais! 

  Os filósofos observadores que nos ouvem, sabem que certos factos da vida psíquica são absolutamente inexplicáveis pela hipótese materialista e que, uma vez rigorosamente comprovados, podem, só por si, desfazer este obstáculo. 

  Sem que seja necessário aqui insistir sobre este aspecto da questão, convém notar que é impossível admitir a alma como produto químico, ou dinâmico, quando sabemos que ela manifesta, em dadas circunstâncias, uma personalidade distinta, uma natureza incorpórea e faculdades independentes. 

  Portanto, voltando às conclusões precedentes, temos: contradição da unidade psíquica com a multiplicidade dos movimentos cerebrais, contradição entre a identidade constante da alma e a mutabilidade incessante dos elementos constitutivos do cérebro, contradição entre o carácter dinâmico da alma e as pretensas secreções orgânicas. Contradições, contradições e sempre contradições! 

  Se os adversários acham que elas não bastam, o exame dos factos de volição (i) lhes vai facultar um novo discernimento. 

/… 
(*) De l’Existence de l’Ame, página 112. (**) De la Sciencie et de la Nature (i), página 63. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte – A Alma […] 2/ A Personalidade Humana (II de II), 26º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon