Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes) 

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Terceiro e último artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por O Livro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida
(Terceiro e último artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

VII

– Levantai, disse-lhe Noureddin e, segui-me. Nazara lançou-se em pranto a seus pés, implorando graça. – Nenhuma piedade para semelhante falta, disse o pretenso Sultão; preparai-vos para morrer. Noureddin sofria muito por lhe falar desse modo, mas não julgou haver chegado o momento para se dar a conhecer.

Vendo que era impossível dobrá-lo, Nazara seguiu-o trémula. Voltaram aos aposentos; ali Noureddin disse a Nazara que se vestisse convenientemente. Depois, terminada a toalete e sem outras explicações, disse-lhe que iriam, ele e Ozana – o anão – conduzi-la a um subúrbio de Bagdá, onde ela encontraria o que merecia. Cobriram-se com grandes mantos para não serem reconhecidos e saíram do palácio. Mas, oh! terror! Mal transpuseram as portas transformaram-se aos olhos de Nazara. Não eram o Sultão e Ozana, nem os vendedores de roupas, mas o próprio Noureddin e Tanaple. Ficaram tão assombrados, principalmente Nazara, de se encontrarem tão perto da casa do Sultão, que apressaram o passo, com medo de serem reconhecidos.

Logo que entraram em casa de Noureddin, esta foi cercada por uma multidão de homens, de escravos e de tropas, enviada pelo Sultão para os prender.

Ao primeiro ruído, Noureddin, Nazara e o anão refugiaram-se nos aposentos mais retirados do palácio. Lá, disse-lhes o anão que não se amedrontassem e que havia somente uma coisa a fazer para não serem presos: enfiar na boca o dedo mínimo da mão esquerda e assobiar três vezes; que Nazara devia fazer o mesmo e instantaneamente se tornariam invisíveis a quantos quisessem apoderar-se deles.

Continuando o ruído a aumentar de maneira alarmante, Nazara e Noureddin seguiram o conselho de Tanaple; quando os soldados penetraram o aposento encontraram-no vazio, retirando-se depois de pesquisas minuciosas. Então o anão disse a Noureddin que fizesse o contrário do que haviam feito, isto é, enfiassem na boca o dedo mínimo da mão direita e assobiassem três vezes; eles o fizeram e logo se converteram no que eram antes.

Em seguida o anão os advertiu de que não se encontravam em segurança naquela casa, devendo deixá-la por algum tempo até que se apaziguasse a cólera do Sultão. Em razão disso, ofereceu-se para levá-los ao seu palácio subterrâneo, onde estariam mais à vontade, enquanto seriam providenciados os meios a fim de que, sem receio, pudessem retornar a Bagdá e, dentro das melhores condições possíveis.

VIII

Noureddin hesitava, mas Nazara tanto pediu que ele acabou consentindo. O anão lhes disse que fossem ao jardim e chupassem uma laranja, com o rosto voltado para o nascente; então, seriam transportados sem o perceberem. Fizeram um ar de dúvida que Tanaple não compreendia, depois de tudo o que houvera feito por eles.

Tendo descido ao jardim e chupado a laranja como lhes fora indicado, viram-se subitamente elevados a uma altura prodigiosa; depois experimentaram um forte abalo e um grande frio, sentindo que desciam a grande velocidade. Nada perceberam durante o trajecto; porém, quando tomaram consciência da situação encontravam-se num subterrâneo, dentro de magnífico palácio iluminado por mais de vinte mil velas.

Deixemos os nossos amantes no seu palácio subterrâneo e voltemos ao nosso pequeno anão, que havíamos deixado em casa de Noureddin. Sabeis que o Sultão tinha enviado soldados para se apoderarem dos fugitivos. Depois de haver explorado os recantos mais recônditos da habitação, assim como os jardins e, nada encontrando, viram-se forçados a retornar e prestar contas ao Sultão de suas buscas infrutíferas.

Tanaple os havia acompanhado em todo o percurso do caminho; olhava-os com malícia e de vez em quando indagava quanto o Sultão pagaria a quem lhe trouxesse os dois fugitivos. – Se o Sultão, acrescentava, estiver disposto a me conceder uma hora de audiência, dir-lhe-ei alguma coisa que o tranquilizará e ele ficará satisfeito por se desembaraçar de uma mulher como Nazara, que possui um mau génio e que faria descer sobre ele todas as desgraças possíveis, caso lá permanecesse por mais algumas luas. O chefe dos eunucos prometeu dar o seu recado e transmitir-lhe a resposta do Sultão.

Mal haviam retornado ao palácio o chefe dos negros veio dizer-lhe que o seu senhor o esperava, prevenindo-o, porém, de que seria empalado, caso sustentasse imposturas.

O nosso pequeno monstro apressou-se em dirigir-se à casa do Sultão. Chegando diante desse homem duro e severo, como de hábito inclinou-se três vezes perante os príncipes de Bagdá.

– Que tens a dizer-me? Perguntou o Sultão. Sabes o que te aguarda se não disseres a verdade. Fala, eu te escuto.

“Grande Espírito, celeste Lua, tríade de Sóis, não direi senão a verdade. Nazara é filha da fada negra e do Génio da Grande Serpente dos Infernos. A sua presença em tua casa acarretaria todas as pragas imagináveis: chuva de serpentes, eclipse solar, lua azul impedindo os amores nocturnos. Enfim, todos os teus desejos seriam contrariados e as tuas mulheres envelheceriam antes mesmo que se passasse uma lua. Poderei dar-te uma prova do que digo; sei onde se encontra Nazara; se quiseres, irei buscá-la e poderás convencer-te. Só há um meio de evitar essas desgraças: é dá-la a Noureddin. Noureddin também não é o que pensas; ele é filho da feiticeira Manouza e do génio do Rochedo de Diamante. Se os casares, em sinal de reconhecimento Manouza te protegerá; se recusares... Pobre príncipe! eu te lamento. Experimenta; depois decidirás.

Sultão ouviu muito calmo o discurso de Tanaple, mas logo em seguida convocou uma tropa de homens armados, ordenando aprisionar o monstrinho até que um acontecimento viesse convencê-lo do que acabara de ouvir.

Eu julgava – disse Tanaple – que estivesse a tratar com um grande príncipe, mas vejo que me enganei. Deixo aos génios o cuidado de vingar os seus filhos. Dito isto, seguiu os que vieram para o prender.

IX

Tanaple estava na prisão apenas há algumas horas quando o Sol se cobriu de uma nuvem sombria, como se um véu quisesse roubá-lo à Terra; depois ouviu-se um grande estrondo e, de uma montanha situada na entrada da cidade, saiu um gigante armado, dirigindo-se para o palácio do Sultão.

Não direi que o Sultão tivesse ficado muito calmo; longe disso. Tremia como uma folha de laranjeira açoitada por Éolo. À aproximação do gigante mandou fechar todas as portas, ordenando aos soldados que ficassem de prontidão e armas à mão para defender o seu príncipe. Mas, oh! estupefacção! À chegada do gigante todas as portas se abriram, como se mão invisível as impelissem; depois, gravemente, o gigante avançou para o Sultão, sem fazer nenhum sinal ou dizer uma só palavra. À sua vista, o Sultão caiu de joelhos e suplicou ao gigante que o poupasse e dissesse o que exigia.

“Príncipe! – disse o gigante – não digo muita coisa da primeira vez; apenas te advirto. Faze o que Tanaple te aconselhou e te asseguramos a nossa protecção; de contrário, sofrerás o castigo de tua obstinação.” Dito isso, retirou-se.

A princípio o Sultão ficou aterrorizado; porém, refazendo-se do susto um quarto de hora mais tarde e, longe de seguir os conselhos de Tanaple, mandou publicar um édito em que prometia uma magnífica recompensa a quem o pusesse no rasto dos fugitivos; depois mandou postar soldados às portas do palácio e da cidade, esperando pacientemente. Mas a sua paciência não durou muito ou, pelo menos, não lhe deixou tempo de prová-la. A partir do segundo dia surgiu às portas da cidade um exército que parecia ter saído das entranhas da Terra; os soldados vestiam peles de toupeira, tinham como escudos cascos de tartaruga e usavam clavas feitas de lascas de rochedos.

À sua aproximação os guardas quiseram opor-lhes resistência, mas o aspecto formidável do exército logo os fez baixar as armas; abriram as portas sem nada dizer, sem romper as suas filas e a tropa inimiga marchou solenemente para o palácio. O Sultão quis resistir à entrada nos seus aposentos, mas, para sua grande surpresa, os guardas adormeceram e as portas se abriram por si mesmas. Depois o chefe do exército avançou com passo grave até aos pés do Sultão e disse-lhe:

“Vim para dizer-te que Tanaple, percebendo a tua teimosia, enviou-nos para procurar-te; em vez de ser o Sultão de um povo que não sabes governar, vamos conduzir-te ao seio das toupeiras; tu mesmo te tornarás uma delas e serás um Sultão domesticado. Vê já se isso te convém ou se preferes fazer o que te ordenou Tanaple; concedo-te dez minutos para reflectir.”

X

Sultão teria preferido resistir; mas, para sua felicidade, após alguns momentos de reflexão concordou com aquilo que lhe exigiam; queria impor apenas uma condição: que os fugitivos deixassem o seu reino. Prometeram-lhe o que pedia e, no mesmo momento, sem saber de que lado nem como, o exército desapareceu a seus olhos.

Agora que a sorte dos nossos amantes estava completamente assegurada, voltemos a eles. Sabeis que os havíamos deixado no palácio subterrâneo.

Depois de alguns minutos, deslumbrados e encantados pelo aspecto das maravilhas que os cercavam, quiseram visitar o palácio e os seus arredores. Viram jardins encantadores. E, coisa estranha! ali viam quase tão claramente quanto a céu aberto. Aproximaram-se do palácio: todas as portas estavam abertas e havia preparativos como para uma grande festa. À porta encontrava-se uma dama em magnífica toalete. Ao princípio os nossos fugitivos não a reconheceram; porém, aproximando-se mais, viram Manouza, a feiticeira, completamente transformada; já não era aquela velha mulher, suja e decrépita e, sim uma senhora de certa idade, ainda bela e de porte elegante.

“Noureddin – disse ela – eu te prometi auxílio e assistência. Hoje vou cumprir a minha promessa; os teus males chegam ao fim e vais receber o prémio de tua perseverança: Nazara será tua esposa; além disso, dou-te este palácio e nele habitarás. Serás o rei de um povo bravo e reconhecido; eles são dignos de ti, como tu és digno de reinar sobre eles.”

A estas palavras ouviu-se uma música harmoniosa; de todos os lados surgiu uma multidão inumerável de homens e mulheres em trajes de festa; à sua frente grandes senhores e grandes damas vinham prostrar-se aos pés de Noureddin. Ofereceram-lhe uma coroa de ouro cravejada de diamantes e disseram que o reconheciam como o seu rei; que o trono lhe pertencia como herança paterna; e que estavam enfeitiçados há quatrocentos anos pela vontade de magos perversos e esse feitiço só deveria terminar com a presença de Noureddin. Em seguida fizeram um grande discurso sobre as suas e as virtudes de Nazara.

Então Manouza lhe disse: Sois feliz, nada mais tenho a fazer aqui. Se algum dia precisardes de mim, batei na estátua que está no meio do vosso jardim e virei no mesmo instante. Depois desapareceu.

Noureddin e Nazara quiseram retê-la por mais tempo, a fim de agradecer-lhe toda a bondade para com eles. Depois de alguns momentos de conversa voltaram aos seus súbditos. As festas e os regozijos duraram oito dias. O seu reino foi longo e feliz; viveram milhares de anos e posso até mesmo dizer que vivem ainda. Só que o seu país jamais foi encontrado ou, melhor dizendo, nunca se tornou bem conhecido.

FIM

Observação – Chamamos a atenção dos nossos leitores para as observações que antecederam este conto, nos números de novembro de 1858 e janeiro de 1859.

Allan Kardec

/…

(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Terceiro e último artigo), Fevereiro de 1859, 20º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sábado, 2 de setembro de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes)

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Segundo artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na Rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por OLivro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida

(Segunda parte, Segundo artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

III

Nada, entretanto, parecia perturbar a nossa felicidade; tudo era calmo à nossa volta. Vivíamos em perfeita segurança quando, uma noite, no momento em que nos julgávamos mais seguros, apareceu, de repente, ao nosso lado (posso dizer assim porque estávamos numa rotunda, para onde confluíam várias aléias) o sultão, acompanhado do seu grão-vizir. Ambos apresentavam uma expressão apavorante: a cólera havia-lhes transtornado a sua fisionomia; estavam, principalmente o sultão, numa exasperação facilmente compreensível. O primeiro pensamento do sultão foi mandar matar-me, mas, sabendo a que família pertenço e a sorte que o esperava, caso ousasse arrancar um só fio de cabelo da minha cabeça, fez de conta (à sua chegada eu me afastara para o lado) que não me tinha visto e precipitou-se furioso sobre Nazara, a quem prometeu não fazer demorar o castigo que ela merecia. Levou-a consigo, sempre acompanhado do vizir. Quanto a mim, passado o primeiro momento de susto, apressei-me a voltar ao meu palácio a fim de procurar um meio de subtrair a estrela de minha vida das mãos daquele bárbaro, que, provavelmente, iria destruir essa preciosa existência.

– E depois, que fizeste? perguntou Manouza; porque, afinal de contas, não vejo em tudo isso razão para te atormentares tanto para tirar a tua amante do perigo em que a colocaste por tua própria culpa. A mim me pareces um pobre homem que não tem coragem nem vontade quando se trata de coisas difíceis.

– Antes de condenar, Manouza, deves escutar. Não vim a ti sem antes haver examinado todos os meios ao meu alcance. Fiz ofertas ao sultão: prometi-lhe ouro, jóias, camelos e até palácios, se ele devolvesse a minha doce gazela. Desdenhou de tudo. Vendo repelidos os meus sacrifícios, fiz ameaças, que também não foram levadas em consideração: riu-se de tudo e zombou de mim. Também tentei introduzir-me no seu palácio; corrompi escravos e cheguei aos quartos. Entretanto, apesar de todos os meus esforços, não consegui chegar até a minha bem-amada.

– Tu és franco, Noureddin; a tua sinceridade merece uma recompensa e terás aquilo que vens buscar. Far-te-ei ver uma coisa terrível: se tiveres a força de suportar a prova pela qual te farei passar, fica certo de que reencontrarás a tua felicidade de outrora. Dou-te cinco minutos para te decidires.

Esgotado esse tempo, Noureddin disse a Manouza que estava pronto a fazer tudo quanto ela quisesse para salvar Nazara. Então a feiticeira, levantando-se, disse-lhe: Pois bem! – Segue. Depois, abrindo uma porta situada no fundo da sala, fê-lo passar à sua frente. Atravessaram um pátio sombrio, repleto de coisas horríveis: serpentes, sapos que passeavam gravemente em companhia de gatos pretos, os quais transmitiam um ar de domínio no meio desses animais imundos.

IV

Na extremidade desse pátio havia uma outra porta, que Manouza igualmente abriu; e, tendo feito passar Noureddin, entraram ambos numa sala baixa, apenas iluminada do alto: a luz vinha de uma cúpula muito elevada, guarnecida de vidros coloridos, formando todo o género de arabescos. No centro da sala havia um escalfador aceso e, sobre este, num tripé, um grande vaso de bronze, dentro do qual ferviam todos os tipos de ervas aromáticas, cujo odor era tão forte que mal se podia suportar. Ao lado desse vaso havia uma espécie de poltrona grande, de veludo negro, de aspecto surpreendente. Quem ali se sentasse desaparecia completamente, porquanto Manouza, nela se havendo acomodado, Noureddin a procurou durante alguns momentos sem conseguir percebê-la. De repente ela reapareceu e disse-lhe: Estás ainda disposto? – Sim, respondeu Noureddin. – Pois bem! Senta-te nesta poltrona e espera.

Tão logo Noureddin se sentou na poltrona tudo mudou de aspecto, enchendo-se a sala de uma multidão de grandes figuras brancas, a princípio apenas visíveis e que depois pareciam de um vermelho sanguíneo ou lembravam homens cobertos de chagas sanguinolentas, dançando uma ronda infernal; e, no meio deles, Manouza, cabelos desgrenhados, olhos chamejantes, vestes esfarrapadas e uma coroa de serpentes na cabeça. Na mão, à guisa de ceptro, brandia uma tocha acesa que deitava chamas, cujo odor subia à garganta. Depois de haverem dançado um quarto de hora, pararam de repente, a um sinal de sua rainha que, para isso, lançara a sua tocha no escalfador em ebulição. Quando todas essas figuras se dispuseram em volta do escalfador, Manouza fez aproximar-se o mais velho, reconhecido por sua longa barba branca, dizendo-lhe: – Vem aqui, tu que segues o diabo; tenho uma missão muito delicada para te encarregar de fazer. Noureddin quer Nazara e eu prometi que lha entregaria; é coisa difícil. – Conto, Tanaple, com o teu concurso. Noureddin haverá de suportar todas as provas necessárias. – Actua, pois! Sabes o que quero; faze o que quiseres, mas faze; tremerás se fracassares. Eu recompenso a quem me obedece, mas infeliz daquele que não me fizer a vontade! – Serás satisfeita, disse Tanaple, e podes contar comigo. – Muito bem! Vai e age.

V

Mal acabara de pronunciar estas palavras e tudo mudou aos olhos de Noureddin; os objectos tornaram-se o que eram antes e Manouza encontrou-se a sós com ele. – Agora, disse-lhe, volta para casa e espera; eu te mandarei um dos meus gnomos dizer o que deves fazer; obedece e tudo correrá bem.

Noureddin ficou feliz com estas palavras e mais feliz ainda por deixar o antro da feiticeira. Atravessou novamente o pátio e a sala por onde havia entrado; depois ela o acompanhou até a porta exterior. Tendo Noureddin perguntado se devia retornar, ela respondeu: – Não; no momento é inútil. Se for necessário eu to farei saber.

