Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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terça-feira, 2 de setembro de 2025

metapsíquica | e depois



~~~ Terceiro Caso ~~~


(A Crise da Morte)

Reproduzo um último caso antigo, que extrai do livro do Doutor Wolfe: Starling Facts in Modern Spiritualism (pág. 388)*. Jim Nolan, o Espírito-guia da célebre médium Sra. Hollis, que disse e demonstrou ter sido soldado durante a Guerra de Secessão da América e haver morrido de tifo num hospital militar, responde da seguinte maneira às perguntas de um experimentador:

P. — Que impressão tiveste à tua primeira entrada no mundo espiritual?

R. — Parecia-me que despertava de um sono, com um pouco de atordoamento a mais. Já não me sentia doente e isso espantava-me grandemente. Tinha uma vaga impressão de que alguma coisa estranha se passara, todavia, não sabia definir o quê. O meu corpo encontrava-se estendido numa cama de campanha e eu o via. Dizia para mim próprio: Que estranho fenómeno! Olhei à minha volta e, vi três dos meus camaradas mortos nas trincheiras diante de Vicksburg e que eu enterrara. No entanto, ali estavam na minha presença! Olhavam a rir. Então, um dos três me saudou e disse:

— Bom-dia, Jim; também és dos nossos?

— Sou dos vossos? Que queres dizer com isso?

— Mas... que te encontras aqui, connosco, no mundo dos Espíritos. Não te apercebeste disso? É um meio onde se está bem.

Estas palavras eram muito fortes para mim. Fui tomado de violenta emoção e exclamei:

— Meu Deus! Que dizes! Estou morto?

— Não; estás mais vivo do que nunca, Jim; porém encontras-te no mundo dos Espíritos. Para te convenceres, não tens mais do que atentar no teu corpo.

Com efeito, o meu corpo jazia, inanimado, diante de mim, sobre aquela tarimba. Como, pois, contestar o facto? Pouco depois, chegaram dois homens que colocaram o meu cadáver numa prancha e o transportaram para junto de um carro; nele o meteram, subiram e à boleia partiram. Acompanhei então o carro, que parou junto de um fosso, onde o meu cadáver foi descarregado e enterrado. Fora eu o único a assistir ao meu enterro...

P. — Quais as sensações que experimentaste na crise da morte?

R. — A que se experimenta quando o sono se apodera da gente, mas deixando que ainda se possa lembrar de alguma ideia que tenha tido antes do sono. A gente, porém, não se lembra do momento exacto em que foi tomado pelo sono. É o que acontece por ocasião da morte. Mas, um pouco antes da crise fatal, a minha mentalidade se tornara muito activa; lembrei-me subitamente de todos os acontecimentos da minha vida; vi e ouvi tudo o que fizera, dissera, pensara, todas as coisas a que estivera associado. Lembrei-me até dos jogos e brincadeiras do campo militar; gozei-os, como quando deles participei.

P. — Conta-nos as tuas primeiras impressões no mundo espiritual.

R. — Ia dizer-vos que os meus bons amigos soldados já não me abandonaram, desde logo que desencarnei (morri) até ao momento em que fiz a minha entrada no mundo espiritual; lá, tinha eu os avós, os irmãos e as irmãs, que, entretanto, não me vieram receber quando desencarnei. Ao entrar no mundo espiritual, parecia-me caminhar sobre um terreno sólido e vi que ao meu encontro vinha uma velhinha, que me disse assim: — Jim, então vieste para onde estávamos?

Olhei-a atentamente e exclamei: — Ó, avozinha, és tu? — Sou eu mesma, meu querido Jim. Vem comigo.

E me levou para longe dali, para a sua morada. Uma vez lá, disse-me ser necessário que eu repousasse e dormisse. Deitei-me e dormi longamente...

P. — A morada de que falas tinha o aspecto de uma casa?

R. — Certamente. No mundo dos Espíritos, há a força do pensamento, por meio do qual se podem criar todas as comodidades desejáveis...

Esta última informação que, no caso de que se trata, remonta a setenta anos atrás, não é apenas um dos detalhes fundamentais a cujo respeito todos os Espíritos estão de acordo; é também a chave de abóbada que permite explicar, resolver, justificar todas as informações e descrições aparentemente absurdas, incríveis, ridículas, dadas pelos Espíritos que se comunicam, a propósito da vida espiritual. Em outras obras, já por mim publicadas, tive que me deter longamente sobre este tema muito importante; limitar-me-ei desta vez, pois, a nele tocar, na medida do estritamente necessário.

