Nenhuma poesia humana se nos figurou comparável à verdade
natural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras
da Natureza, do que o pudera fazer o homem com seus cantos mais pomposos.
Seja qual for a oportunidade dos estudos que este trabalho
objectiva, não esperamos agradar a toda a gente, certo de haver muitos
incapazes de acordar do seu sono e outros tantos a quem longe estamos de lhes
corresponder aos pendores.
Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação é
merecida. Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro amor à
verdade? Em que alma – perguntamos – ainda reina a fé? Não diremos, já, a fé
cristã, mas uma crença sincera, seja no que for. Aonde se vão os tempos em que
as forças da Natureza, divinizadas, recebiam homenagens universais?
Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado,
saudava com fervor a potência eterna e manifesta na Criação?
Que é feito daqueles tempos em que os homens eram capazes de
derramar o sangue por um princípio, quando as repúblicas tinham à sua testa um
ideal e não uma ambição?
Quem se lembra dos tempos em que o génio de um povo,
esculpido em Notre Dame ou em São Pedro de Roma, se ajoelhava e pedia, aconchegado
aos seus muros de pedra?
Que é feito da virtude patriótica dos nossos antepassados
abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do pensamento, e
relegando à noite do esquecimento a falsa glória da ociosidade e das almas?
Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de
suportar um tal aviltamento: saturados de egoísmo, nossa alma não alimenta
outra ambição que a do interesse pessoal. Riqueza cuja origem permanece
equívoca, louros surpreendidos, antes que conquistados, uma doce quietação, uma
profunda indiferença pelos princípios, quem não verá nisso o nosso galardão?
À parte, contudo, fora do mundanismo empolgante e rumoroso,
vivem os que não se conformam em baixar a fronte diante da hipocrisia. Esses
trabalham na solidão e esquadrinham em silenciosa meditação os abismos da
Filosofia e, se se mantêm fortes, é porque não se atrofiam ao contacto das
sombras. Na verdade, é um contraste penoso de assinalar, quando vemos que o
progresso magnífico, sem precedentes, das ciências positivas, que a conquista
sucessiva do homem sobre a Natureza, ao mesmo tempo em que tão alto nos
elevaram a inteligência, deixaram resvalar o sentimento a níveis tão baixos.
Doloroso sentir que, enquanto por um lado a inteligência mais demonstra a sua
capacidade, extingue-se por outro lado o sentimento, e a vida íntima da alma
mais se embota na geena da carne.
A causa da nossa decadência social (passageira, de vez que a
História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé. A primeira
hora deste nosso século marcou o derradeiro alento da religião de nossos pais.
Baldos serão quaisquer esforços de restauração e reconstrução. Tudo o que se
fizer não passará de simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O
sopro de uma revolução imensa passou sobre as nossas cabeças deitando por terra
nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecundando um mundo novo.
Estamos, ao presente, atravessando a fase crítica que
precede a toda renovação. O mundo progride. É em vão que homens políticos e
homens eclesiásticos imaginam, cada qual do seu lado, prosseguir na representação
do passado, num proscénio em ruínas. Impossível impedir que o progresso nos
conduza a todos para uma fé superior, que ainda não possuímos, mas para a qual
já caminhamos. E essa fé não será outra que a convicção científica da
existência de Deus; numa escalada à verdade pelo estudo da Criação.
É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos
outros (quantos neste caso se encontram!), para não ver e não ajuizar a nossa actualidade
pensante. Foi por ter a superstição morto o culto religioso, que nós o
menosprezamos e abandonamos. E foi porque as características do verdadeiro se
nos revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto mais puro. E
não foi senão por se haverem afirmado diante de nós os imperativos da justiça,
que hoje reprovamos institutos bárbaros, tais como a guerra, que, ainda
recentemente, recebia a homenagem dos homens. É, enfim, porque o pensamento
rompeu os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos, de boamente,
quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer espécie de servilismo. Nada
obstante, há em tudo, e sempre, um progresso. Na incerteza, porém, em que ainda
permanecemos, entre as perturbações que nos agitam, a maior parte dos homens,
ao perceberem que as suas impressões e tendências esbarram fatalmente na
inércia do passado, ou se afastam silenciosos se lhes sobra força e coragem de
o fazerem, ou se deixam arrastar na corrente geral, pela atracção vigorosa da
fortuna. É nas épocas críticas que as lutas se intensificam, intermitentes,
sobre os eternos problemas cuja forma varia à feição dos tempos, a
revestirem-se de um aspecto característico.
/…
Camille Flammarion, Deus
na Natureza – Introdução 2 de 4, 2º fragmento.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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