Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Victor Hugo e o invisível ~


A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo

   O grande poeta francês, Victor Hugo, sobre quem desejamos esboçar modestamente partes de seu pensamento filosófico e religioso, sustentou notáveis pontos de vista, que expressou em linguagem poética profunda. Poder-se-ia dizer que em seu livro Deus, Literatura e Filosofia manifestou as bases de um que-fazer filosófico e religioso. O poeta ouvia vozes que o instruíam sobre "coisas prodigiosas e surpreendentes". Essas vozes lhe falaram sobre o sentido da vida e as angústias do homem para encontrar o Ser Supremo como embasamento de tudo o que existia. Essas vozes, porém, apenas o fizeram compreender que o homem é um inseto que destrói suas asas ao chocar-se contra "vidros coloridos"; assim exclamou: "Como! Tudo acabará no nada supremo! Todos os esforços do génio e do pensamento humano se perderão, inúteis, no vazio!"

   Por esse estado espiritual de Victor Hugo se chegou a compreender que toda a sua obra não foi mais que uma reação filosófica e religiosa contra o niilismo do ser. Como Miguel de Unamuno, escreveu buscando as bases da existência em Deus. Sentia, de facto, que sem uma Causa Suprema presidindo o desenvolvimento do universo toda a obra humana careceria de significação moral. Victor Hugo, guiado pelo seu daimon poético, procurou cansativamente o sentido da vida e da história. Sua poesia foi uma afirmação - repetimos do homem e da verdade, - aquela que brotava de sua alma clara e sonora por causa de suas profundas convicções espirituais. Pois bem, ao enfrentar-se com o problema religioso, fê-lo primeiro com o ateísmo que viu simbolizado num morcego. Porém, o nada ressoou em seu ser como uma realidade; lutou contra ela com decisão espiritual, pois pressentia em sua intimidade existencial outro destino para o homem. Não aceitava que Jeová, Cristo, Alá fossem "um sombrio monte de aparências loucas".

   Considerou o ceticismo como o pássaro-da-morte, que lutou contra seu espírito com duras expressões. Por isto, perguntou o poeta: "Estarei sozinho no infinito horroroso?" E ajuntou: "Existo eu mesmo?". Indubitavelmente, o ceticismo não abateu seu ânimo, porque sentia constantemente em seu interior as vozes de fé e esperança. Seu alterego não se resignava à ideia do não-ser; toda sua energia moral se voltou para a defesa do espírito. O poeta acreditava que a vida e o homem seriam duas realidades alimentadas por uma única essência espiritual.

   Victor Hugo prosseguiu estudando o paganismo, vendo-o representado em um abutre. Uma voz sempre empenhada em difundir a negação do Ser se dirigiu ao poeta para dizer-lhe: "Enquanto homem, que és? Nada. Já o tenho dito a ti. Obra do barro perdido por Júpiter, não existindo sob o céu escuro de onde cai a sentença, lei ou liberdade, direito ou resistência, não és mais do que o joguete dos monstros". A voz falou-lhe de uma certa claridade, mas quando Victor Hugo lhe perguntou onde se encontrava o abutre do paganismo, desapareceu sem responder.

   A águia representou o mosaísmo e narrou dramas e enigmas terrenos; agora, porém a voz mencionou a existência de um Deus único. Quer dizer, surgiu daquele ser alado uma voz menos sombria que as anteriores. Daquela águia emanava uma pequena claridade que lhe permitia ver os caminhos escuros da montanha. Enquanto o abismo estremecia, o poeta escutou uma mensagem diferente. Percebeu que o ser não está mais sozinho em sua aventura existencial. Por isso, disse-lhe a voz: "Sim, Deus fez o todo! Os céus, os montes, os animais, vossos ruídos e as sombras que projetais. E a partir desse momento o homem é uma criação divina, um fragmento de vida que pode progredir com uma tocha nas mãos".

   Mais tarde, aparece o grifo dizendo-lhe que a águia dorme e apenas ele pode ser elevado ao alto por Deus. O poeta percebeu que ele falava do Cristianismo, afirmando: "O homem é a alma; o homem leva em si um raio de luz: a matéria sozinha é a condenação". Foi assim que o caos se transformou em harmonia e o azar em finalidade. Nesta visão de Victor Hugo, o Ser se apresenta com um sentido transcendente. O Cristianismo se sobrepõe às negações anteriores, àquelas vozes que falavam somente do nada e da morte. O grifo ampliou logo seu pensamento e disse: "Águia, Cristo sabe mais que Moisés. Moisés possuía apenas os raios, e Cristo tinha os cravos. Não, Deus não é ciumento! Não, Deus não dorme, arrastando toda a criação! O homem não morre de todo!"

   O surgimento do Cristianismo teve a virtude de materializar um anjo, que representava o racionalismo. Ao ver o poeta, o anjo expressou conceitos que lhe deram as bases para uma nova filosofia do homem. Eis alguns dos seus pensamentos:

   "Todos os seres são, foram e serão."

   "Que haja cinza no coração que leva lama à frente, todo o ser é imortal como essência e conquista o que se lhe deve pela lei que o governa. O facto de ser pequeno, impercetível, não é motivo para não ter porvir; nada padece em vão"

   "Tudo vive. A criação esconde os renascimentos".

   "Chama de Deus, a alma existe em todas as coisas. O mundo é um conjunto em que nada está só! Todo corpo esconde um espírito! Toda carne é uma mortalha e para ver a alma é preciso compreender o sudário."

   "Todo ser, qualquer que seja, do astro ao estrume, do estúpido ao profeta é um espírito arrastando uma forma final."

   (1) – Do livro Deus, Literatura e Filosofia.

   Foi assim que surgiu a luz para o poeta, ou seja, "o que todavia não tem nome". Um novo esquema do Ser e do universo dão-lhe as bases para uma visão renovada, filosófica e religiosa, do Cristianismo. Era uma "luz com duas asas brancas", cuja claridade disse-lhe: "Quem quer que sejas, escuta: Deus existe". Foi assim que Victor Hugo encontrou Deus enfim; não obstante, perguntou: "Quem és? "e em seguida respondeu ele mesmo: "Renuncio sabê-lo. A pergunta é a sombra, o mundo a resposta. Deus existe". E ajuntou: "O ser é uma família na qual o homem é o irmão maior. Alma mais elevada, deve em seus combates derramar seu azul sobre as plantas em baixo. O homem, apesar de seu ódio e de sua clemência é o princípio da luz imensa. A igualdade na sombra esboça a unidade. A unidade é o término do caminho da luz ".

   Apesar do caos que seu génio viu em tudo, não vacilou em dizer: "Alma! Ser, tu és amor. Deus existe". O caos que via transformou-se por mutações progressivas em ordem e harmonia. Por isso, insistiu em lutar contra a morte e o nada do Ser, vertendo "todo seu azul" poético e filosófico sobre a terra, confiando nos fundamentos morais do universo. Daí, afirmou o poeta: "A matéria nada é. Apenas a alma existe."

   Pois bem, nem Max Scheler nem Rudolf Otto nem outros filósofos parecidos, tampouco pensadores cristãos como Soren Kierkegaard, Kar Barth, Jacques Maritain conseguiram perceber esse Mais Além como um sustentáculo do mundo visível. Victor Hugo penetrou no chamado mistério do Ser poeticamente como o fizeram misticamente Santa Tereza de Jesus, São João da Cruz e outros místicos do Oriente e do Ocidente. Sua visão filosófica e religiosa coincidiu com a Eterna Verdade expressa através do processo histórico da humanidade. Pois a unidade espiritual eleva o conhecimento à região dos iguais, a esse nível onde o particular se esfuma e os reflexos do duvidoso e incerto desaparecem.
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Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo 2º fragmento da obra.
(imagem: Victor Hugo em 1875, por Comte Stanislaw)

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