Esta grande verdade, que nos foi comunicada pelos Espíritos, permite resolvamos uma imensidade de questões teóricas, obscuras, determinadas pelas informações que hão dado as personalidades mediúnicas, relativamente ao meio espiritual, às formas que os Espíritos revestem, às modalidades da existência deles; todas as informações que constituem uma reprodução exacta, ainda que espiritualizada, do meio terrestre, da humanidade, das modalidades da existência neste mundo. Essa grande verdade, que resolve todos os enigmas teóricos em questão e que se funda no poder criador do pensamento no meio espiritual, é confirmada de modo impressionante por factos que se desenrolam no meio terrestre. Trata-se, com efeito, do seguinte: o pensamento e a vontade, mesmo na existência encarnada (na Terra), são susceptíveis de criar e de objectivar as formas concretas das coisas pensadas e desejadas, do mesmo modo que este fenómeno se realiza no meio espiritual, embora no meio terrestre semelhante criação não se dê senão por intermédio de alguns sensitivos especiais (médiuns). Aludo aos fenómenos de fotografia do pensamento ou de ideoplastia, fenómenos maravilhosos, aos quais consagrei recentemente um longo estudo, em que demonstrava, citando factos, a realidade incontestável e o seu desenvolvimento prodigioso.

Vemos, pois, que, já no mundo dos vivos, o pensamento e a vontade manifestam o poder de se objectivarem e concretizarem numa forma mais ou menos substancial e permanente, ainda que, na existência encarnada, isso se produza sem objectivo e unicamente com o concurso de sensitivos (médiuns) que se encontrem em condições fisiológicas mais ou menos anormais, correspondendo a estados mais ou menos adiantados de desencarnação parcial do Espírito.

Sendo assim, dever-se-ia logicamente concluir daí que, quando a desencarnação do Espírito já não estiver apenas em início e não for transitória, mas total e definitiva (na morte), só então as faculdades de que se trata chegarão a manifestar-se no seu completo desdobramento e, desta vez, normal, prática e utilmente. Ora, é precisamente o que afirmam as personalidades mediúnicas que se comunicam. Cumpre, portanto, se reconheça que as revelações transcendentais, concernentes às modalidades da existência espiritual, confirmam a posterior o que se devera logicamente inferir a priori, em consequência da descoberta de que o pensamento e a vontade são forças que possuem o poder maravilhoso de modelar e organizar, faculdades que, todavia, não se manifestam, senão de maneira esporádica e sem objectivo, no meio terrestre.

Duas palavras ainda acerca de outra circunstância, a de personalidades mediúnicas afirmarem que essas condições de existência espiritual são transitórias e se entendem exclusivamente com a esfera mais próxima do mundo terrestre, isto é, com a que se destina aos Espíritos recém-chegados. Esta circunstância não serve só para justificar inteiramente aquelas condições de existência; prova também a razão de ser providencial de tais condições.

Imagine-se, com efeito, que sensação de desolação e de desorientação não experimentariam a maior parte dos mortos se, logo depois do momento da morte, houvessem de ver-se bruscamente despojados da forma humana e lançados num meio espiritual essencialmente diverso daquele onde se lhes formaram as individualidades, a que ainda se encontram ligados por uma delicada trama de sentimentos afectivos, de paixões, de aspirações, que se não poderiam romper de súbito, sem os levar ao desespero e, onde, sobretudo, se encontra o meio doméstico que lhes é próprio, constituído por um mundo de satisfações temporais e espirituais, de todas as espécies, que contribuem cumulativamente para criar o que se chama a alegria de viver. Se imaginarmos tudo isso, teremos de reconhecer racional e providencialmente que um ciclo de existência preparatória passe entre a existência encarnada e a de Espírito puro, de maneira a conciliar a natureza, por demais terrestre, do Espírito desencarnado, com a natureza, por demais transcendental, da existência espiritual propriamente dita.