Noureddin apressou-se a voltar ao seu palácio. Estava impaciente para saber se alguma novidade havia acontecido desde a sua saída. Encontrou tudo no mesmo estado; apenas viu, na sala de mármore – sala de repouso de verão dos habitantes de Bagdá – uma espécie de anão de fealdade repugnante, perto da piscina situada no centro dessa sala. A sua vestimenta era amarela, com bordados vermelhos e azuis; tinha uma corcunda monstruosa, pernas pequenas, rosto grosseiro, olhos verdes e estrábicos, boca rasgada até às orelhas e os cabelos de um ruivo que podia rivalizar com o sol.

Noureddin perguntou-lhe como chegara ele ali e o que vinha fazer. – Fui enviado por Manouza, disse-lhe, para te entregar a tua amante. Chamo-me Tanaple. – Se és realmente o enviado de Manouza, estou pronto a obedecer às tuas ordens; mas apressa-te, aquela a quem amo está acorrentada e tenho pressa em libertá-la. – Se estás pronto, leva-me imediatamente ao teu quarto e te direi o que é preciso fazer. – Segue-me, então, disse Noureddin.

VI

Depois de haver atravessado vários pátios e jardins, Tanaple encontrou-se nos aposentos do rapaz; fechou todas as portas e disse-lhe: – Sabes o que deves fazer, tudo quanto eu te disser, sem objecção. Usarás este traje de mercador. Levarás um fardo às costas, contendo os objectos que nos são necessários. Quanto a mim, vestir-me-ei de escravo e conduzirei outro fardo.

Para sua grande estupefacção, Noureddin viu dois enormes pacotes ao lado do anão, embora não tivesse visto nem ouvido ninguém trazê-los. – Em seguida, continuou Tanaple, iremos à casa do SultãoMandarás dizer-lhe que tens objectos raros e curiosos; que se ele os quiser oferecer à sultana favorita, nenhuma huri nunca terá usado outros iguais. Conheces a sua curiosidade; ele terá vontade de nos ver. Uma vez admitidos em sua presença, não terás dificuldade em apresentar a tua mercadoria e lhe venderás tudo quanto levamos: são indumentárias maravilhosas, que transformam as pessoas que as vestem. Assim que o Sultão e a sultana os vestirem, todo o palácio os tomará por nós e não por eles: a ti pelo Sultão e a mim por Ozara, a nova sultana. Operada essa metamorfose, estaremos livres para agir à vontade e libertarás Nazara.

Tudo se passou como Tanaple anunciara: a venda ao sultão e a transformação. Depois de alguns minutos de horrível furor da parte do sultão, que queria expulsar os importunos e fazia um barulho medonho, Noureddin, conforme ordem de Tanaple, chamou diversos escravos e fez prender o sultão e Ozara como escravos rebeldes, ordenando que os conduzissem imediatamente à presença da prisioneira Nazara. Queria saber, dizia ele, se ela estava disposta a confessar o seu crime e se estava preparada para morrer. Quis também que a favorita Ozara viesse com ele, a fim de presenciarem o suplício que iria infligir às mulheres infiéis. Dito isto, marchou, precedido do chefe dos eunucos, durante um quarto de hora, por um sombrio corredor, no fundo do qual havia uma pesada porta de ferro maciço. Tomando de uma chave, o escravo abriu três fechaduras e eles entraram num grande gabinete, comprido e da altura de três ou quatro côvados. Ali, sobre uma esteira de palha, estava sentada Nazara, com um cântaro de água e algumas tâmaras por perto. Já não era a brilhante Nazara de outrora: mas continuava sempre bela, entretanto, pálida e emagrecida. À vista daquele que tomava por seu senhor, estremeceu de medo, julgando que houvesse chegado a sua hora.

(Continua na próxima publicação)

/…
(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Segundo artigo), Janeiro de 1859, 18º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

sábado, 19 de agosto de 2023

~ em torno do mestre


Humildes de espírito ~

  Jesus (i), no sermão da montanha — que bem se pode denominar a plataforma ou o programa de sua obra de redenção — começou proferindo a seguinte sentença: "Bem-aventurados os humildes de Espírito, porque deles é o reino dos céus". (Mateus, 5:3.)

  Porque humildes de Espírito? Bem-aventurados os humildes não seria o bastante? Porque a redundância — humildes de Espírito? Qual o motivo dessa superabundância de palavras? Simplesmente porque há várias formas de humildade; porém, só a de Espírito é que faz jus ao reino dos céus.

  Há pessoas humildes de aspecto, de posição social, de haveres, de profissão, de trajes, de fisionomia, mas que o não são de Espírito.

  Outras há cujas palavras e gestos, manifestando simplicidade e doçura, afecto e humildade, mal-escondem a soberba que domina os seus corações. A verdadeira humildade, como aliás todas as virtudes, vem do íntimo. O exterior nem sempre traduz o interior.

  Há um grande número de maltrapilhos e de mendigos orgulhosos. Existem, outrossim, embora excepcionalmente, exemplos de humildade entre pessoas abastadas, que ocupam posições de destaque. Há também sábios humildes, que constituem honrosas excepções à regra geral que impera entre os letrados e os eruditos. A ignorância petulante e enfatuada é coisa vulgar e corriqueira.

  Até entre os chamados ministros do Cristo se encontram orgulhosos impenitentes, compenetrados da ideia de supremacia e convencidos de que só a eles cabem determinados privilégios de ordem e carácter divinos.

  A moral cristã, em muita gente, não passa da esfera do entendimento, da região puramente mental; jamais atinge o círculo do sentimento, a zona do coração. É do coração, no entanto, que vêm o bem ou o mal, a virtude ou o vício.

  O orgulho, sob os seus aspectos multiformes, é a grande pedra de tropeço da Humanidade. É o pecado original, que os mortais trazem consigo, ao aportarem às plagas deste mundo. Daí a origem de todos os atritos, dissídios e odiosidades que mantêm os homens em atitude de mútuas hostilidades.

  A virtude, como alguém já disse, exclui os cálculos: é espontânea, natural. Os humildes de posição, de saber, ou de haveres estão sujeitos às circunstâncias que os cercam na presente existência. Não há mérito nem virtude por isso, além do modo como suportam e se submetem às inevitáveis condições de precariedade em que se encontram.

  A humildade de espírito, ao contrário, é fruto de uma conquista, de certo estado de elevação moral da alma. E, graças a essa virtude, o Espírito pode avançar com passo seguro na realização dos seus gloriosos destinos. O orgulho não só oblitera o entendimento, senão que impossibilita o Espírito de receber as inspirações e as graças emanadas do alto.

