Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 29 de setembro de 2012

a pedra e o joio~


A teoria corpuscular

   Os artigos aqui reunidos constituem uma crítica espírita ao livro do Sr. Hernani Guimarães Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, louvado por diversos confrades, que o consideraram como verdadeiro acontecimento doutrinário do ano de 1961. Crítica espírita, e não apenas crítica, porque elaborada à luz dos princípios doutrinários, com a finalidade exclusiva de verificar o enquadramento ou não da teoria nesses princípios. Foram publicados na secção espírita do “Diário de São Paulo”.

   O livro criticado é apenas o primeiro volume de uma série, cujo segundo volume já está circulando há algum tempo. Alguns leitores poderão pensar que a nossa crítica é precipitada, que devíamos esperar a conclusão da série. Mas não é assim. Porque, nesse primeiro volume, o autor apresenta as bases da sua teoria corpuscular do espírito. Os demais volumes servirão somente para completar a exposição. A nossa crítica é formulada aos fundamentos da teoria, sendo válida, portanto, para toda a sua estrutura.

   As intenções do Sr. Guimarães Andrade são boas. Seu desejo expresso é o de colaborar para que o Espiritismo se firme no meio científico. Não obstante, verá o leitor que a teoria corpuscular se propõe a reformar a doutrina espírita e a substituí-la. Toda a codificação kardeciana é considerada como coisa do passado. Essa a razão que nos levou a examinar a teoria. Se ela, realmente, abrisse perspetivas novas para o Espiritismo, não teríamos dúvida em reconhecê-lo.

   Deixemos bem claro esse ponto. Em primeiro lugar, como o leitor verá no correr dos artigos, somos amigos pessoais do confrade Guimarães Andrade. Bater palmas a um amigo é um dever que se cumpre com alegria. Em segundo lugar, no Espiritismo não existem motivos de ordem sectária, eclesiástica, financeira, política, ou de qualquer outra espécie, que nos impeçam de reconhecer a verdade nos opositores, quanto mais nos colaboradores. Esta crítica não é ditada, pois, senão pela consciência das responsabilidades doutrinárias; consciência que, como sabem todos os espíritas, implica permanente atitude de vigilância e de defesa dos princípios do Espiritismo.

   Kardec nos legou a codificação há pouco mais de cem anos. De lá para cá, o mundo evoluiu rapidamente e os conhecimentos humanos se alargaram de maneira espantosa. A vertigem do progresso atordoa os homens, e desse atordoamento não escapam os espíritas. Nada mais natural que o aparecimento, em nossas dias, de tantas tentativas de reforma do Espiritismo. Entendendo que a codificação já foi ultrapassada pelo desenvolvimento das ciências, muitos confrades se esforçam para ajudá-la a recuperar o terreno perdido. As intenções, como vemos, são boas.

   Acontece, porém, que o Espiritismo é doutrina do futuro e não do passado ou do presente. Como os Evangelhos, que depois de dois mil anos continuam a nos empurrar para a frente, a codificação está ainda muito longe de ter sido superada. Pelo contrário, somente agora as ciências estão dando os primeiros sinais de se aproximarem do Espiritismo. Dessa maneira, os confrades aflitos, que se esfalfam na dura tarefa de “atualizar o Espiritismo”, estão apenas equivocados.

   No caso do confrade Guimarães Andrade o equívoco é tanto maior, quanto se trata de uma tentativa de enquadrar o Espiritismo na sistemática das ciências materialistas; praticamente, uma tentativa de prender a doutrina espírita numa gaiola de conceitos físicos, materiais. Os confrades que louvaram o livro o fizeram por espírito fraterno, ou por não terem compreendido a teoria que nele se expõe. Tendo tido o cuidado de examinar a teoria, podemos oferecer a esses confrades uma contribuição sincera, para que melhor ponderem a respeito. Os que não aceitarem a nossa contribuição deverão pelo menos reexaminar o livro, com suas próprias luzes, pois trata-se de grave problema que está surgindo no movimento espírita brasileiro.

   Na verdade, esse problema não deveria tomar corpo, uma vez que a teoria corpuscular não oferece nenhuma consistência do ponto de vista científico. Mas, como o livro é escrito para o povo, e o povo nada conhece das questões científicas nele tratadas, o perigo é evidente. O Sr. Guimarães Andrade, apoiado ainda pelos confrades que o louvam na imprensa espírita, vai fazendo adeptos. Já está surgindo entre nós uma corrente de “espiritismo corpuscular”, que ao lado de outras correntes em desenvolvimento poderá completar a obra de enfraquecimento do movimento espírita brasileiro.

   Para que o leitor possa bem avaliar o que isso representa, queremos lembrar a situação ridícula em que se colocaria um cidadão de poucas letras que se propusesse a discutir numa assembleia de letrados. O movimento espírita brasileiro ainda não dispõe de um corpo de sábios, de homens de ciência, capazes de enfrentar o problema doutrinário neste ou naquele campo das especializações científicas. Propormo-nos a apresentar uma teoria científica do espírito, sem as credenciais necessárias para isso, sem nos servirmos do aparato técnico indispensável, é simplesmente querermos provocar o riso.

   A fragilidade da teoria corpuscular é evidente. A análise rápida que fizemos, em artigos de jornal, revela numerosas contradições. Que diríamos de uma análise mais profunda, realizada por especialistas dos vários ramos da ciência em que a teoria se apoia? Mesmo no plano filosófico, de nossa especialidade, a análise aprofundada da teoria seria desastrosa. O pouco que dissemos mostrará isso aos que tiverem “ouvidos de ouvir”. Mas um físico, um matemático, um biólogo, o que diriam, num exame aprofundado da teoria?

   Nossa intenção não foi a de esmiuçar o livro, mas tão-somente a de mostrar as suas incongruências mais gritantes, e de fazê-lo, não no plano filosófico ou científico, mas no plano espírita. Escrevemos para o meio doutrinário. Mesmo porque o livro só interessa ao nosso meio. Fora dele, não terá repercussão. Não há nada, nessa tentativa de formulação teórica, que possa interessar aos homens de ciência. Dessa maneira, o livro só tem, na realidade, um sentido: o de lançar confusão no meio espírita e levá-lo a uma posição desairosa.

   Não acusamos desse crime o confrade Guimarães Andrade. Pelo contrário, já dissemos que as suas intenções são boas. Mas o apóstolo Paulo exclamava, em Romanos, 7:24: “Não faço o bem que desejo; mas o mal que não quero, esse faço”. Se a Paulo aconteceu assim, depois da visão na Estrada de Damasco, não é demais que aconteça a nós, quando tentamos avançar além das nossas forças. A teoria corpuscular do espírito não faz o bem que o autor pretende, mas o mal que ele por certo não queria. Isso decorre, evidentemente, da fonte espiritual que o impulsiona nesse difícil caminho das formulações científicas. Seríamos felizes se o nosso trabalho servisse de advertência ao confrade, quanto aos perigos a que se expõe.

   Depois da publicação dos nossos artigos, alguns confrades lançaram novos louvores à teoria e ao seu autor, às vezes sem nenhum propósito. Ao que parece, quiseram apenas oferecer-lhe o testemunho da sua solidariedade. Gesto nobre, sem dúvida, mas extemporâneo. Sim, pois não atacamos o confrade, nem quisemos diminuí-lo. Gostaríamos que esses companheiros, em vez de elogiarem com palavras retumbantes a nova teoria, ou de a defenderem com golpes de ironia, fizessem o que fizemos: uma análise objetiva da mesma. Porque, em matéria de ciência, não valem os louvores. Por mais que louvemos um trabalho errado, não o emendaremos.

   Deixamos, pois, a nossa crítica em mãos dos leitores desapaixonados, que não se empolgam facilmente com formulações de aparência brilhante. Oferecemo-la aos confrades conscientes da gravidade da hora que atravessamos e da seriedade do Espiritismo. Se estivermos errados, que nos revelem o nosso erro. Não teremos dúvida em voltar atrás. Será mesmo com alegria que nos penitenciaremos. Seria mil vezes preferível termos errado por excesso de zelo, na defesa da doutrina, a vermos confirmada a posição difícil do autor da teoria.

   Para terminar, queremos lembrar que, na própria Psicologia, as teorias elementares ou atómicas já estão superadas. Wilhelm Dilthey, o grande filósofo e psicólogo alemão, reagindo contra as correntes elementaristas do século passado, dizia em seu livro O Mundo do Espírito, edição Aubier de 1947: “A vida psíquica é originalmente e sempre, de suas formas primárias até as mais elevadas, uma unidade. Não é feita de partes; não se compõe de elementos; não é uma composição; não é um resultado da junção de átomos sensíveis ou afetivos: é uma unidade primitiva e fundamental que se encontra em toda parte”.

   Quando, na própria Psicologia, – que trata do espírito em sua manifestação no plano material, – considera-se inadmissível a conceção atómica, derivada das ciências físicas, como admitirmos semelhante atitude no plano real do Espírito?

S. Paulo, 1962.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A teoria corpuscular, 10º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 22 de setembro de 2012

| o grande enigma ~

Deus | e o Universo

Algumas objeções são, no entanto, de prever. Pode-se dizer, por exemplo: as teorias sobre a matéria, sobre a força, sobre a inteligência, tais as que formulavam outrora as escolas científicas e filosóficas, tiveram o seu tempo. Novas conceções as substituem. A física atual nos demonstra que a matéria se dissocia pela análise, se resolve em centros de forças, e que a força se reabsorve no éter universal.

Sim, certamente, os sistemas envelhecem e passam; as fórmulas gastam-se; mas a ideia eterna reaparece sob formas cada vez mais novas e mais ricas. Materialismo e espiritualismo são aspetos transitórios do conhecimento. Nem a Matéria, nem o Espírito são o que deles pensavam as escolas de outrora, e talvez a matéria, o pensamento e a vida estejam ligados por laços estreitos, que começamos a entrever.

Certos factos, no entanto, subsistem e outros problemas se impõem. A matéria e a força se reabsorvem no éter; mas, que é o éter? É, diz-nos, a matéria-prima, o substrato definitivo de todos os movimentos. O próprio éter é atravessado por movimentos inumeráveis: radiações luminosas e caloríficas, correntes de eletricidade e de magnetismo. Ora, é perfeitamente necessário que esses movimentos sejam regulados de certa maneira.