O poder criador do pensamento seria de molde a obviar maravilhosamente a este inconveniente; o Espírito, pensando numa forma humana, encontrar-se-ia de novo em forma humana; pensando em estar vestido, encontrar-se-ia coberto das vestes que, sendo tão etéreas como o seu próprio corpo, lhe pareceriam tão substanciais como as roupas terrenas. É assim que o Espírito encontraria novamente, no mundo espiritual, um meio e uma morada correspondentes aos seus hábitos terrestres, morada que lhe preparariam os seus familiares, tornados antes dele á existência espiritual. Como se há podido ver no caso que acabo de referir, é a avó do defunto que estaria encarregue de conduzir o neto à morada que o havia de receber. A este respeito, deve notar-se que, quando o Espírito Jim Nolan narra ter visto que uma velhinha vinha ao seu encontro, fora preciso subentender-se que a avó revestira temporariamente a sua antiga forma terrena, para ser reconhecida.

Deter-me-ei aí, para me não estender demais nos comentários deste facto; os pontos obscuros, de importância secundária, que ficam sem solução nas considerações precedentes, serão sucessivamente assinalados e explicados, à medida que, nos casos que ainda vão ser citados, se oferecer oportunidade.

Com relação ao incidente da visão panorâmica que o Espírito Jim Nolan relata, observarei que, desta vez, o fenómeno se desdobrou sob a forma de recapitulação de lembranças, mais do que sob a de uma visão panorâmica propriamente dita. Isto, naturalmente, em nada muda os termos do problema psicológico a ser resolvido. Daí apenas resultaria que o morto, em vez de pertencer ao que se chama em linguagem psicológica ao tipo visual, pertencia ao tipo especialmente mental-auditivo.

/...

Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Terceiro Caso. 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)

sábado, 14 de janeiro de 2023

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...) 

A personalidade integral 

A consciência, o “eu”, é o centro do ser, a própria essência da personalidade. 

Ser pessoa é ter uma consciência, um “eu” que reflexiona, se examina, se recorda. Poder-se-á, porém, conhecer, analisar e descrever o “eu”, os seus mistérios recônditos, as suas forças latentes, os seus germens fecundos, as suas actividades silenciosas? As psicologias, as filosofias do passado em vão o tentaram. Os seus trabalhos não fizeram mais do que tocar ao de leve a superfície do ser consciente. As camadas internas e profundas continuaram obscuras, inacessíveis, até ao dia em que as experiências do Hipnotismo, do Espiritismo, da regressão da memória aí projectaram, afinal, alguma luz. 

Então pôde ver-se que em nós se reflecte, se repercute todo o universo na sua dupla imensidade, de espaço e de tempo. Dizemos de espaço, porque a alma, nas suas manifestações livres e plenas, não conhece as distâncias. Dizemos de tempo, porque um passado inteiro dorme nela ao lado do futuro que aí jaz em estado de embrião. 

As escolas antigas admitiam a unidade e a continuidade do “eu”, a permanência, a identidade perfeita da personalidade humana e a sua sobrevivência. Os seus estudos basearam-se no sentir íntimo, no que nos nossos dias se chama introspecção

A nova psicologia experimental considera a personalidade como um agregado, um composto, uma “colónia”. Para ela é apenas aparente a unidade do ser, que pode decompor-se. O “eu” é uma coordenação passageira, disse Th. Ribot(ii) Essas afirmações baseiam-se em factos experimentais, que não se podem pôr de parte, tais como a vida intelectual inconsciente, as alterações da personalidade, a correlação entre as doenças da memória e as lesões do cérebro, etc. 

Como aproximar e conciliar teorias tão dessemelhantes e, contudo, baseadas, ambas, na ciência de observação? Da simples maneira. Pela própria observação, mais atenta, mais rigorosa. Myers disse-o nestes termos: (iii) 

“Uma investigação mais profunda, mais audaz, exactamente na direcção que os psicólogos (materialistas) a preconizam, mostra que eles se enganaram afirmando que a análise não provava a existência de nenhuma faculdade acima das que a vida terrestre, assim como eles a concebem, é capaz de produzir e o meio terrestre de utilizar. Porque, na realidade, a análise revela os vestígios de uma faculdade que a vida material ou planetária nunca poderia ter gerado e cujas manifestações implicam e fazem necessariamente supor a existência de um mundo espiritual. Por outro lado, e em favor dos partidários da unidade do “eu”, pode dizer-se que os dados novos são de natureza a fornecer às suas pretensões uma base muito mais sólida e uma prova presumível que excede em força todas as que eles poderiam ter imaginado e que, prova, especialmente, que o “eu” pode sobreviver, e sobrevive realmente, não só às desintegrações secundárias, que o afectam no curso da sua vida terrestre, mas também à desintegração derradeira que resulta da morte corporal. 

Muito falta ao “eu” consciente de cada um de nós para poder compreender a totalidade da nossa consciência e das nossas faculdades. Existem uma consciência mais vasta e faculdades mais profundas, cuja maior parte se conserva virtual em relação à vida terrestre, das quais se desprenderam, por via de selecção, a consciência e as faculdades da vida terrestre; tais, consciência mais alta e faculdades mais profundas, de novo se afirmam em toda a plenitude depois da morte. 

Tenho sido, há cerca de catorze anos, levado lentamente a essa conclusão, que revestiu para mim a sua forma actual, em consequência de uma longa série de reflexões baseadas em provas, cujo número ia aumentando progressivamente.” 

Em certos casos vê-se aparecer em nós um ser muito diferente do ser normal, possuindo não só conhecimentos e aptidões mais extensas que as da personalidade comum, mas, além disso, dotado de meios de percepção mais poderosos e variados. Às vezes, até mesmo nos fenómenos de “segunda personalidade” o carácter se modifica e difere de tal forma do carácter habitual que alguns observadores se julgaram na presença de um outro indivíduo. 

Cumpre fazer bem a distinção entre esses casos e os fenómenos de incorporações de Espíritos. Os médiuns, no estado de desdobramento, de sonambulismo, emprestam às vezes o seu organismo a entidades do Além, Espíritos desencarnados que dele se servem para comunicar com os homens; mas, então, os nomes, as particularidades, as provas de identidade fornecidas pelos manifestantes não permitem confusão alguma. A individualidade que se manifesta difere radicalmente da do paciente. Os casos de G. Pelham, (iv) de Robert Hyslop, de Fourcade, etc. demonstram-nos que as substituições de Espíritos não podem ser confundidas com os casos de personalidade dupla. 

No entanto, o erro era possível. Com efeito, do mesmo modo que as incorporações de Espíritos, a intervenção de personalidades secundárias é precedida de um sono curto. Estas surgem, a maioria das vezes, num acesso de sonambulismo ou mesmo depois de uma comoção. O período de manifestação, a princípio de breve duração, prolonga-se pouco a pouco, repete-se e vai-se destacando, cada vez com maior precisão, até adquirir e constituir uma cadeia de recordações particulares que se distinguem do conjunto das recordações registadas na consciência normal. Este fenómeno pode ser facilitado ou provocado pela sugestão hipnótica. É mesmo provável que nos casos espontâneos, em que nenhuma vontade humana intervém, o fenómeno seja devido à sugestão de agentes invisíveis, guias e protectores do sujet. Exercem eles nesses casos, como veremos, a sua acção para um fim curativo, terapêutico. 

No caso, célebre, de Félida, estudado pelo Doutor Azam(v) os dois estados de consciência, ou variações da personalidade, são nitidamente estabelecidos: 

“Quase todos os dias, sem causa conhecida ou sob o domínio de uma comoção, ela é tomada pelo que chama ‘a sua crise’. De facto, entra no seu segundo estado. Encontra-se sentada com um trabalho de costura na mão; de repente, sem que nada o possa fazer prever e depois de uma dor nas fontes, mais violenta que de costume, a cabeça cai-lhe sobre o peito, as mãos ficam inactivas e descem inertes ao longo do corpo. Dorme ou parece dormir um sono especial, porque nenhum barulho, nenhuma excitação, beliscadura ou picada a podem acordar. Além disso, essa espécie de sono sobrevém subitamente e dura dois ou três minutos. Antes durava muito mais. 

Depois, Félida acorda: mas o seu estado intelectual não é o mesmo que era antes de adormecer. Tudo parece diferente. Ergue a cabeça e, abrindo os olhos, cumprimenta sorrindo as pessoas que a cercam, como se tivesse chegado nesse momento; a fisionomia, triste e silenciosa antes, ilumina-se e respira alegria. A sua palavra é breve. Cantarolando, continua a obra de agulha que, no estado precedente, havia começado. Levanta-se. O seu andar é ágil e quase não se queixa das mil dores que, momentos antes, a faziam sofrer. Cuida dos arranjos domésticos, anda pela rua, etc. O seu génio mudou completamente; de triste fez-se alegre. A sua imaginação está mais exaltada; o motivo mais insignificante a entristece ou alegra; de indiferente passou a uma sensibilidade excessiva. 