  Não é possível aprender sem possuir humildade de coração. Quem é humilde reconhece que ignora e está sempre pronto a assimilar os ensinamentos que o céu outorga aos mortais, por este ou aquele processo.

  A inibição mental é, as mais das vezes, consequência directa do orgulho. A senda da virtude, como o caminho da sabedoria, só podem ser perlustrados pelos humildes de espírito.

  O orgulho é um entrave do espírito em todos os sentidos. É o legítimo obstáculo às reconciliações, ao perdão, à unidade na fé e na ciência. Consequentemente é o factor da discórdia, desde o simples arrefecimento de afectos, até ao ódio que separa, persegue e mata; é a eterna cizânia, que mantém os homens separados, intranquilos, sobressaltados; é o dispersador de forças e de elementos prestáveis e úteis, que poderiam militar conjuntamente com grande eficiência, em prol das boas causas; é finalmente, o fermento que neutraliza as intenções e as aspirações elevadas de muitos, conservando-os na esterilidade.

  Razão, pois, de sobra assiste ao divino Instrutor da Humanidade, subordinando à humildade de espírito todas as bênçãos celestes, como também o acesso aos tabernáculos eternos.

Tentação ~

  1ª FORMA: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães, visto que tens fome.

  Resposta: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. (Lucas, 4:3 e 4)

  Moralidade: A fraqueza da carne é uma das portas abertas às tentações. Por ela o Diabo penetra, agindo com grande êxito. Essa porta denomina-se luxúria ou incontinência, gulodice ou intemperança e, tudo o mais que se relaciona com as sensações físicas, cuja sede é a matéria.

  É do domínio da carne sobre o espírito que se originam todos os vícios repugnantes, tais como o alcoolismo, a concupiscência, a gula, o tabagismo, a cocainomania.

  O corpo, quando não é dirigido pelo Espírito, destrói-se a si mesmo através das continuadas sensações e exaltações a que se submete. Daí o dizer profundamente sábio do Mestre: Aquele que muito quer gozar a vida, perdê-la-á; o que renunciar, porém, à vida, por amor de mim, ganhá-la-á.

  Todas as doenças têm origem nas fraquezas da carne, as quais levam o homem a transgredir constantemente as leis de higiene, leis naturais e, por isso mesmo, religiosas. A enfermidade é herança do pecado — reza o Evangelho.

  A matéria não raciocina, não tem inteligência nem discernimento. É sede, apenas, de sensações. Do abuso dessas sensações nascem as exigências caprichosas da animalidade, as quais arrastam o homem ao pélago dos vícios e à voragem do crime.

  Como sair de tal situação? como dominar a carne, fechando assim ao "Diabo" uma das portas por onde tantas vezes consegue levar a cabo os seus malévolos intentos?

  Vence-se a carne não lhe concedendo tanta atenção, não atendendo aos seus arrastamentos e caprichos; fortificando, enfim, o Espírito com o pão do céu, que é a palavra de Deus, a verdade eterna revelada ao mundo pelo seu Verbo humanado — Jesus-Cristo.

  Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (1), eis de que os homens se esquecem, embevecidos como geralmente andam com os cuidados do corpo. Os que só vivem da carne e para a carne, ficam sujeitos às fraquezas da carne.

  O remédio é a palavra de Deus — é o pão do Espírito, pois este, como o corpo, também tem fome e tem sede, necessidades estas que precisam ser satisfeitas. Fortalecer ao máximo o Espírito, dando ao corpo tão somente o necessário para sua conservação — eis a chave com que se cerra para sempre uma das portas por onde o "Diabo" costuma penetrar. Assim procedendo, curaremos também da matéria. Graças à direcção do Espírito, o corpo se embelezará, far-se-á forte, alcançando longevidade acentuada.

  2.ª FORMA: Galgando o pináculo do templo, disse-lhe o Diabo: Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque escrito está: Aos seus anjos ordenará a teu respeito e, eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares em alguma pedra.

  Resposta: Também escrito está: Não tentarás o Senhor teu Deus. (Lucas, 4:9 a 12.)

  Moralidade: O orgulho com as suas modalidades — presunção, arrogância, vaidade, soberba — constitui a segunda porta por onde o Diabo ingressa, arrastando o homem a quedas desastrosas.

  O orgulho é um desafio que o homem faz à Divindade. Desse acto de insânia ele sai sempre vencido e desapontado.

  Daí a justeza desta sentença evangélica: Aquele que se exalta será humilhado.

  Nenhuma paixão exerce tão nefasta influência sobre o homem como o orgulho, cujas raízes estão mergulhadas nas profundezas do egoísmo. Por esta razão é difícil vencê-lo, como também porque assume aspectos multiformes e enganadores.

  O orgulho não é peculiar somente à gentilidade. Ele invade a região da fé, penetra o coração do crente, chegando mesmo a alimentar-se da própria crença de suas vítimas.

  E de quantas formas se reveste! Ora é a cólera rubra que cega o entendimento, que enfurece ao ponto de nivelar o homem à fera bravia. Ora é a presunção arrogante que lhe oblitera a mente e calcina as fibras do coração. Ora é a confiança ilimitada em si mesmo, em pretensos dons e qualidades, na infalibilidade de seus juízos próprios, na superioridade excelsa de sua inteligência. Ora, ainda, na exagerada susceptibilidade de sentimentos, descobrindo por toda a parte desatenções, ofensas e desprezo à sua augusta personalidade. Ora, finalmente, na atitude de hostilidade ou desdém para com todos os empreendimentos e todos os feitos onde a actuação própria não foi exercida, onde o seu juízo não foi emitido nem consultado.

  E, assim, o orgulho envolve o homem numa trama perigosa e traiçoeira, chegando ao prodígio de fazer com que haja quem se orgulhe de ser bom, de possuir certas virtudes e até de ser humilde!

  Se és Filho de Deus, lança-te do pináculo abaixo, pois os anjos te ampararão: eis o desafio dirigido a Deus, às suas leis sábias e imutáveis. É como se dissesse: Homem, és santo e bom; és poderoso e sábio; não deves temer os males, sejam eles quais forem.