A força gera o movimento, mas a força não é a lei. Cega e sem guia, ela não poderia produzir a ordem e a harmonia no Universo. Estas são, no entanto, manifestas. No cimo da escala das forças aparece a energia mental, a vontade que constrói as fórmulas e fixa as leis.

A inércia, dir-nos-ão, ainda é relativa, visto que a matéria é energia concentrada. Na realidade, todas as partes constitutivas de um corpo se movem. Entretanto, a energia armazenada nesses corpos só pode entrar em potência de ação quando a matéria componente é dissociada. Não é o caso dos planetas, cujos elementos representam a matéria em seu último grau de concreção. Seus movimentos não se podem explicar por uma força interna, mas somente pela intervenção de uma energia exterior.

– “A inércia – diz G. Le Bon  – é a resistência de causa desconhecida, que os corpos opõem ao movimento ou mudança de movimento. Ela é suscetível de medida que se define pelo termo massa. A massa é, pois, a medida da inércia da matéria, seu coeficiente de resistência ao movimento.”

Desde Pitágoras até Claude Bernard, todos os pensadores afirmam que a matéria é desprovida de espontaneidade. Toda tentativa de emprestar à substancia inerte uma espontaneidade – capaz de organizar e de explicar a força – tem sido em vão.

É preciso, pois, aceitar a necessidade de um primeiro motor transcendente para explicar o sistema do mundo. A mecânica celeste não se explica por si mesma, e a existência de um motor inicial se impõe. A nebulosa primitiva, mãe do Sol e dos planetas, era animada de um movimento giratório. Mas quem lhe imprimira esse movimento? Respondemos sem hesitar: Deus.

É somente a ciência contemporânea que nos revela Deus, o Ser Universal? O homem interroga a história da Terra; evoca a memória das multidões mortas, das gerações que repousam sob a poeira dos séculos; interroga a fé crédula dos simples e a fé raciocinada dos sábios; e, por toda parte, acima das opiniões contraditórias e das polémicas das escolas, acima das rivalidades de casta, de interesses e de paixões, ele vê os transportes, as aspirações do pensamento humano para a Causa que vela, augusta e silenciosa, sob o véu misterioso das coisas.

Em todos os tempos e em todos os meios a queixa humana sobe para esse Espírito divino, para essa Alma do mundo que se honra sob nomes diversos, mas que, sob tantas denominações –  Providência, grande Arquiteto, Ser supremo, Pai celeste –, é sempre o Centro, a Lei, a Razão universal, em que o mundo se conhece, se possui, encontra sua consciência e seu eu.

E é assim que, acima desse incessante fluxo e refluxo de elementos passageiros e mutáveis, acima dessa variedade, dessa diversidade infinita dos seres e das coisas que constituem o domínio da Natureza e da Vida, o pensamento encontra no Universo esse princípio fixo, imutável, essa Unidade consciente em que se unem a essência e a substância, fonte primeira de todas as consciências e de todas as formas, visto que consciência e forma, essência e substância, não podem existir uma sem a outra. Elas se unem para constituir essa Unidade viva, esse Ser absoluto e necessário, fonte de todos os seres, ao qual chamamos Deus.

A linguagem humana é, entretanto, impotente para exprimir a ideia do Ser infinito. Desde que nos servimos de nomes e de termos, limitamos o que é sem limites. Todas as definições são insuficientes e, de certo modo, induzem o erro. Entretanto, o pensamento para se exprimir precisa de termo. O menos afastado da realidade é aquele pelo qual os padres do Egito designavam Deus: Eu sou, isto é, eu sou o Ser por excelência, absoluto, eterno, e do qual emanam todos os seres.
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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 2 de 5, 5º fragmento da obra.
(imagem: Salvador Dali, 1950)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Victor Hugo e o invisível ~


A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo

   O grande poeta francês, Victor Hugo, sobre quem desejamos esboçar modestamente partes de seu pensamento filosófico e religioso, sustentou notáveis pontos de vista, que expressou em linguagem poética profunda. Poder-se-ia dizer que em seu livro Deus, Literatura e Filosofia manifestou as bases de um que-fazer filosófico e religioso. O poeta ouvia vozes que o instruíam sobre "coisas prodigiosas e surpreendentes". Essas vozes lhe falaram sobre o sentido da vida e as angústias do homem para encontrar o Ser Supremo como embasamento de tudo o que existia. Essas vozes, porém, apenas o fizeram compreender que o homem é um inseto que destrói suas asas ao chocar-se contra "vidros coloridos"; assim exclamou: "Como! Tudo acabará no nada supremo! Todos os esforços do génio e do pensamento humano se perderão, inúteis, no vazio!"

   Por esse estado espiritual de Victor Hugo se chegou a compreender que toda a sua obra não foi mais que uma reação filosófica e religiosa contra o niilismo do ser. Como Miguel de Unamuno, escreveu buscando as bases da existência em Deus. Sentia, de facto, que sem uma Causa Suprema presidindo o desenvolvimento do universo toda a obra humana careceria de significação moral. Victor Hugo, guiado pelo seu daimon poético, procurou cansativamente o sentido da vida e da história. Sua poesia foi uma afirmação - repetimos do homem e da verdade, - aquela que brotava de sua alma clara e sonora por causa de suas profundas convicções espirituais. Pois bem, ao enfrentar-se com o problema religioso, fê-lo primeiro com o ateísmo que viu simbolizado num morcego. Porém, o nada ressoou em seu ser como uma realidade; lutou contra ela com decisão espiritual, pois pressentia em sua intimidade existencial outro destino para o homem. Não aceitava que Jeová, Cristo, Alá fossem "um sombrio monte de aparências loucas".