Neste estado, lembra-se perfeitamente de tudo o que se passou nos outros estados semelhantes anteriores e também durante a sua vida normal. Nessa vida, como na outra, as suas faculdades intelectuais e morais, ainda que diferentes, encontram-se incontestavelmente na sua integridade: nenhuma ideia delirante, nenhuma falsa apreciação, nenhuma alucinação. Félida é outra, nada mais. Pode até mesmo dizer-se que nesse segundo estado, nessa segunda condição, como lhe chama M. Azam, todas as suas faculdades parecem mais desenvolvidas e completas. 

Essa segunda vida, em que a dor física não se faz sentir, é muito superior à outra, principalmente pelo facto notável de, enquanto ela dura, Félida se lembra não só do que se passou durante os acessos precedentes, mas também de toda a sua vida normal; ao passo que, durante a vida normal, nenhuma lembrança tem do que se passou durante os acessos.” 

Vê-se que aí não estão em jogo várias personalidades, mas simplesmente vários estados da mesma consciência. A relação subsiste entre esses diversos aspectos do ser psíquico. Pelo menos, o segundo estado, o mais completo, nada ignora do que fez o primeiro; ao passo que este não conhece o outro senão por ouvir falar dele. O modo de existência n° 2 trata o n° 1 com algum desdém. Félida, no segundo estado, fala da “rapariga estúpida”, do mesmo modo que nós o faríamos falando do menino desajeitado, do bebe trapalhão, que fomos noutros tempos. 

No caso de Louis Vivet(vi) encontramo-nos na presença de um fenómeno de “regressão da memória”. O sujet, sob a influência da sugestão hipnótica, revive todas as cenas da sua vida, como diz Myers, “com a rapidez e a facilidade de imagens cinematográficas. Não só os estados mentais passados e esquecidos voltam à memória ao mesmo tempo que as impressões físicas dessas variações, mas também quando um estado mental passado e esquecido é sugerido ao paciente, como sendo o seu estado actual, ele recebe imediatamente as impressões físicas a ele correspondentes”. 

Veremos mais adiante que, graças a experiências da mesma ordem, se tem podido reconstituir as excitações anteriores de certos pacientes com a mesma nitidez, o mesmo poder de impressões e sensações, o que nos levará a reconhecer que a ciência profunda do ser nos reserva muitas surpresas. 

Em Mary Reynolds (vii) assistimos a uma transformação completa do carácter, que apresenta três fases distintas: uma caracterizada pelo desleixo e outra com disposições para a tristeza, tendendo a fundir-se num terceiro estado superior aos dois precedentes. 

Outro caso fornecer-nos-á indicações preciosas sobre a natureza do segundo estado nas variações da personalidade. É o da Srta. R. L..., observado pelo Dr. Dufay e publicado na Revue Scientifique, de 5 de Julho de 1876. 

A Srta. R. L... – diz o Dr. Dufay – apresenta dois estados de personalidade. Tem perfeita consciência, no segundo estado, que é o estado de sonambulismo, da acuidade surpreendente que adquirem os seus sentidos. A alma é mais sensível; a inteligência e a memória recebem também um desenvolvimento considerável. Pode contar os factos mais insignificantes dos quais teve conhecimento em qualquer época, embora deles não se recorde quando volta ao estado normal. 

Não podemos passar em silêncio as observações da mesma natureza, feitas pelo Dr. Morton Prince em relação à Srta. Beauchamp. (viii) Esta apresenta muitos aspectos da mesma personalidade, que se revelaram sucessivamente e foram sendo denominados, à medida que apareciam, B1, B2, B4, B5. 

B1 é a Srta. Beauchamp em estado normal, pessoa séria, reservada, escrupulosa em excesso. B2 é a mesma em estado de hipnose, com mais desembaraço, simplicidade e memória mais extensa. B4, que se revela mais tarde, distingue-se das precedentes por um estado completo de unidade harmónica e de equilíbrio normal, mas a quem faz falta a memória dos seis últimos anos, em consequência de uma emoção violenta. Enfim, B5 que reúne, como em síntese, a memória dos estados já descritos. 