  Não te deves incomodar com coisa alguma; não é preciso providência, nem cautelas, nem prudência. Deixa o vigiar e orar para os fracos e pusilânimes; os anjos velarão por ti, impedindo que sejas vítima de mistificações, evitando, enfim, que qualquer dano possa alcançar-te. Arroja-te, sê ousado e intimorato; tens em ti mesmo todo o poder, todo o valor, toda a sabedoria! Assim fala o orgulho, desafiando as leis naturais e provocando a reacção que se não faz demorar: a humilhação do orgulhoso.

  Como nos livrarmos de inimigo que se mascara assim para nos vencer?

  Guardando na mente e no coração a advertência do Mestre: Não tentarás o Senhor teu Deus, isto é, serás sempre humilde, reconhecendo a tua ignorância e fraqueza, através do estudo constante que deves fazer de ti mesmo; agirás sempre com prudência e calma, prevenindo tudo o que estiver ao teu alcance e jamais abusando dos dons e faculdades de teu Espírito; orarás e vigiarás constantemente, pois assim estarás estabelecendo a tua comunhão com a fonte de todo o poder que é Deus, esse Deus a quem nunca desafiarás deixando-te possuir da louca pretensão de submetê-lo aos teus caprichos e veleidades. Dessa sorte, terás fechado outra porta por onde o "Diabo", a cada passo, penetra, invadindo os teus domínios.

  3.ª FORMA: De novo o Diabo o levou a um monte muito alto e, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e, disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.

  Resposta: Vai-te Satã; pois está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e, só a ele darás culto. (Mateus, 4:8 a 10.)

  Moralidade: A cobiça, a ambição desmedida o apego às riquezas e à fascinação do poder e das glórias mundanas são, em conjunto, a terceira porta aberta às investidas do Diabo.

  Ser idólatra não importa somente no feiticismo que consiste em render culto às imagens. A idolatria mais perniciosa é aquela que se verifica na avareza, no apego às temporalidades, na sede de poder e de gloríolas do século; e, finalmente, na adoração de si mesmo ou egolatria.

  Indescritíveis e inumeráveis são os crimes perpetrados no mundo pela ambição aliada à cobiça. Crimes individuais e crimes colectivos. As guerras cruentas que ensoparam a Terra, por vezes, de sangue e de lágrimas, estendendo o negro véu da viuvez e da orfandade sobre milhares de mulheres e crianças, não têm outra origem, nem outra explicação além da cupidez de corações ávidos de ouro e de pruridos de hegemonia.

  As barreiras alfandegárias que encarecem e dificultam a vida das nações; o despotismo dos governos imperialistas; as tiranias oligárquicas e ditatoriais; todos os vexames e sacrifícios que se têm imposto impiedosamente aos povos, são legítimos frutos dessa insaciável sede de domínio, de glórias e de supremacias, sede maldita que oblitera a razão e destrói as fibras do sentimento humano.

  Por isso, dizia o Apóstolo das gentes:

  A raiz de todos os males é a cobiça.

  E aconselhava: Não vos fascineis com as grandezas: acomodai-vos às coisas humildes.

  Satã entronizou o bezerro de ouro e, com esse manipanso vai enlouquecendo homens e nações. Do alto do monte das ambições o "Diabo" tem precipitado indivíduos e povos, depois de lhes haver prometido o sempre cobiçado domínio da Terra. No que respeita ao passado, sabemos que a Babilónia, o Egipto, a Grécia e a Roma dos Césares se despenharam no abismo. Quanto ao presente, vimos os Impérios Centrais, qual nova Cafarnaum, querendo galgar as nuvens, cair no pó.

  Cumpre, portanto, fecharmos a terceira porta atendendo ao conselho do Mestre: Ao senhor teu Deus adorarás e, só a ele darás culto.

  Adorar a Deus e só a ele prestar culto significa amar o próximo como a si mesmo e viver segundo a justiça. Esta é a realidade da vida. O "Diabo" continua, hoje como ontem, iludindo o homem com falaciosas promessas. O mundo não é propriedade do Diabo nem o será jamais dos ambiciosos. O homem é apenas usufrutuário da Terra por tempo incerto e limitado. O melhor uso que ele pode fazer de sua estada, nesta estância da vida, é iluminar o Espírito e fortalecer a vontade, fechando ao Diabo as portas da fraqueza da carne, do orgulho e da cobiça.

  Desse modo proclamará a sua independência, adorando e servindo a Deus através do culto da justiça, do amor e da verdade.

Ressurreição ~

  Vivemos no mundo da ilusão. A verdade não está naquilo que vemos, mas precisamente no que não vemos. Atrás do que cai sob o domínio de nossos olhos é que ela se oculta. Jogando com as faculdades do Espírito e, não com os sentidos, é que se surpreende a realidade das coisas.

  Ainda hoje há muita gente que supõe a Terra fixa, porque não a vê mover-se. Outros há que imaginam as cores como propriedade dos corpos; e se lhes dissermos que as cores não existem, são aparências ou impressões particulares produzidas na retina pela luz, segundo a sua natureza própria ou segundo a maneira como é reflectida pelos corpos duvidarão da nossa integridade mental.

  São conhecidos os fenómenos denominados — miragem — que se observam nos desertos arenosos da África, onde o viandante, por ilusão de óptica, vê nitidamente na atmosfera a imagem de objectos distantes e, até mesmo cidades, oásis, lagos, etc. E assim somos enganados a cada instante pelos nossos sentidos a propósito daquilo que nos afecta como expressão de realidade e, não passa de ficções...

  Dentre todas as ilusões que nos cercam, a maior e a de mais sérias consequências é a morte. Nada nos parece mais real e verdadeiro do que ela. É o epílogo fatal da vida, segundo o juízo geral. A própria ciência oficializada, longe de combater esse funesto erro, é a primeira a fortalecê-lo, apresentando pretensas documentações em seu abono. Não lhe aproveitam, neste particular, os exemplos do passado com respeito às muitas quimeras e fantasias sustentadas e difundidas como dogmas intangíveis pelo ensino escolástico da época.

  E, por ser assim, a morte, no sentido em que é considerada, vem gozando foros de realidade inconteste, de facto inconfundível e inexorável, não passando, no entanto, da maior de todas as ilusões de que a Humanidade tem sido e continua sendo vítima.