   Considerou o ceticismo como o pássaro-da-morte, que lutou contra seu espírito com duras expressões. Por isto, perguntou o poeta: "Estarei sozinho no infinito horroroso?" E ajuntou: "Existo eu mesmo?". Indubitavelmente, o ceticismo não abateu seu ânimo, porque sentia constantemente em seu interior as vozes de fé e esperança. Seu alterego não se resignava à ideia do não-ser; toda sua energia moral se voltou para a defesa do espírito. O poeta acreditava que a vida e o homem seriam duas realidades alimentadas por uma única essência espiritual.

   Victor Hugo prosseguiu estudando o paganismo, vendo-o representado em um abutre. Uma voz sempre empenhada em difundir a negação do Ser se dirigiu ao poeta para dizer-lhe: "Enquanto homem, que és? Nada. Já o tenho dito a ti. Obra do barro perdido por Júpiter, não existindo sob o céu escuro de onde cai a sentença, lei ou liberdade, direito ou resistência, não és mais do que o joguete dos monstros". A voz falou-lhe de uma certa claridade, mas quando Victor Hugo lhe perguntou onde se encontrava o abutre do paganismo, desapareceu sem responder.

   A águia representou o mosaísmo e narrou dramas e enigmas terrenos; agora, porém a voz mencionou a existência de um Deus único. Quer dizer, surgiu daquele ser alado uma voz menos sombria que as anteriores. Daquela águia emanava uma pequena claridade que lhe permitia ver os caminhos escuros da montanha. Enquanto o abismo estremecia, o poeta escutou uma mensagem diferente. Percebeu que o ser não está mais sozinho em sua aventura existencial. Por isso, disse-lhe a voz: "Sim, Deus fez o todo! Os céus, os montes, os animais, vossos ruídos e as sombras que projetais. E a partir desse momento o homem é uma criação divina, um fragmento de vida que pode progredir com uma tocha nas mãos".

   Mais tarde, aparece o grifo dizendo-lhe que a águia dorme e apenas ele pode ser elevado ao alto por Deus. O poeta percebeu que ele falava do Cristianismo, afirmando: "O homem é a alma; o homem leva em si um raio de luz: a matéria sozinha é a condenação". Foi assim que o caos se transformou em harmonia e o azar em finalidade. Nesta visão de Victor Hugo, o Ser se apresenta com um sentido transcendente. O Cristianismo se sobrepõe às negações anteriores, àquelas vozes que falavam somente do nada e da morte. O grifo ampliou logo seu pensamento e disse: "Águia, Cristo sabe mais que Moisés. Moisés possuía apenas os raios, e Cristo tinha os cravos. Não, Deus não é ciumento! Não, Deus não dorme, arrastando toda a criação! O homem não morre de todo!"

   O surgimento do Cristianismo teve a virtude de materializar um anjo, que representava o racionalismo. Ao ver o poeta, o anjo expressou conceitos que lhe deram as bases para uma nova filosofia do homem. Eis alguns dos seus pensamentos:

   "Todos os seres são, foram e serão."

   "Que haja cinza no coração que leva lama à frente, todo o ser é imortal como essência e conquista o que se lhe deve pela lei que o governa. O facto de ser pequeno, impercetível, não é motivo para não ter porvir; nada padece em vão"

   "Tudo vive. A criação esconde os renascimentos".

   "Chama de Deus, a alma existe em todas as coisas. O mundo é um conjunto em que nada está só! Todo corpo esconde um espírito! Toda carne é uma mortalha e para ver a alma é preciso compreender o sudário."

   "Todo ser, qualquer que seja, do astro ao estrume, do estúpido ao profeta é um espírito arrastando uma forma final."

   (1) – Do livro Deus, Literatura e Filosofia.

   Foi assim que surgiu a luz para o poeta, ou seja, "o que todavia não tem nome". Um novo esquema do Ser e do universo dão-lhe as bases para uma visão renovada, filosófica e religiosa, do Cristianismo. Era uma "luz com duas asas brancas", cuja claridade disse-lhe: "Quem quer que sejas, escuta: Deus existe". Foi assim que Victor Hugo encontrou Deus enfim; não obstante, perguntou: "Quem és? "e em seguida respondeu ele mesmo: "Renuncio sabê-lo. A pergunta é a sombra, o mundo a resposta. Deus existe". E ajuntou: "O ser é uma família na qual o homem é o irmão maior. Alma mais elevada, deve em seus combates derramar seu azul sobre as plantas em baixo. O homem, apesar de seu ódio e de sua clemência é o princípio da luz imensa. A igualdade na sombra esboça a unidade. A unidade é o término do caminho da luz ".

   Apesar do caos que seu génio viu em tudo, não vacilou em dizer: "Alma! Ser, tu és amor. Deus existe". O caos que via transformou-se por mutações progressivas em ordem e harmonia. Por isso, insistiu em lutar contra a morte e o nada do Ser, vertendo "todo seu azul" poético e filosófico sobre a terra, confiando nos fundamentos morais do universo. Daí, afirmou o poeta: "A matéria nada é. Apenas a alma existe."

   Pois bem, nem Max Scheler nem Rudolf Otto nem outros filósofos parecidos, tampouco pensadores cristãos como Soren Kierkegaard, Kar Barth, Jacques Maritain conseguiram perceber esse Mais Além como um sustentáculo do mundo visível. Victor Hugo penetrou no chamado mistério do Ser poeticamente como o fizeram misticamente Santa Tereza de Jesus, São João da Cruz e outros místicos do Oriente e do Ocidente. Sua visão filosófica e religiosa coincidiu com a Eterna Verdade expressa através do processo histórico da humanidade. Pois a unidade espiritual eleva o conhecimento à região dos iguais, a esse nível onde o particular se esfuma e os reflexos do duvidoso e incerto desaparecem.
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Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo 2º fragmento da obra.
(imagem: Victor Hugo em 1875, por Comte Stanislaw)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


CAPÍTULO IV

A Bretagne francesa. Lembranças druídicas |

Quando, sob a inspiração de meu guia, exploro as camadas profundas de minha memória para reconstituir o encadeamento de minhas vidas passadas, se eu remonto às origens, aí reencontro, não sem emoção, os vestígios de minhas três primeiras existências vividas na Terra, no oeste da Gália independente.

Por lembrança, eu revejo essa Natureza ainda virgem, semi-selvagem, toda impregnada de mistério e de poesia, e que o homem, apesar de sua pretensão de embelezar, somente conseguiu mutilar e despojar. Revejo esses grandes promontórios, batidos pelas tempestades, que se erguem ante os horizontes infinitos do mar e do céu. Creio ainda ouvir essas grandes vozes do oceano, ora lamentosas, ora ameaçantes, e o sussurro da onda que vai morrer no fundo das enseadas solitárias, riscando sobre a praia sua orla de espuma. A vaga embaladora não seria a imagem do pensamento humano, sempre inquieto, sempre fremente e agitado?

Revejo a floresta profunda, toda cheia de murmúrios de uma vida invisível; a floresta assombrada pelos espíritos dos antepassados que encantam os santuários onde se realizam os sacrifícios e os ritos sagrados. Essa floresta céltica era tão vasta que seriam precisos meses inteiros para atravessá-la; tão espessa, tão cerrada, que no verão o tempo era escuro em pleno meio-dia, sob suas abóbadas verdejantes, imponentes como naves de catedral.

Todo celta guarda no coração o amor ardente, imperecível, da floresta. Ela é para ele um símbolo de força e de vida imortal. Após o fim do inverno, não renasce ela na primavera, assim como a alma, após um tempo de repouso, volta à Terra para manifestar os poderes da vida que estão nela?

Nesse ponto, como em muitos outros, o ensino dos druidas se inspirou nos espetáculos da natureza. No estudo de suas leis, eles acharam uma fonte abundante de lições sempre vivas e expressivas, sempre ao alcance dos homens que ofereciam uma base sólida, uma força incomparável para suas convicções. Daí nenhuma dúvida, nenhuma hesitação, visto que eles pensavam que a natureza era uma emanação da vontade divina. É por estar afastada dela e por ter desconhecido suas leis que, desde então, o homem caiu no ceticismo e na negação. Mas então uma fé nova e pura brotava das almas, como a fonte límpida jorra do solo sob a ramagem dos grandes bosques. Espírito impetuoso e ardente, dela me impregnei a tal ponto que, apesar das vicissitudes de numerosas existências, ainda lhe guardo uma profunda impressão.

Eu gostava de penetrar nos círculos de pedra (cromlechs) onde se evocavam os espíritos dos mortos. Escutava, com ansiedade, as lições dos druidas, que nos entretinham com as narrações das lutas da alma no “Abred”, para conquistar a ciência e a sabedoria, e sua plenitude de vida no “Gwynfyd”, para posse da virtude, do génio e do amor. Sob a indicação do Mestre, eu me aplicava em aprender e recitar os inúmeros versos que constituíam o ensino sagrado.

Por essas experiências repetidas, consegui dar à minha memória a destreza e a duração que dela fizeram o precioso instrumento de estudo e de trabalho que me seguiu em todas as minhas vidas ulteriores.

No curso de minha vida atual eu queria rever as paisagens imponentes que, nesses tempos longínquos, com a ajuda de minhas primeiras existências terrestres, me tinham impressionado tão fortemente.

Segui, detalhadamente, os cortes da costa bretã e os restos dos grandes promontórios que as investidas da tempestade reduziram, de século em século. Nessa luta gigantesca, o oceano leva a melhor e o continente recua.

O homem impotente se resigna, porém, como ele se vinga na floresta!

No lugar dos santuários druídicos, ambientes augustos e sagrados, não se vê senão urzes informes sem encanto e sem beleza. Eu queria percorrer Brocéliande, a floresta encantada onde Merlin e Viviane abrigavam sua paixão e seus sonhos; encontrei somente uma floresta devastada pelo machado, com as grandes superfícies desnudas, semelhantes às manchas leprosas sobre um solo empobrecido. A fonte de Baranton, de águas mágicas, é agora uma cloaca onde se agitam batráquios indefinidos.

Os próprios nomes foram mudados, Brocéliande tornou-se a floresta de Paimpont, propriedade do bispo de Nantes, que procedeu a derrubadas frequentes. E o mesmo ocorreu por toda a parte em que se estendeu a floresta céltica. Onde estão essas abóbadas de verde que os raios de sol atravessavam com muito custo para se lançarem sobre os musgos e as samambaias?

Mas quando a Terra tiver perdido o seu adorno e se tornar calva e nua, quando as águas pluviais rolarem em torrentes devastadoras, para onde o homem voltará seus olhares para desfrutar do espetáculo do Universo? Um de nossos eminentes políticos não declarou que as luzes do céu foram extintas? Mas não, Viviani está morto e as estrelas brilham ainda no seio das noites profundas. Elas nos falam do poder, da sabedoria, da bondade do Criador! Elas serão sempre um símbolo de eterna esperança para a humanidade!
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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO IV A Bretagne francesa. Lembranças druídicas 3 de 3, 15º fragmento.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O peregrino sobre o mar de névoa~


Natureza Moral da Terapia Espírita

A natureza moral da terapêutica espírita decorre da moral de Jesus, pura e natural, desprovida dos aparatos, rituais e ordenações antinaturais forjadas pelos teólogos. Por isso a terapia espírita, como a de Jesus, não se funda em práticas sacrificiais, em exorcismos demoníacos, em condenações da função genésica do homem e da mulher, mas na liberdade regida pelos princípios básicos da consciência humana, onde – e somente nela – estão inscritas as verdadeiras leis morais da humanidade.

Os atos naturais, exigidos pela própria continuidade da espécie humana, capitulados como pecados veniais e capitais nas tabelas de preços das indulgências, que provocaram a revolta de Lutero, não são considerados como crimes contra a Divindade. Crimes são os abusos e as perversões desses atos, que nivelam o homem aos animais. Mas a educação é o antídoto desses desvios – a educação natural de Rousseau, desenvolvida em suas técnicas por Pestalozzi e seu discípulo e sucessor Allan Kardec. Pestalozzi era deísta e universalista, educador por excelência, o homo faber da educação nos séculos XVIII e XIX, mas faltava-lhe a vocação pedagógica, que sobrava a Kardec. Em Kardec havia o doublé de filósofo e cientista, as duas vocações necessárias ao fazer pedagógico, que implica a reflexão global sobre a educação e a complementação experimental da pesquisa científica. Mergulhado nesses dois planos da realidade educativa, Kardec ansiava pela descoberta da essência do homem, da sua natureza última e do seu destino. Entendia, como declarou tantas vezes, que sem esse conhecimento não podíamos conhecer realmente o educando e dar-lhe, por uma educação adequada, o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.

Entregou-se primeiro às pesquisas do magnetismo *, que lhe revelava um novo aspeto da natureza humana, e mais tarde, ante a insistência de amigos, ao estudo e à pesquisa dos fenómenos paranormais, que na época explodiam por toda parte. Foi esse o caminho que o levou ao Espiritismo, num verdadeiro ato de amor, para usarmos a expressão de Hubert.

Emparelhou-se casualmente com a revolução teológica de Kierkegaard, que fundava na Dinamarca, sem querer, a Filosofia Existencial. Sua tendência platónica levou-o a sonhar com a República de Platão em termos universais, através da educação integral do homem, no desenvolvimento de toda a sua perfetibilidade possível, como queria Kant e como querem ainda hoje os neokantianos do realismo crítico. Essa a relação sensível existente entre a pedagogia de Hubert e Kerchensteiner com a Pedagogia Espírita entranhada na obra kardeciana. O princípio grego da unidade orgânica do Universo decorre de uma visão lógica superior. A Psicologia Infantil nos mostra que a perceção da criança em suas primeiras fases de desenvolvimento é fragmentária. O mesmo ocorre com os povos primitivos que se isolam no seu torrão e na tribo com a arrogância de únicos habitantes do mundo. Essa incapacidade natural de uma conceção ampla gera o orgulho do exclusivismo racista, da xenofobia, das cidades e das civilizações muradas do geocentrismo e do antropocentrismo. Só o desenvolvimento da civilização, à maneira do desenvolvimento orgânico e da sociabilidade na criança, abre perspetivas para a mente fechada. Os gregos passaram também por esse processo, mas, auxiliados pela sua posição geográfica e por uma capacidade de abstração mental superior, mostraram-se mais avançados, conseguindo imaginar o mundo como uma unidade orgânica e viva, como vemos na sua teoria do ilosoísmo **.

Do outro lado do mundo estavam os celtas, que foram capazes de imaginar o universo hipostásico dos círculos superpostos de Anunf, o círculo infernal; Abred, o círculo das reencarnações; Gwinfid, o círculo divino ou Morada de Deus. Bastaria esses dois exemplos para mostrar a necessidade das migrações entre os mundos habitados no cosmos segundo o princípio espírita.

O aparecimento do indivíduo em Atenas não decorreu do comércio do Mar Egeu, mas do único milagre grego que se pode admitir: a avançada capacidade grega de abstração.

Sócrates, que partilhou da leviandade dos sofistas, abandonou-os ao perceber o vazio de suas teorias e fundou a Filosofia Moral. O moralismo socrático preparou, à distância da corriola rabínica dos sofistas judeus o advento do Cristianismo. Kardec reconheceu essa função precursora de Sócrates e Platão e comparou o estágio evolutivo dos gregos ao dos celtas, que Aristóteles considerou o único povo filósofo do mundo. Note-se bem: um povo filósofo, que os romanos conquistaram para se apoderarem de sua sabedoria. Esse apanhado sucinto e fragmentário dos mundos grego e celta mostra a razão da superioridade da moral espírita, que Kardec desenvolveu na França do iluminismo e da liberdade.

Curar e educar são funções conjugadas do homem na luta pela sua transcendência. Por isso, Kardec as reuniu em suas primeiras atividades em Paris, tendo exercido a medicina, como assinala André Moreil, confirmando as informações de Henry Sausse, primeiro biógrafo de Kardec e contemporâneo do mestre. Moreil menciona o período em que Kardec exerceu medicina em Paris. Ficou assim anulada a dúvida que se levantou sobre as suas atividades médicas. Por outro lado, é pacífico que ele lecionou ciências médicas em Paris . Era uma inteligência omnímoda e se empenhava com afinco na decifração dos mistérios do homem. Sua maior realização foi a criação da Ciência Espírita. Ela lhe custou muito caro, pois teve de enfrentar sozinho uma batalha sem tréguas com todas as forças culturais, religiosas, políticas e sociais do seu tempo. Seu senso e sua moralidade comprovam-se atualmente na volumosa obra que deixou como o alicerce inabalável da Ciência e da Filosofia Espírita.
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*   mais tarde chamado, hipnotismo...
**  pré socrática, materialista ou ilosoísta...


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, 3 
Natureza Moral da Terapia Espírita 3 de 3, 10º fragmento da obra.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Seres Radiantes do espaço ~


Capítulo II

Como foi exposto no artigo precedente, tudo se encadeia e se harmoniza na imensa escala das forças. Cada vibração sonora desperta, na matéria, uma repercussão corres-pondente. É conhecido o fenómeno dos diapasões que vibram, em uníssono, quando se afinam e quando um só deles foi posto em movimento. Numa ordem mais subtil, a mesma lei se aplica às ondas eléctricas, que transmitem o pensamento a enormes distâncias e constituem a telegrafia sem fio; basta, para isso, que dois postos tenham seus “comprimentos de ondas” em relação de mesma identidade.

É assim que a Natureza nos mostra, em todos os graus e em todas as coisas, a lei harmónica que imprime o seu ritmo à vida universal. Encontramos os efeitos dessa lei, em um grau superior, em todas as relações que unem os mundos visível e invisível, e em todas as relações que podem se estabelecer entre os homens e os espíritos.

Nós já dissemos que o pensamento é a força por excelência que comanda as outras forças e as impregna com suas qualidades ou com seus defeitos. O magnetizador, o terapeuta cedem a seus fluidos um poder curativo, o feiticeiro lhes imprime as propriedades maléficas. O pensamento puro e generoso é uma luz. Dos espíritos superiores desprende-se uma claridade radiante que ofusca e afasta os espíritos do abismo. É por isso que a presença de um espírito protector, nas sessões, constitui uma salvaguarda, uma protecção contra as fraudes e as obsessões.

Quem poderá negar a força do pensamento? Não é ela que dirige a Humanidade na sua caminhada áspera e dolorosa? Não é ela que inspira o génio e prepara as revoluções? Ora, o papel preponderante que essa força desempenha na História do mundo, nós o reencontramos, num plano mais modesto, nas reuniões espíritas.

O pensamento do Alto ultrapassa, em energia, todas as forças da Terra, porém, para se comunicar com os humanos, é preciso oferecer-lhe condições favoráveis. Assim como os postos de T.S.F. devem ajustar as suas ondas para receber as mensagens transmitidas, é preciso que as almas dos assistentes tenham os seus pensamentos e irradiações em harmonia, para perceber o pensamento superior. Fora dessas condições, a actuação do espírito superior será difícil, precária, muitas vezes impossível, e o ambiente ficará aberto aos espíritos levianos e a todas as más influências do Além.

Através de que procedimento pode-se dar aos pensamentos, às radiações fluídicas dos membros de um mesmo grupo dessa assembleia, esse carácter elevado, essa espécie de sincronismo que cria um ambiente puro e que permite ao espírito superior manifestar-se?

Respondemos sem hesitar: pela oração! Não, certamente, como a prece praticada nas igrejas, essa recitação monótona, murmurada pelos lábios e sem efeito sobre as vibrações da alma. Nós chamamos de prece o grito do coração, o apelo ardente, a improvisação calorosa que comunica uma impulsão irresistível às nossas energias ocultas. Como já vimos mais acima, pelas experiências da placa sensível, essas energias profundas vibram com intensidade e se impregnam das qualidades de nossa oração. Desde então, elas facilitam a intervenção dos espíritos guias, a dos amigos, e afastam os espíritos das trevas. A música, também, pelo seu ritmo, contribui para unificar os pensamentos e os fluidos.

Enfocados sob esses aspectos, a prece perde o pretenso carácter místico que certos cépticos lhe atribuem, para tornar-se um meio prático e positivo, quase científico, de unificar as forças activas e nos apresentar fenómenos de alto valor. A prece é a expressão máxima do pensamento e da vontade. É nesse sentido que Allan Kardec a recomendava a seus discípulos. A prece é, para as religiões, uma fonte preciosa para elevar e melhorar o ser humano, mas a prática torna-se banal, se ela deixa de ser esse impulso espontâneo da alma, que lhe faz vibrar as cordas profundas.
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Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo II, 1 de 3, 4º fragmento da obra.
(imagem: Ascensão de Cristo, pintura de Salvador Dali, 1958)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Deus na Natureza~


   Nenhuma poesia humana se nos figurou comparável à verdade natural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza, do que o pudera fazer o homem com seus cantos mais pomposos.

   Seja qual for a oportunidade dos estudos que este trabalho objectiva, não esperamos agradar a toda a gente, certo de haver muitos incapazes de acordar do seu sono e outros tantos a quem longe estamos de lhes corresponder aos pendores.

   Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação é merecida. Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro amor à verdade? Em que alma – perguntamos – ainda reina a fé? Não diremos, já, a fé cristã, mas uma crença sincera, seja no que for. Aonde se vão os tempos em que as forças da Natureza, divinizadas, recebiam homenagens universais?

   Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado, saudava com fervor a potência eterna e manifesta na Criação?

   Que é feito daqueles tempos em que os homens eram capazes de derramar o sangue por um princípio, quando as repúblicas tinham à sua testa um ideal e não uma ambição?

   Quem se lembra dos tempos em que o génio de um povo, esculpido em Notre Dame ou em São Pedro de Roma, se ajoelhava e pedia, aconchegado aos seus muros de pedra?

   Que é feito da virtude patriótica dos nossos antepassados abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do pensamento, e relegando à noite do esquecimento a falsa glória da ociosidade e das almas?

   Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de suportar um tal aviltamento: saturados de egoísmo, nossa alma não alimenta outra ambição que a do interesse pessoal. Riqueza cuja origem permanece equívoca, louros surpreendidos, antes que conquistados, uma doce quietação, uma profunda indiferença pelos princípios, quem não verá nisso o nosso galardão?

   À parte, contudo, fora do mundanismo empolgante e rumoroso, vivem os que não se conformam em baixar a fronte diante da hipocrisia. Esses trabalham na solidão e esquadrinham em silenciosa meditação os abismos da Filosofia e, se se mantêm fortes, é porque não se atrofiam ao contacto das sombras. Na verdade, é um contraste penoso de assinalar, quando vemos que o progresso magnífico, sem precedentes, das ciências positivas, que a conquista sucessiva do homem sobre a Natureza, ao mesmo tempo em que tão alto nos elevaram a inteligência, deixaram resvalar o sentimento a níveis tão baixos. Doloroso sentir que, enquanto por um lado a inteligência mais demonstra a sua capacidade, extingue-se por outro lado o sentimento, e a vida íntima da alma mais se embota na geena da carne.

   A causa da nossa decadência social (passageira, de vez que a História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé. A primeira hora deste nosso século marcou o derradeiro alento da religião de nossos pais. Baldos serão quaisquer esforços de restauração e reconstrução. Tudo o que se fizer não passará de simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O sopro de uma revolução imensa passou sobre as nossas cabeças deitando por terra nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecundando um mundo novo.

   Estamos, ao presente, atravessando a fase crítica que precede a toda renovação. O mundo progride. É em vão que homens políticos e homens eclesiásticos imaginam, cada qual do seu lado, prosseguir na representação do passado, num proscénio em ruínas. Impossível impedir que o progresso nos conduza a todos para uma fé superior, que ainda não possuímos, mas para a qual já caminhamos. E essa fé não será outra que a convicção científica da existência de Deus; numa escalada à verdade pelo estudo da Criação.

   É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos outros (quantos neste caso se encontram!), para não ver e não ajuizar a nossa actualidade pensante. Foi por ter a superstição morto o culto religioso, que nós o menosprezamos e abandonamos. E foi porque as características do verdadeiro se nos revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto mais puro. E não foi senão por se haverem afirmado diante de nós os imperativos da justiça, que hoje reprovamos institutos bárbaros, tais como a guerra, que, ainda recentemente, recebia a homenagem dos homens. É, enfim, porque o pensamento rompeu os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos, de boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer espécie de servilismo. Nada obstante, há em tudo, e sempre, um progresso. Na incerteza, porém, em que ainda permanecemos, entre as perturbações que nos agitam, a maior parte dos homens, ao perceberem que as suas impressões e tendências esbarram fatalmente na inércia do passado, ou se afastam silenciosos se lhes sobra força e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar na corrente geral, pela atracção vigorosa da fortuna. É nas épocas críticas que as lutas se intensificam, intermitentes, sobre os eternos problemas cuja forma varia à feição dos tempos, a revestirem-se de um aspecto característico.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 2 de 4, 2º fragmento.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)