A originalidade desse caso consiste na intervenção, no meio desses diversos aspectos da personalidade da Srta. Beauchamp, de uma personalidade que lhe é completamente estranha, como nos parece. Trata-se de B3, que se diz chamar Sally, ser esperta, travessa, na verdade brincalhona, pregando-lhe partidas repetidas, uma vida bem difícil... Sally adapta-se, fisiologicamente, muito mal aos órgãos da médium

Essa misteriosa Sally não poderia ser, segundo pensamos, senão uma entidade do espaço, conseguindo substituir-se, no sono, à pessoa normal e dispor, por um lapso de tempo, de um organismo cujo estado de equilíbrio está momentaneamente perturbado. Esse fenómeno pertence à categoria das incorporações de Espíritos, de que tratamos especialmente em outra obra. (ix) 

Por seu turno, o Dr. Herbert Mayo aponta um fenómeno de memória quíntuplo. (x) “O estado normal do sujet era interrompido por quatro variedades de estados mórbidos, dos quais ele não se recordava ao acordar, mas cada um desses estados conservava uma forma de memória que lhe era peculiar.” 

Finalmente, F. Myers, na sua obra magistral, (xi) relata, segundo o Dr. Mason, um caso de personalidade múltipla que entendemos dever reproduzir: 

“Alma Z... era uma jovem muito sã e inteligente, de génio inalterável e insinuante, espírito de iniciativa em tudo o que empreendia, estudo, desporto, relações sociais. Em seguida a um cansaço intelectual e a uma indisposição da qual não fez caso, viu a sua saúde seriamente comprometida e, decorridos dois anos de grandes sofrimentos, fez-se uma brusca aparição, uma segunda personalidade. Numa linguagem meio infantil, meio indiana, esta personalidade anunciava-se como sendo a nº 2, que vinha para aliviar os sofrimentos da nº 1. Ora, o estado da nº 1 nesse momento era dos mais deploráveis – dores, debilidade, síncopes frequentes, insónias, estomatite mercurial, de origem medicamentosa, impossibilitando a alimentação. A nº 2 era alegre e terna, de conversa subtil e espirituosa, inteligência clara, alimentando-se bem e abundantemente, com maior proveito, dizia ela, do que a nº 1. A conversa, por mais aprimorada e interessante que fosse, nada deixava suspeitar dos conhecimentos adquiridos pela primeira personalidade. Manifestava uma inteligência supranormal relativamente ao que se passava na vizinhança. Foi nessa época que o autor começou a observar esse caso e eu não o perdi de vista durante seis anos consecutivos. Quatro anos depois de ter aparecido a segunda personalidade, manifestou-se inesperadamente uma terceira que se fez conhecer pelo nome de “moleque”. Era completamente distinta e diferente das outras duas e tomara o lugar da nº 2, que esta ocupara por quatro anos. 

Todas essas personalidades, ainda que absolutamente distintas e características, eram, cada qual no seu género, interessantes, e a nº 2, em particular, tem feito e continua a fazer a alegria dos seus amigos, todas as vezes que aparece e que lhes é dado aproximarem-se dela. Aparece sempre nos momentos de fadiga excessiva, de excitação mental, de prostração. Sobrevém, então, e persiste às vezes durante alguns dias. O “eu” original afirma sempre a sua superioridade, estando ali as outras apenas em atenção a ela e para o seu proveito. A nº 1 nenhum conhecimento pessoal tem das outras duas personalidades; contudo, conhece-as bem, principalmente a nº 2, pelas narrativas das outras e pelas cartas que muitas vezes delas recebe, e admira as mensagens subtis, espirituosas e muitas vezes instrutivas que lhe trazem essas cartas ou as narrativas dos amigos.” 

Limitar-nos-emos à citação dos factos que acabamos de transcrever para não nos alongarmos demais. Existem muitos outros da mesma natureza, cuja descrição o leitor poderá encontrar nas obras especiais. (xii) 

No seu conjunto, esses fenómenos demonstram que além do nível da consciência normal, fora da personalidade comum, existem em nós planos de consciência, camadas ou zonas dispostas de tal maneira que, em certas condições, se podem observar alternâncias nesses planos. Vê-se então emergirem e manifestarem-se, durante um certo tempo, atributos, faculdades que pertencem à consciência profunda, mas que não tardam a desaparecer para voltarem ao seu lugar e tornarem a mergulhar na sombra e na inacção. 