  Já disse alguém, com bastante justeza, que a pior mentira é a que mais se parece com a verdade. A morte está exactamente nesta condição; parecendo, segundo todos os aspectos, a última palavra no cenário da existência humana, não é mais que simples dissimulação da vida.

  A vida — eis a realidade verdadeira. É ela que vence, é ela que triunfa sempre, sobrepondo-se a todas as metamorfoses, a todas as contingências a que se submete na sua maravilhosa trajectória pela senda da eternidade.

  A vida não é o que vemos: o que vemos são apenas as suas manifestações através das formas organizadas. Quereis saber o que é a alma? dizia Santo Agostinho, olhai um corpo sem ela, O corpo com todos os seus órgãos; o corpo intacto, completo e perfeito não passa de um cadáver se lhe escapa a alma, sede da vida. Sem que lhe falte coisa alguma do que se vê, falta-lhe tudo, porque lhe falta a vida que se não vê.

  A semente nos oferece outro exemplo edificante. Divida-se em algumas fracções uma semente em óptimas condições germinativas. Reunindo cuidadosamente essas partes, sem que das mesmas se perca a mais insignificante parcela, reconstitua-se a semente e, lance-se à terra: jamais germinará. Porquê? Porque ao fragmentá-la evolou-se aquilo que os nossos olhos não vêem e, que é tudo: a vida.

  A vida não é a forma organizada, por mais complexa que essa forma seja. Ora, como vemos a forma e não vemos a vida que a anima, tomamos, por isso, o efeito pela causa, concedendo à morte o império sobre a vida, quando, na verdade, é esta que fatalmente reina sobre aquela.

  Difícil, no entanto, tem sido convencer o homem deste facto. A ilusão da morte dominou-o de tal maneira que ele se obstina em considerá-la como flagrante realidade.

  Sendo a ressurreição, como é, um fenómeno natural que a cada instante se opera, no meio em que nos encontramos, é ainda considerada como utopia pela ciência mundana e, como milagre pela fé dogmática.

  A passagem do Homem-Deus pela Terra, assinalando o acontecimento mais extraordinário da História humana, teve por objecto, em síntese, revelar ao homem a imortalidade através de um testemunho positivo, palpável, categórico.

  Jesus (i) veio a este mundo exemplificar o poder da vida sobre a morte; morreu para que todos vissem como se morre; ressuscitou para que todos vissem como se ressuscita. O epílogo de sua existência terrena não foi a agonia do Calvário: foi a ascensão de Betânia. Da mesma sorte, o triunfo majestoso do seu ideal não se verificou no patíbulo da cruz, mas sim nas suas aparições a Madalena, aos dois peregrinos de Emaús e, finalmente, aos apóstolos no cenáculo de Jerusalém.

  O Cristianismo é, por excelência, a religião da vida em oposição às religiões da morte. "Deixai aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos. Deus, não é Deus de mortos: para Ele todos vivem" — assim predicava o Mestre divino. Não obstante, os seus discípulos, testemunhas oculares da imortalidade manifesta no seu Mestre, dificilmente se renderam à evidência dessa revelação, a maior certamente de todas que, na sua misericórdia, o céu tem outorgado à Terra.

  Paulo (i), o insigne pioneiro da nova fé, convertido pelo Cristo redivivo, insistia continuamente sobre a imortalidade, fazendo girar em torno desse assunto todas as suas prédicas e epístolas.

  Jesus (i) ressuscitou: eis a nova alvissareira para a Humanidade Eis a esperança — mais que a esperança — eis a fé; mais que a fé, eis a certeza, eis o facto positivo e palpável da continuidade da vida além do túmulo.

  É necessário, acentuava o Converso de Damasco, que este corpo corruptível se revista de incorruptibilidade; que esta forma mortal se revista de imortalidade. Semeia-se em vileza, ressuscita-se em glória. O derradeiro inimigo a vencer é a morte. Quando, pois, este nosso corpo perecível e mortal se revestir de glória e de imortalidade, então diremos: tragada foi a morte na vitória! Onde está, ó morte, o teu poder?

  São essas palavras de vida que as vozes do céu hoje rememoram, anunciando e testemunhando mais uma vez a eterna verdade; nada morre, nada se extingue, nada se aniquila na Natureza. É a vida e, não a morte, que domina a criação, entoando o cântico sublime da imortalidade. É o Espírito que vence a morte e, não a morte que vence o Espírito.

  A própria matéria não é destruída na mais pequenina parcela. O seu aniquilamento é aparente, é ilusório; as formas se desfazem para se organizarem em seguida sob aspectos novos e mais aperfeiçoados. A ressurreição é a aurora perenal que envolve o Universo; é o sol da vida, sol sem ocaso, pairando majestoso no Levante sempiterno.

  Hosanas a Jesus ressuscitado, imagem da vida eterna, testemunho vivo da imortalidade, símbolo da vitória do Espírito sobre as formas perecíveis!

  Tu és, como bem o disseste, a ressurreição e a vida; o que crê em ti, ainda que esteja morto, viverá; e todo o que vive e crê em ti, nunca morrerá!

/...
(1) Deus/Inteligência organizadora. Adenda desta publicação.

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.”

                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i), "Em torno do Mestre", Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Humildes de espírito / Tentação / Ressurreição, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)  

quarta-feira, 15 de março de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza 
(Milésima segunda noite dos contos árabes) 

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié 

Prefácio da Revue Spirite 

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por O Livro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado e, cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias. 

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa. 

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retracto e a médium, que não sabe desenhar e, que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária. 

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa. 

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos e, sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié. 
A. K. 

Uma Noite Esquecida 


Havia em Bagdá uma mulher do tempo de Aladim; é a sua história que vou narrar: 

Num dos subúrbios de Bagdá, não longe do palácio da sultana Sheherazad, morava uma velha mulher chamada Manouza. Feiticeira das mais apavorantes, essa velha era motivo de terror em toda a cidade. À noite passavam-se em sua casa coisas tão assustadoras que, mal se punha o sol, ninguém se aventurava a passar por ali, a não ser algum homem apaixonado, à procura de um filtro para a sua amante rebelde, ou uma mulher abandonada, em busca de um bálsamo para pôr na ferida que o amante, ao desampará-la, lhe havia provocado. 

