(II de II)
Se estamos iludidos acerca da própria personalidade, em que mais
poderíamos crer e afirmar nesta vida? Admiramos esses senhores materialistas,
que colocam uma tal dúvida em primeiro plano e ousam afirmá-la com pretensas
observações de ciência positiva. Não vos parece que sejam eles, por sua vez,
joguetes de mirífica ilusão quando assim tão ingenuamente sustentam não passar
de uma miragem a identidade pessoal, para que sejamos tão só um adjectivo do
elemento cerebral? Sim, porque, deveriam estar persuadidos de que não lhes
sendo as próprias ideias mais que produto do fósforo e da potassa, a natureza
das mesmas ideias depende da natureza das combinações e, consequentemente, não
lhes fica bem essa atitude de pregoeiros pessoais. Essa prerrogativa lhes
escapa e, se quiséssemos levar o seu mesmo sistema às suas burlescas consequências,
começaríamos por considerá-los pessoalmente inexistentes e, em lugar de a eles
nos dirigirmos como a criaturas pensantes, nos ateríamos à constituição do seu
cérebro. Aqui, é oportuno lembrar, com Hersehel,
não haver absurdo que um alemão não teorize.
Atingidos estes exageros, não há como deixar de olhar
para trás e lembrar a Ontologia (i) no
trono de que ela abdicou em benefício da república científica. Sem restabelecer
o equilíbrio, somos tentados a perguntar, com de
Broglie (*), se a Ontologia será bem uma asneira e se os
ontologistas não serão uns loucos, idiotas, uns sonhadores. No entanto,
responderemos com um académico. A Ontologia não é coisa que se deva tomar em
sentido pejorativo, pois é um dos ramos da Filosofia geral, ciência do ser,
em oposição à do fenómeno, ou da sua aparência.
O homem, dizem os filósofos, aborda directamente os
fenómenos e apreende-os, ora pelos sentidos, ora pela consciência; estuda-os,
descreve-os, compara-os Entretanto, debaixo do fenómeno há o ser que persiste enquanto ele – o fenómeno – muda ou passa. Independentemente
dos atributos, das modificações, há a substância que suporta os atributos e
sofre as modificações. Às qualidades e aparências é necessário um objecto
de inerência, um suporte, ou o que melhor nome tenha. Enquanto as ciências
naturais descrevem os fenómenos sensíveis e a Psicologia descreve os fenómenos
conscienciais, a Ontologia sonda a legitimidade do processo pelo qual passamos
do fenómeno ao ser.
Aqui não queremos, porém, entrar nem conduzir o
leitor a essa cripta ainda muito obscura, da ciência abstracta, pois tememos,
como ninguém, as emanações soporíferas que a cripta exala.
Temos, por essencial, permanecer no plano activo e
luminoso da observação experimental. Notamos mesmo – tão certos
estamos da vitória e de ultrapassar com prazer todas as dificuldades – que a
autoridade da consciência pode, sob um certo prisma, ser posta em dúvida e
que importa não aceitar sem controlo o testemunho puro e simples do senso
íntimo. Como o princípio pensante sofre a cada instante uma multidão de
influências derivadas do mundo exterior e não lhe sendo possível descobri-lo e
remontá-lo, poder-se-ia, talvez, pretender que a convicção da sua existência
seja uma ilusão devida a uma ignorância invencível do respectivo jogo dos
elementos componentes. A essa objecção, responderemos com Magy, (**) no
encadeamento das proposições seguintes:
Na alma humana, como em toda a Natureza, encontramos
em coexistência a força e a extensão. Os factos de
molde a revelar uma actividade própria, no ser pensante,
são visíveis a cada passo, na marcha dos nossos estudos.
Com efeito, a primeira condição do aprendizado
é, para o nosso espírito, um esforço espontâneo para neutralizar as causas
tendentes a nos manter na inércia e na ignorância,
tais como os imperativos da vida social, as necessidades do corpo, as paixões,
a falta de aptidões, as dificuldades próprias do estudo.
Esse esforço preliminar não cessa com o início do
estudo, mas, ao contrário, mantém-se e avulta no período das aquisições.
Torna-se necessária uma atenção
firme e persistente, para nos penetrarmos dos conhecimentos a que
aspiramos. Essa atenção é tão indispensável ao aluno como ao maior dos génios. Newton não
teria chegado à atracção universal senão pela sua constante tensão
espiritual. Arquimedes, absorvido na investigação de um problema, não
dá pela tomada de Siracusa e sucumbe trespassado pelo gládio invasor, vítima –
diga-se – do dinamismo da sua alma. Descartes vislumbra
em todas as coisas um motivo de meditação. E não sabemos, todos nós, que a
Ciência só se adquire a preço de esforços perseverantes e depois de maturada
contensão espiritual sobre o objecto do estudo?
Mais ainda: essa mesma energia, indispensável ao
espírito para adquirir o saber, torna-se-lhe necessária para
conservá-lo. O melhor meio de reter na memória a Ciência está em
concentrar-se demoradamente em cada ideia ou facto, em dar conta minuciosa dos
processos de pesquisa utilizados pelos inventores, em lhes apreender o método e
fixar, de qualquer modo, o estudo no cérebro. Estes factos atestam que o ser pensante,
no adquirir conhecimentos, os assimila mediante um trabalho que lhe é próprio,
comportando-se com força individual. Agora, o modo fundamental de acção da
causa inteligente prova, peremptoriamente, que essa força é individual e
não um conjunto de forças distintas.
Todas as operações da inteligência humana são
análises sintéticas, ou sínteses analíticas, isto é: consistem essencialmente
na decomposição de um dado todo, ou na coordenação de elementos distintos, em
que cada qual intervém com a sua quota-parte e toma o seu lugar lógico. –
Qualquer que seja a ciência focalizada, nela se afirma a lei do
espírito humano, sem a qual não haveria qualquer relação entre os diversos
objectos do nosso conhecimento, nem a própria Ciência existiria. Pensamos
não ser necessário exemplificar, no pressuposto de estarem os leitores já
habituados com os processos intelectuais íntimos, para que bem os compreendam
simplesmente enunciados na sua profundidade e universalidade.
Pois bem: se julgarmos a alma pela sua acção
intelectual, reconheceremos, sem hesitação, que a força pensante não
pode ser um agregado de forças elementares. De facto, como poderia a
alma centralizar todas as observações que se lhe impõem, agrupar silogismos
secundários em torno do principal, associar julgamentos segundo as regras da
Lógica, perceber a relação dos termos convenientemente enunciados, coordenar numa
mesma intuição os fenómenos estudados, formular hipóteses, comparar resultados?
Como poderia, em suma, abstrair e generalizar, senão como força absolutamente
simples, indivisível e dotada da faculdade de tudo chamar a si,
como juiz único, em consciência única?
Os partidários da secreção cerebral repetirão, ainda
uma vez, que essa alma pessoal não passa de uma resultante de todas as forças
elaboradas pelos órgãos do cérebro e sintonizadas num dinamismo bem regulado,
assim estabelecendo a unidade e a harmonia do trabalho intelectual.
Mas, este singular acordo de todas essas
pequeninas almas, para formarem uma grande alma, é a hipótese mais complicada
e, por consequência, mais afastada que a nossa da verdade natural. Ao contrário
de estabelecer a unidade da alma, ela a destrói. Localizando as faculdades nos
diversos órgãos do cérebro, Gall dizia
que todas elas eram dotadas da faculdade de percepção, de atenção, de memória,
de recordação, de julgamento e de imaginação! Que bela república! Quando uma
que tal faculdade sobrepujar as vizinhas (o que a observação demonstra em cada
indivíduo), estas suportarão submissas o seu despotismo? Quando duas faculdades
se desentenderem, por exemplo a de nº 5 (pendor para a morte) e a de nº 24
(benevolência), quem dominará o antagonismo? Há que imaginar logo um
generalíssimo e, neste caso, oficiais e soldados se tornam inúteis e o nosso
general ficará sendo, simplesmente ele, o próprio espírito, pois, como
acabamos de ver, dado o modo de acção intelectual da alma, bem como o
testemunho da consciência, essa alma é única, idêntica e indivisível.
É fácil reconhecer o carácter dinâmico da alma em
todas as suas manifestações. Se observarmos um espírito culto, o que logo se
revela nele é uma sede insaciável de conhecimentos, é a força
virtual da alma a traduzir-se em obras eloquentes.
Se baixarmos às camadas inferiores da sociedade, a
essas zonas penumbrosas onde a flama da instrução ainda não radia, vemos já não
uma actividade em função intelectual, mas passional, um modo de
actividade psicológica universal.
À tendência passional do
indivíduo junta-se, ainda, a energia de uma paixão dominante e a esta uma
vontade que a combate, ou que a dirige. A faculdade de vencer ou de
nortear as suas paixões é, pois, ainda uma forma dinâmica da essência
da alma. Se, enfim, baixarmos das nossas vontades particulares aos hábitos que
elas engendram e mantêm em nós, chegaremos a reconhecer que todos os actos,
desde a obra criadora do pensamento até ao movimento mais simples de um membro,
denunciam a força íntima que nos governa e se traduz em acto material, por
intermédio dos centros nervosos, dos nervos e dos músculos. Sabemos que a fonte
de todo o movimento orgânico reside no espírito. Ninguém ousará negar que o meu
braço ou a minha perna se movem ao impulso de minha vontade, qual se dá com a
locomotiva à pressão do vapor, dirigida pelo maquinista. O meu corpo em si e,
por si só, é inerte. Descartes e Locke,
neste ponto, estão de acordo com Leibnitz. O
pensamento é acção da alma: será preciso mais para sustentar que a alma é
força? O próprio Cabanis não
anda longe de o confessar, quando diz que “para ter uma ideia justa das
operações que originam o pensamento, importa se considere o cérebro como um
órgão particular, especialmente destinado a produzi-lo, assim como o estômago e
os intestinos se destinam a operar a digestão; o fígado a filtrar a bílis, as parótidas e
as glândulas maxilares para a preparação da saliva. As impressões, atingindo o
cérebro, fazem-no entrar em actividade e a sua função peculiar é perceber cada
impressão particular, ligar os sinais, combinar as diferentes impressões,
compará-las entre si e tirar ilações e determinações, tal como a função dos outros
órgãos é actuar sobre as substâncias nutritivas, cuja presença os estimula,
dissolvendo-os e assimilando-lhes os sucos”. Cabanis acrescenta que essa
maneira de ver levanta “a dificuldade suscitada por quantos, ao considerarem a
sensibilidade uma faculdade passiva, não compreendem como julgar, raciocinar,
imaginar, não seja outra coisa que sentir. A dificuldade desaparece quando se
reconhece nestas diversas operações a acção do cérebro sobre as impressões que
lhe são transmitidas”. Consequentemente, notaremos nós, com Magy,
segundo os fisiologistas menos espiritualistas, o cérebro é um sistema cuja
função é produzir e elaborar o pensamento, que assim se torna, literalmente,
dele resultante. Aí, param eles, sem perceberem que, por tudo explicarem, só
lhes resta uma palavra a acrescentar.
Todos quantos – em face da correlação notável que une
a alma ao corpo em todas as manifestações destes dois princípios – afirmam a
identidade substancial da força pensante e da energia cerebral, se assemelham
aos que dão à matéria atributos divinos. Eles transferem para o cérebro as
faculdades inerentes ao Ser pensante, que a consciência revela no fundo
da nossa actividade íntima.
Todas as vossas pretensões se evaporam, ó
desprezadores da Inteligência! A Humanidade em peso vos impõe este vocábulo
imperecível – Alma. E cada ser pensante afirma, em
particular, o Eu que rege, que centraliza a sua própria vida.
Em vão procurais ligar essa personalidade a um movimento material da espinal
medula! A isso oponho eu, vitoriosamente, a minha potência intelectual,
que diz: eu penso, eu julgo, eu quero; essa potência inatacável, que
considera o visível como o invisível, o material como o imaterial, o
presente, o passado, o futuro; que não pode filiar-se à matéria, uma
vez que a sua vida e os seus actos se completam no mundo moral.
Oponho-vos, enfim, o meu pensamento, que a vós
se dirige fremente pelo
vosso atentado e que, por estas mesmas palavras, através destas linhas, vos
atesta a minha existência individual, quanto afirma a minha
personalidade. Pretendereis que este protesto possa provir de um lóbulo do meu
cérebro?
Não, meus senhores, parai com o gracejo; eu sei (e
vós também) que quem aqui vos fala é o meu espírito e não um nervo ou uma
fibra...
Para encerrar este capítulo concernente à personalidade
humana, poderíamos acrescentar algumas reflexões sobre uns tantos motivos de
estudo, ainda misteriosos e nada insignificantes. O Sonambulismo natural, o
Magnetismo e o Espiritismo oferecem aos pesquisadores sérios, capazes de os
enfrentar cientificamente, factos característicos, que bastariam para mostrar a
insuficiência das teorias materialistas.
É triste, confessamo-lo, para o
observador consciencioso, ver o charlatanismo descarado intrometer-se,
ávido e pérfido, em causas respeitáveis; triste assinalar que noventa por cento
dos factos podem ser falsos, ou imitados. Mas, um só facto, bem averiguado, é
suficiente para baldar todas as explicações. Ora, qual é a atitude de uns
tantos doutos diante desses factos? Negá-los sumariamente.
“A Ciência está convencida, – diz Büchner –,
em particular, de que todos os casos presumidos de clarividência não passam de
conluios e de trapaças. A visão lúcida, por motivos de ordem natural, é
impossível. É um imperativo das leis da Natureza que os efeitos dos sentidos se adstrinjam a
determinados e intransponíveis limites no espaço. A ninguém é dado adivinhar
pensamentos, nem ver de olhos fechados o que se passa em volta. As verdades são
estas procuradas em leis naturais, imutáveis e sem excepções.”
Ó senhor juiz! conheceis vós todas as leis
naturais? Nada existirá oculto para vós na Criação? Feliz, vós, que
ainda não sucumbistes à sobrecarga da vossa ciência! Mas, como? Eis que viro
duas páginas e leio: – “O Sonambulismo é
um fenómeno do qual não temos, infelizmente senão observações muito inexactas,
não obstante carecermos de noções precisas, atendendo à importância que ele tem
para a Ciência.
“E todavia, sem dados certos (vede bem), é lícito
relegar à conta de fábulas todos os factos maravilhosos extraordinários, que se
atribuem aos sonâmbulos. A um só, destes, não é permitido escalar os muros,
etc.”. Sensato que é o vosso raciocínio!
E como teríeis procedido bem se, antes de
escrever, procurásseis conhecer um pouco os assuntos que abordais!
Os filósofos observadores que nos ouvem, sabem que
certos factos da vida psíquica são absolutamente inexplicáveis pela hipótese
materialista e que, uma vez rigorosamente comprovados, podem, só por si,
desfazer este obstáculo.
Sem que seja necessário aqui insistir sobre este
aspecto da questão, convém notar que é impossível admitir a alma como
produto químico, ou dinâmico, quando sabemos que ela manifesta, em dadas
circunstâncias, uma personalidade distinta, uma natureza incorpórea e
faculdades independentes.
Portanto, voltando às conclusões precedentes, temos:
contradição da unidade psíquica com a multiplicidade dos movimentos cerebrais,
contradição entre a identidade constante da alma e a mutabilidade incessante
dos elementos constitutivos do cérebro, contradição entre o carácter dinâmico
da alma e as pretensas secreções orgânicas. Contradições, contradições e sempre
contradições!
Se os adversários acham que elas não bastam, o
exame dos factos de volição (i) lhes
vai facultar um novo discernimento.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira
Parte – A Alma […] 2/ A Personalidade Humana (II de II),
26º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James Jebusa Shannon)
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