O nosso “eu” ordinário, superficial, limitado pelo organismo, não parece ser mais do que um fragmento do nosso “eu” profundo. Neste está registado um mundo inteiro de factos, de conhecimentos, de recordações referentes ao longo passado da alma. Durante a vida normal, todas essas reservas permanecem latentes, como que sepultadas por baixo do invólucro material; reaparecem no estado de sonambulismo. O apelo da vontade e a sugestão as mobilizam e elas entram em acção e produzem os estranhos fenómenos que a psicologia oficial comprova sem os poder explicar. 

Todos os casos de desdobramento da personalidade, todos os fenómenos de clarividência, telepatia, premonição, aparecimento de sentidos novos e de faculdades desconhecidas, todo esse conjunto de factos, cujo número aumenta e constitui já uma enormíssima amálgama, deve ser atribuído à intervenção das forças e recursos da personalidade oculta. 

O estado de sonambulismo, que permite a sua manifestação, não é um estado “regressivo” ou mórbido, como o julgaram certos observadores; é, antes, um estado superior e, segundo a expressão de Myers, “evolutivo”. É verdade que o estado de degenerescência e enfraquecimento orgânico facilita, em alguns pacientes, o afloramento das camadas profundas do “eu”, o que é designado pelo nome de histeriaTudo o que, de um modo geral, deprime o corpo físico, favorece, convém notar, o desprendimento, a saída do Espírito. A esse respeito, muitos testemunhos nos seriam fornecidos pela lucidez dos moribundos; mas, para avaliar somente esses factos, faz-se mister considerá-los principalmente sob o ponto de vista psicológico. Aí está toda a sua importância. 

A ciência materialista viu nesses fenómenos o que ela chama “desintegrações”, isto é, alterações e dissociações da personalidade. Os diversos estados da consciência aparecem algumas vezes tão distintos e os tipos que surgem são de tal modo diferentes do tipo normal, que têm levado a crer que se está na presença de várias consciências autónomas, em alternância no mesmo paciente. Acreditamos, com Myers, que nada disso sucede. Há aí simplesmente uma variedade de estados sucessivos coincidindo com a permanência do “eu”. A consciência é uma, mas se manifesta de diversos modos: de maneira restrita, na vida normal, enquanto está limitada ao campo do corpo; mais completa, mais extensa em estados de desprendimento e, finalmente, de maneira cabal, perfeita, na ocasião da morte, depois da separação definitiva, como o demonstram as manifestações e os ensinamentos dos Espíritos. A desagregação é, pois, apenas aparente. A única diferença entre os estados variados de consciência é uma diferença de graus. Esses graus podem ser numerosos. O espaço que, por exemplo, medeia entre o estado de incorporação e a exteriorização completa parece considerável. A personalidade não deixa, por isso, de permanecer idêntica através da concatenação (i) dos factos da consciência, que um laço contínuo liga entre si, desde as modificações mais simples do estado normal até aos casos que comportam transformação da inteligência e do carácter; desde a simples ideia fixa e os sonhos até à projecção da personalidade no mundo espiritual, nesse Além onde a alma recupera a plenitude das suas percepções e dos seus poderes. 

Já no decurso da existência terrestre, da infância à velhice, vemos o “eu” modificar-se incessantemente; a alma atravessa uma série de estados, anda em mudança contínua. Não obstante, no meio dessas diversas fases, é invariável a fiscalização que exerce sobre o organismo. A Fisiologia salientou a sábia e harmoniosa coordenação de todas as partes do ser, as leis da vida orgânica e do mecanismo nervoso, que não podem ser explicadas sem a presença de uma unidade central. Essa unidade soberana é a origem e a causa conservadora da vida; relaciona-lhe todos os elementos, todos os aspectos. 

Foi por uma consequência não menos perniciosa das teorias materialistas que os “psicólogos” da escola oficial chegaram a considerar o génio como uma neurose, quando ele pode ser a utilização, em maior escala, dos poderes psíquicos ocultos no homem. 