Certo dia em que o sultão estava mais triste que de costume e a cidade se encontrava em grande desolação porque queria mandar matar a sultana favorita e que, pelo seu exemplo, todos os homens eram infiéis, um jovem deixou a sua magnífica habitação, situada ao lado do palácio da sultana. Esse jovem usava uma túnica e um turbante de cores sombrias; mas sob essas simples vestimentas havia um grande ar de distinção. Procurava ocultar-se ao longo das casas, como se fora um amante que temesse ser surpreendido. Dirigia-se para os lados da casa de Manouza, a feiticeira. Uma viva ansiedade estampava-se no seu rosto, denunciando a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas e praças rapidamente, porém usando de grandes precauções. 

Chegando à porta, hesitou por alguns minutos, decidindo-se depois a bater. Durante um quarto de hora padeceu angústias mortais, porque ouvia ruídos que nenhum ouvido humano até então havia escutado; uma matilha de cães uivava com ferocidade, gritos lamentosos se faziam ecoar e se percebiam gemidos de homens e mulheres, como só acontece no fim de uma orgia; e, para iluminar todo esse tumulto, luzes correndo de cima a baixo da casa, fogos-de-artifício de todas as cores. Depois, como que por encanto, tudo cessou: as luzes se apagaram e abriu-se a porta. 

II 

O visitante ficou confuso por alguns momentos, sem saber se devia entrar no corredor escuro que surgia à sua vista. Por fim, armando-se de coragem, penetrou audaciosamente. Depois de haver caminhado às cegas o espaço de trinta passos, encontrou-se diante de uma porta que abria para uma sala, iluminada apenas por uma lamparina de cobre de três bicos, suspensa do centro do tecto. 

A casa que, conforme o barulho ouvido da rua, deveria ser muito habitada, tinha agora um ar deserto; a sala, imensa e, que pela sua construção devia ser a base do edifício, estava vazia, se exceptuarmos os animais empalhados de todo o tipo que a guarneciam. 

No meio dessa sala havia uma pequena mesa coberta de livros de magia e, à sua frente, numa grande poltrona, estava sentada uma velhinha de apenas dois côvados de estatura e, de tal maneira agasalhada com xailes e turbantes que era impossível divisar os seus traços. À aproximação do estranho ela levantou a cabeça e mostrou-lhe o mais terrível rosto que se possa imaginar. 

“Eis que estás aqui, Sr. Noureddin, disse ela, fixando os olhos de hiena no rapaz que entrava; aproxima-te! Faz vários dias que o meu crocodilo de olhos de rubi me anunciou a tua visita. Dize se é de um filtro que precisas, ou de fortuna. Mas, que digo eu, fortuna! A tua não faz inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico, assim como és o mais belo? Provavelmente é um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que tem a ousadia de ser cruel contigo? Enfim, nada devo dizer; nada sei; estou pronta a ouvir-te as dificuldades e a dar-te os remédios necessários, desde, naturalmente, que a minha ciência tenha o poder de te ser útil. Mas por que me olhas assim e não avanças? Estarias com medo? Tal como me vês eu te amedronto, por acaso? Outrora fui bela; mais bela que todas as mulheres existentes em Bagdá; foram os desgostos que me tornaram tão feia assim. Mas que te importam os meus sofrimentos? Aproxima-te: eu escuto-te; apenas não te posso conceder mais que dez minutos; apressa-te, portanto.” 

Noureddin não estava muito tranquilo; entretanto, porque não quisesse mostrar à velha a perturbação que o agitava, avançou e disse-lhe: “Mulher, venho aqui por uma coisa grave; da tua resposta depende a sorte da minha vida; vais decidir da minha felicidade ou da minha morte. Eis do que se trata: 

“O sultão quer mandar matar Nazara; eu amo-a; vou contar-te de onde vem esse meu amor e pedir-te que me tragas um remédio, não à minha dor, mas à sua infeliz situação, porquanto não desejo que ela morra. Sabes que o meu palácio é vizinho ao do sultão; os nossos jardins tocam-se. Há cerca de seis semanas, passeando à noite nos meus jardins, ouvi uma música encantadora, acompanhada da mais deliciosa voz de mulher que jamais ouvira. Querendo saber de onde vinha, aproximei-me dos jardins vizinhos e percebi que vinha de um caramanchão de verdura, habitado pela sultana favorita. Fiquei vários dias absorvido por esses sons melodiosos; sonhava noite e dia com a bela desconhecida, cuja voz me havia seduzido, porque, é preciso que te diga, no meu pensamento só podia ser bela. Todas as noites eu passeava nas mesmas áleas onde tinha ouvido aquela maravilhosa harmonia. Durante cinco dias foi em vão; finalmente, ao sexto dia a música fez-se ouvir novamente; já não me podendo conter, aproximei-me do muro e vi que era preciso despender pouco esforço para o escalar. 

“Após alguns momentos de hesitação, tomei uma grande decisão: passei do meu para o jardim vizinho; ali percebi não uma mulher, mas uma huri, a huri favorita de Maomé, uma maravilha, enfim! À minha vista ela se assustou um pouco mas, lançando-me a seus pés, supliquei-lhe que não tivesse nenhum receio e me ouvisse; disse-lhe que o seu canto me havia atraído e garanti-lhe que nas minhas atitudes não encontraria senão o mais profundo respeito; ela teve a bondade de me ouvir. 

“Passámos a primeira noite a falar de música. Também cantei e me ofereci para acompanhá-la; ela consentiu e, marcamos encontro para o dia seguinte, à mesma hora. Naquele momento estava mais tranquila; o sultão estava no seu conselho e a vigilância era pequena. As duas ou três primeiras noites passaram-se inteiramente com música; mas a música é a voz dos amantes e, a partir da quarta noite, já não éramos estranhos um ao outro: nós nos amávamos. Como era bela! Como a sua alma também o era! Planeamos a fuga diversas vezes. Ah! por que não a realizámos? Eu seria menos infeliz e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria ao ponto de ser colhida pela foice que vai arrebatá-la à luz. 

(Continua na próxima publicação.) 

/… 

(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite – Uma Noite Esquecida (Primeiro artigo), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858, 16º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)