Myers, falando da categoria dos histéricos que conduzem o mundo, emite a opinião de que “a inspiração do génio não seria mais do que a emergência, no domínio das ideias conscientes, de outras ideias em cuja elaboração a consciência não tomou parte, mas que se têm formado isoladamente, por assim dizer, independentemente da vontade, nas regiões profundas do ser”. (xiii) 

Em geral, aqueles que tão levianamente são qualificados como “degenerados” são muitas vezes “progenerados”, e nestes sensitivos, histéricos ou neuróticos, as perturbações do organismo físico e as alterações nervosas muito caracterizadas em certas inteligências geniais, como noutro lugar vimos (No Invisível, último capítulo), podem realmente ser um processo de evolução pelo qual toda a humanidade terá de passar para chegar a um grau mais intenso da vida planetária. 

O desenvolvimento do organismo humano até à sua expansão completa é sempre acompanhado de perturbações, do mesmo modo que o aparecimento de cada novo ser na Terra é delas precedido. Nos nossos esforços dolorosos para a maior soma de vida, os valores mórbidos transmutam-se em forças morais. As nossas necessidades são instintos em fusão, que se concretizam em novos sentidos para adquirir mais poder e conhecimento. 

Mesmo no estado comum, no estado de vigília, emergências, impulsos do “eu” profundo podem remontar até às camadas exteriores da personalidade, trazendo intuições, percepções, lampejos bruscos sobre o passado e o futuro do ser, os quais denotam faculdades muito extensas, que não pertencem ao “eu” normal. 

Cumpre relacionar com essa ordem de fenómenos a maior parte dos casos de escrita automática. Dizemos a maior parte, porque sabemos de outros que têm como causa agentes externos e invisíveis. 

Há em nós uma espécie de reservatório de águas subterrâneas, donde, em certas horas, rompe e sobe à superfície uma corrente rápida em ebulição. Os profetas, os mártires de todas as religiões, os missionários, os inspirados, os entusiastas de todos os géneros e de todas as escolas conheceram esses impulsos surdos e poderosos, que nos têm brindado com as maiores obras que têm revelado aos homens a existência de um mundo superior. 

/… 
(ii) Th. Ribot - Les Maladies de la Personnalité, páginas 170 e 172. 
(iii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 19. Essa obra representa o mais grandioso esforço tentado pelo pensamento para resolver os problemas do ser. O Professor Flournoy, da Universidade de Genebra, escrevia a respeito desse livro: “O nome de Myers será inscrito no livro de ouro dos grandes iniciadores, a par dos de Copérnico e Darwin, para completar a tríade dos génios que mais profundamente revolucionaram as noções científicas na ordem da Cosmologia, da Biologia e da Psicologia.” 
(iv) Ver a nossa obra No Invisível, cap. XIX (passim), e G. Delanne, A Alma é Imortal. 
(v) Dr. Binet - Altérations de la Personnalité, F. Alcan, Paris, pág. 6 e 20. 
(vi) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 60. Ver também Camuset, Annales Médico-Psychologiques, 1882, página 15. 
(vii) W, James - Principies of Psychology. 
(viii) Dr. Morton Prince. Ver The Association of a Personality, bem como a obra do coronel A. de Rochas, Les Vies Successives, Chacornac, ed., Paris, 1911, págs. 398 e 402. 
(ix) Ver No Invisível, capítulo XIX. 
(x) Revue Philosophique, 1887, I, pág. 449. 
(xi) F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 61 e 62. 
(xii) Ver outra, as dos Drs. Bourru e Burot, Les Changements de la Personnalité; De la Suggestion Mentale, Bibl. científ. contemporânea, Paris, 1887; Binet, Les Altérations de la Personnalité; Berjon, La Grande Hystérie chez l’Homme. Dr. Osgood Mason, Double Personnalité, ses rapports avec l’Hypnotisme et la Lucidité. Ver também Proceedings S.P.R., o caso da Srta. Beauchamp, estudado por Morton, o de Annel Bourne, descrito pelo Dr. Hodgson e o de Mollie Faucher observado pelo juiz americano Cain Dailey. 
(xiii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 69. Acreditamos, todavia, que no exame desse problema de génio Myers não atendeu bastante às aquisições anteriores, fruto das existências acumuladas, tampouco à inspiração medianímica. 


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, IV – A personalidade integral, 5º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa)