A personalidade integral
A consciência, o “eu”, é o centro do ser, a própria essência da
personalidade.
Ser pessoa é ter uma consciência, um “eu” que reflexiona, se examina, se
recorda. Poder-se-á, porém, conhecer, analisar e descrever o “eu”, os seus
mistérios recônditos, as suas forças latentes, os seus germens fecundos, as
suas actividades silenciosas? As psicologias, as filosofias do passado em vão o
tentaram. Os seus trabalhos não fizeram mais do que tocar ao de leve a
superfície do ser consciente. As camadas internas e profundas
continuaram obscuras, inacessíveis, até ao dia em que as experiências do Hipnotismo, do
Espiritismo, da regressão da memória aí projectaram, afinal, alguma luz.
Então pôde ver-se que em nós se reflecte, se repercute todo o universo na sua
dupla imensidade, de espaço e de tempo. Dizemos de espaço, porque a
alma, nas suas manifestações livres e plenas, não conhece as distâncias.
Dizemos de tempo, porque um passado inteiro dorme nela ao lado do
futuro que aí jaz em estado de embrião.
As escolas antigas admitiam a unidade e a continuidade do “eu”, a permanência,
a identidade perfeita da personalidade humana e a sua sobrevivência. Os seus
estudos basearam-se no sentir íntimo, no que nos nossos dias se chama introspecção.
A nova psicologia experimental considera a personalidade como um agregado, um
composto, uma “colónia”. Para ela é apenas aparente a unidade do ser,
que pode decompor-se. O “eu” é uma coordenação passageira, disse Th.
Ribot. (ii) Essas afirmações baseiam-se em factos
experimentais, que não se podem pôr de parte, tais como a vida intelectual
inconsciente, as alterações da personalidade, a correlação entre as doenças da
memória e as lesões do cérebro, etc.
Como aproximar e conciliar teorias tão dessemelhantes e, contudo, baseadas,
ambas, na ciência de observação? Da simples maneira. Pela própria observação,
mais atenta, mais rigorosa. Myers disse-o nestes termos: (iii)
“Uma investigação mais profunda, mais audaz, exactamente na direcção que os
psicólogos (materialistas) a preconizam, mostra que eles se enganaram afirmando
que a análise não provava a existência de nenhuma faculdade acima das que a
vida terrestre, assim como eles a concebem, é capaz de produzir e o meio
terrestre de utilizar. Porque, na realidade, a análise revela os
vestígios de uma faculdade que a vida material ou planetária nunca poderia ter
gerado e cujas manifestações implicam e fazem necessariamente supor a
existência de um mundo espiritual. Por outro lado, e em favor dos partidários
da unidade do “eu”, pode dizer-se que os dados novos são de natureza a fornecer
às suas pretensões uma base muito mais sólida e uma prova presumível que excede em
força todas as que eles poderiam ter imaginado e que, prova, especialmente, que
o “eu” pode sobreviver, e sobrevive realmente, não só às desintegrações secundárias,
que o afectam no curso da sua vida terrestre, mas também à desintegração
derradeira que resulta da morte corporal.
Muito falta ao “eu” consciente de cada um de nós para poder compreender a
totalidade da nossa consciência e das nossas faculdades. Existem uma
consciência mais vasta e faculdades mais profundas, cuja maior parte se
conserva virtual em relação à vida terrestre, das quais se desprenderam, por
via de selecção, a consciência e as faculdades da vida terrestre; tais,
consciência mais alta e faculdades mais profundas, de novo se afirmam
em toda a plenitude depois da morte.
Tenho sido, há cerca de catorze anos, levado lentamente a essa conclusão, que
revestiu para mim a sua forma actual, em consequência de uma longa série de
reflexões baseadas em provas, cujo número ia aumentando progressivamente.”
Em certos casos vê-se aparecer em nós um ser muito diferente
do ser normal, possuindo não só conhecimentos e aptidões mais
extensas que as da personalidade comum, mas, além disso, dotado de meios de
percepção mais poderosos e variados. Às vezes, até mesmo nos fenómenos de
“segunda personalidade” o carácter se modifica e difere de tal forma do
carácter habitual que alguns observadores se julgaram na presença de um outro
indivíduo.
Cumpre fazer bem a distinção entre esses casos e os fenómenos de incorporações
de Espíritos. Os médiuns, no estado de desdobramento, de sonambulismo,
emprestam às vezes o seu organismo a entidades do Além, Espíritos desencarnados que
dele se servem para comunicar com os homens; mas, então, os nomes, as
particularidades, as provas de identidade fornecidas pelos manifestantes não
permitem confusão alguma. A individualidade que se manifesta difere
radicalmente da do paciente. Os casos de G. Pelham, (iv) de
Robert Hyslop, de Fourcade, etc. demonstram-nos que as substituições de
Espíritos não podem ser confundidas com os casos de personalidade dupla.
No entanto, o erro era possível. Com efeito, do mesmo modo que as incorporações
de Espíritos, a intervenção de personalidades secundárias é precedida de um
sono curto. Estas surgem, a maioria das vezes, num acesso de sonambulismo ou
mesmo depois de uma comoção. O período de manifestação, a princípio de breve
duração, prolonga-se pouco a pouco, repete-se e vai-se destacando, cada vez com
maior precisão, até adquirir e constituir uma cadeia de recordações
particulares que se distinguem do conjunto das recordações registadas na
consciência normal. Este fenómeno pode ser facilitado ou provocado pela sugestão
hipnótica. É mesmo provável que nos casos espontâneos, em que nenhuma
vontade humana intervém, o fenómeno seja devido à sugestão de agentes invisíveis,
guias e protectores do sujet. Exercem eles nesses casos, como
veremos, a sua acção para um fim curativo, terapêutico.
No caso, célebre, de Félida, estudado pelo Doutor Azam, (v) os dois estados de
consciência, ou variações da personalidade, são nitidamente estabelecidos:
“Quase todos os dias, sem causa conhecida ou sob o domínio de uma comoção, ela
é tomada pelo que chama ‘a sua crise’. De facto, entra no seu
segundo estado. Encontra-se sentada com um trabalho de costura na mão; de
repente, sem que nada o possa fazer prever e depois de uma dor nas fontes, mais
violenta que de costume, a cabeça cai-lhe sobre o peito, as mãos ficam
inactivas e descem inertes ao longo do corpo. Dorme ou parece dormir um
sono especial, porque nenhum barulho, nenhuma excitação, beliscadura ou picada
a podem acordar. Além disso, essa espécie de sono sobrevém subitamente e dura
dois ou três minutos. Antes durava muito mais.
Depois, Félida acorda: mas o seu estado intelectual não é o mesmo que era antes
de adormecer. Tudo parece diferente. Ergue a cabeça e, abrindo os olhos,
cumprimenta sorrindo as pessoas que a cercam, como se tivesse chegado nesse
momento; a fisionomia, triste e silenciosa antes, ilumina-se e respira alegria.
A sua palavra é breve. Cantarolando, continua a obra de agulha que, no estado
precedente, havia começado. Levanta-se. O seu andar é ágil e quase não se
queixa das mil dores que, momentos antes, a faziam sofrer. Cuida dos arranjos
domésticos, anda pela rua, etc. O seu génio mudou completamente; de triste
fez-se alegre. A sua imaginação está mais exaltada; o
motivo mais insignificante a entristece ou alegra; de indiferente passou a uma
sensibilidade excessiva.
Neste estado, lembra-se perfeitamente de tudo o que se passou nos outros
estados semelhantes anteriores e também durante a sua vida normal. Nessa vida,
como na outra, as suas faculdades intelectuais e morais, ainda que diferentes,
encontram-se incontestavelmente na sua integridade: nenhuma ideia delirante,
nenhuma falsa apreciação, nenhuma alucinação. Félida é outra, nada
mais. Pode até mesmo dizer-se que nesse segundo estado, nessa segunda
condição, como lhe chama M. Azam, todas as suas faculdades parecem mais desenvolvidas e
completas.
Essa segunda vida, em que a dor física não se faz sentir, é muito superior à
outra, principalmente pelo facto notável de, enquanto ela dura, Félida se
lembra não só do que se passou durante os acessos precedentes, mas também de
toda a sua vida normal; ao passo que, durante a vida normal, nenhuma lembrança
tem do que se passou durante os acessos.”
Vê-se que aí não estão em jogo várias personalidades, mas simplesmente vários
estados da mesma consciência. A relação subsiste entre esses diversos
aspectos do ser psíquico. Pelo menos, o segundo estado, o mais
completo, nada ignora do que fez o primeiro; ao passo que este não conhece o
outro senão por ouvir falar dele. O modo de existência n° 2 trata o n° 1 com
algum desdém. Félida, no segundo estado, fala da “rapariga estúpida”, do mesmo
modo que nós o faríamos falando do menino desajeitado, do bebe trapalhão, que
fomos noutros tempos.
No caso de Louis Vivet, (vi) encontramo-nos na
presença de um fenómeno de “regressão da memória”. O sujet,
sob a influência da sugestão hipnótica, revive todas as cenas da sua vida, como
diz Myers, “com a rapidez e a facilidade de imagens
cinematográficas. Não só os estados mentais passados e esquecidos voltam à
memória ao mesmo tempo que as impressões físicas dessas variações, mas também
quando um estado mental passado e esquecido é sugerido ao paciente, como sendo
o seu estado actual, ele recebe imediatamente as impressões físicas a ele
correspondentes”.
Veremos mais adiante que, graças a experiências da mesma ordem, se tem podido
reconstituir as excitações anteriores de certos pacientes com a mesma nitidez,
o mesmo poder de impressões e sensações, o que nos levará a reconhecer que a
ciência profunda do ser nos reserva muitas surpresas.
Em Mary Reynolds (vii) assistimos a uma transformação completa
do carácter, que apresenta três fases distintas: uma caracterizada pelo desleixo
e outra com disposições para a tristeza, tendendo a fundir-se num terceiro
estado superior aos dois precedentes.
Outro caso fornecer-nos-á indicações preciosas sobre a natureza do segundo
estado nas variações da personalidade. É o da Srta. R. L..., observado
pelo Dr. Dufay e publicado na Revue Scientifique,
de 5 de Julho de 1876.
A Srta. R. L... – diz o Dr. Dufay – apresenta dois estados de personalidade.
Tem perfeita consciência, no segundo estado, que é o estado de sonambulismo, da
acuidade surpreendente que adquirem os seus sentidos. A alma é mais sensível; a
inteligência e a memória recebem também um desenvolvimento considerável. Pode
contar os factos mais insignificantes dos quais teve conhecimento em qualquer
época, embora deles não se recorde quando volta ao estado normal.
Não podemos passar em silêncio as observações da mesma natureza, feitas
pelo Dr.
Morton Prince em relação à Srta. Beauchamp. (viii) Esta
apresenta muitos aspectos da mesma personalidade, que se revelaram
sucessivamente e foram sendo denominados, à medida que apareciam, B1, B2, B4,
B5.
B1 é a Srta. Beauchamp em estado normal, pessoa séria, reservada, escrupulosa
em excesso. B2 é a mesma em estado de hipnose, com mais desembaraço,
simplicidade e memória mais extensa. B4, que se revela mais tarde, distingue-se
das precedentes por um estado completo de unidade harmónica e de equilíbrio
normal, mas a quem faz falta a memória dos seis últimos anos, em consequência
de uma emoção violenta. Enfim, B5 que reúne, como em síntese, a memória dos
estados já descritos.
A originalidade desse caso consiste na intervenção, no meio desses diversos
aspectos da personalidade da Srta. Beauchamp, de uma personalidade que lhe é
completamente estranha, como nos parece. Trata-se de B3, que se diz chamar
Sally, ser esperta, travessa, na verdade brincalhona, pregando-lhe partidas
repetidas, uma vida bem difícil... Sally adapta-se, fisiologicamente, muito mal
aos órgãos da médium.
Essa misteriosa Sally não poderia ser, segundo pensamos, senão uma
entidade do espaço, conseguindo substituir-se, no sono, à pessoa normal e
dispor, por um lapso de tempo, de um organismo cujo estado de equilíbrio está
momentaneamente perturbado. Esse fenómeno pertence à categoria das incorporações de Espíritos, de que tratamos
especialmente em outra obra. (ix)
Por seu turno, o Dr. Herbert Mayo aponta um fenómeno de memória
quíntuplo. (x) “O estado normal do sujet era
interrompido por quatro variedades de estados mórbidos, dos quais ele não se
recordava ao acordar, mas cada um desses estados conservava uma forma de
memória que lhe era peculiar.”
Finalmente, F. Myers, na sua obra magistral, (xi) relata,
segundo o Dr. Mason, um caso de personalidade múltipla que entendemos dever
reproduzir:
“Alma Z... era uma jovem muito sã e inteligente, de génio inalterável e
insinuante, espírito de iniciativa em tudo o que empreendia, estudo, desporto,
relações sociais. Em seguida a um cansaço intelectual e a uma indisposição da
qual não fez caso, viu a sua saúde seriamente comprometida e, decorridos dois
anos de grandes sofrimentos, fez-se uma brusca aparição, uma segunda
personalidade. Numa linguagem meio infantil, meio indiana, esta personalidade
anunciava-se como sendo a nº 2, que vinha para aliviar os sofrimentos da nº 1.
Ora, o estado da nº 1 nesse momento era dos mais deploráveis – dores,
debilidade, síncopes frequentes, insónias, estomatite mercurial, de origem
medicamentosa, impossibilitando a alimentação. A nº 2 era alegre e terna, de
conversa subtil e espirituosa, inteligência clara, alimentando-se bem e
abundantemente, com maior proveito, dizia ela, do que a nº 1.
A conversa, por mais aprimorada e interessante que fosse, nada deixava
suspeitar dos conhecimentos adquiridos pela primeira personalidade. Manifestava
uma inteligência supranormal relativamente ao que se passava na vizinhança. Foi
nessa época que o autor começou a observar esse caso e eu não o perdi
de vista durante seis anos consecutivos. Quatro anos depois de ter
aparecido a segunda personalidade, manifestou-se inesperadamente uma terceira
que se fez conhecer pelo nome de “moleque”. Era completamente distinta e
diferente das outras duas e tomara o lugar da nº 2, que esta ocupara por quatro
anos.
Todas essas personalidades, ainda que absolutamente distintas e
características, eram, cada qual no seu género, interessantes, e a nº 2, em
particular, tem feito e continua a fazer a alegria dos seus amigos, todas as
vezes que aparece e que lhes é dado aproximarem-se dela. Aparece sempre nos
momentos de fadiga excessiva, de excitação mental, de prostração. Sobrevém,
então, e persiste às vezes durante alguns dias. O “eu” original afirma
sempre a sua superioridade, estando ali as outras apenas em atenção a
ela e para o seu proveito. A nº 1 nenhum conhecimento pessoal tem das outras
duas personalidades; contudo, conhece-as bem, principalmente a nº 2, pelas
narrativas das outras e pelas cartas que muitas vezes delas recebe, e admira as
mensagens subtis, espirituosas e muitas vezes instrutivas que lhe trazem essas
cartas ou as narrativas dos amigos.”
Limitar-nos-emos à citação dos factos que acabamos de transcrever para não nos
alongarmos demais. Existem muitos outros da mesma natureza, cuja descrição o
leitor poderá encontrar nas obras especiais. (xii)
No seu conjunto, esses fenómenos demonstram que além do nível da consciência
normal, fora da personalidade comum, existem em nós planos de
consciência, camadas ou zonas dispostas de tal maneira que, em certas
condições, se podem observar alternâncias nesses planos. Vê-se então emergirem
e manifestarem-se, durante um certo tempo, atributos, faculdades que pertencem
à consciência profunda, mas que não tardam a desaparecer para
voltarem ao seu lugar e tornarem a mergulhar na sombra e na inacção.
O nosso “eu” ordinário, superficial, limitado pelo organismo, não parece ser
mais do que um fragmento do nosso “eu” profundo. Neste está registado um mundo
inteiro de factos, de conhecimentos, de recordações referentes ao longo passado
da alma. Durante a vida normal, todas essas reservas permanecem latentes,
como que sepultadas por baixo do invólucro material; reaparecem no estado
de sonambulismo.
O apelo da vontade e a sugestão as mobilizam e elas entram em acção e produzem
os estranhos fenómenos que a psicologia oficial comprova sem os
poder explicar.
Todos os casos de desdobramento da personalidade, todos os fenómenos de
clarividência, telepatia, premonição, aparecimento de sentidos novos e de
faculdades desconhecidas, todo esse conjunto de factos, cujo número aumenta e
constitui já uma enormíssima amálgama, deve ser atribuído à intervenção das
forças e recursos da personalidade oculta.
O estado de sonambulismo, que permite a sua manifestação, não é um
estado “regressivo” ou mórbido, como o julgaram certos observadores; é, antes,
um estado superior e, segundo a expressão de Myers, “evolutivo”. É verdade que o estado de
degenerescência e enfraquecimento orgânico facilita, em alguns pacientes, o
afloramento das camadas profundas do “eu”, o que é designado pelo nome de histeria. Tudo
o que, de um modo geral, deprime o corpo físico, favorece, convém notar, o
desprendimento, a saída do Espírito. A esse respeito, muitos
testemunhos nos seriam fornecidos pela lucidez dos moribundos; mas, para
avaliar somente esses factos, faz-se mister considerá-los principalmente sob o
ponto de vista psicológico. Aí está toda a sua importância.
A ciência materialista viu nesses fenómenos o que ela chama “desintegrações”,
isto é, alterações e dissociações da personalidade. Os diversos estados da consciência
aparecem algumas vezes tão distintos e os tipos que surgem são de tal modo
diferentes do tipo normal, que têm levado a crer que se está na presença de
várias consciências autónomas, em alternância no mesmo paciente. Acreditamos,
com Myers, que nada disso sucede. Há aí simplesmente uma
variedade de estados sucessivos coincidindo com a permanência do “eu”. A
consciência é uma, mas se manifesta de diversos modos: de maneira
restrita, na vida normal, enquanto está limitada ao campo do corpo; mais
completa, mais extensa em estados de desprendimento e, finalmente, de maneira
cabal, perfeita, na ocasião da morte, depois da separação definitiva, como o
demonstram as manifestações e os ensinamentos dos Espíritos. A desagregação é,
pois, apenas aparente. A única diferença entre os estados variados de
consciência é uma diferença de graus. Esses graus podem ser numerosos. O espaço
que, por exemplo, medeia entre o estado de incorporação e a exteriorização
completa parece considerável. A personalidade não deixa, por isso, de
permanecer idêntica através da concatenação (i) dos
factos da consciência, que um laço contínuo liga entre si, desde as
modificações mais simples do estado normal até aos casos que comportam
transformação da inteligência e do carácter; desde a simples ideia fixa e os
sonhos até à projecção da personalidade no mundo espiritual, nesse Além onde a
alma recupera a plenitude das suas percepções e dos seus poderes.
Já no decurso da existência terrestre, da infância à velhice, vemos o “eu”
modificar-se incessantemente; a alma atravessa uma série de estados, anda em
mudança contínua. Não obstante, no meio dessas diversas fases, é invariável a
fiscalização que exerce sobre o organismo. A Fisiologia salientou a sábia e
harmoniosa coordenação de todas as partes do ser, as leis da vida
orgânica e do mecanismo nervoso, que não podem ser explicadas sem a presença de
uma unidade central. Essa unidade soberana é a origem e a
causa conservadora da vida; relaciona-lhe todos os elementos, todos os
aspectos.
Foi por uma consequência não menos perniciosa das teorias materialistas que os
“psicólogos” da escola oficial chegaram a considerar o génio como uma neurose,
quando ele pode ser a utilização, em maior escala, dos poderes psíquicos
ocultos no homem.
Myers, falando da categoria dos histéricos que conduzem o
mundo, emite a opinião de que “a inspiração do génio não seria mais do que a
emergência, no domínio das ideias conscientes, de outras ideias em cuja
elaboração a consciência não tomou parte, mas que se têm formado isoladamente,
por assim dizer, independentemente da vontade, nas regiões profundas do ser”. (xiii)
Em geral, aqueles que tão levianamente são qualificados como
“degenerados” são muitas vezes “progenerados”, e nestes sensitivos, histéricos
ou neuróticos, as perturbações do organismo físico e as alterações nervosas
muito caracterizadas em certas inteligências geniais, como noutro lugar vimos (No
Invisível, último capítulo), podem realmente ser um processo de evolução
pelo qual toda a humanidade terá de passar para chegar a um grau mais intenso
da vida planetária.
O desenvolvimento do organismo humano até à sua expansão completa é sempre
acompanhado de perturbações, do mesmo modo que o aparecimento de cada novo ser
na Terra é delas precedido. Nos nossos esforços dolorosos para a maior soma de
vida, os valores mórbidos transmutam-se em forças morais. As nossas
necessidades são instintos em fusão, que se concretizam em novos sentidos para
adquirir mais poder e conhecimento.
Mesmo no estado comum, no estado de vigília, emergências, impulsos do “eu”
profundo podem remontar até às camadas exteriores da personalidade, trazendo
intuições, percepções, lampejos bruscos sobre o passado e o futuro do ser, os
quais denotam faculdades muito extensas, que não pertencem ao “eu” normal.
Cumpre relacionar com essa ordem de fenómenos a maior parte dos casos de
escrita automática. Dizemos a maior parte, porque sabemos de outros que têm
como causa agentes externos e invisíveis.
Há em nós uma espécie de reservatório de águas subterrâneas, donde, em certas
horas, rompe e sobe à superfície uma corrente rápida em ebulição. Os profetas,
os mártires de todas as religiões, os missionários, os inspirados, os
entusiastas de todos os géneros e de todas as escolas conheceram esses impulsos
surdos e poderosos, que nos têm brindado com as maiores obras que têm revelado
aos homens a existência de um mundo superior.
/…
(ii) Th. Ribot - Les Maladies de la Personnalité, páginas
170 e 172.
(iii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 19. Essa
obra representa o mais grandioso esforço tentado pelo pensamento para resolver
os problemas do ser. O Professor Flournoy, da Universidade de Genebra, escrevia a respeito
desse livro: “O nome de Myers será inscrito no livro de ouro dos grandes
iniciadores, a par dos de Copérnico e Darwin, para completar a tríade dos
génios que mais profundamente revolucionaram as noções científicas na ordem da
Cosmologia, da Biologia e da Psicologia.”
(iv) Ver a nossa obra No Invisível, cap. XIX (passim),
e G.
Delanne, A Alma é Imortal.
(v) Dr. Binet -
Altérations de la Personnalité, F. Alcan, Paris, pág. 6 e 20.
(vi) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 60. Ver
também Camuset, Annales Médico-Psychologiques, 1882, página 15.
(vii) W,
James - Principies of Psychology.
(viii) Dr. Morton Prince. Ver The Association of a
Personality, bem como a obra do coronel A. de
Rochas, Les Vies Successives, Chacornac, ed., Paris, 1911, págs. 398 e 402.
(ix) Ver No Invisível, capítulo XIX.
(x) Revue Philosophique, 1887, I, pág. 449.
(xi) F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 61 e 62.
(xii) Ver outra, as dos Drs. Bourru e Burot, Les
Changements de la Personnalité; De la Suggestion Mentale, Bibl. científ.
contemporânea, Paris, 1887; Binet, Les Altérations de la Personnalité; Berjon,
La Grande Hystérie chez l’Homme. Dr. Osgood Mason, Double Personnalité, ses
rapports avec l’Hypnotisme et la Lucidité. Ver também Proceedings S.P.R., o
caso da Srta. Beauchamp, estudado por Morton, o de Annel Bourne, descrito pelo
Dr. Hodgson e o de Mollie Faucher observado pelo juiz americano Cain Dailey.
(xiii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 69.
Acreditamos, todavia, que no exame desse problema de génio Myers não atendeu
bastante às aquisições anteriores, fruto das existências acumuladas, tampouco à
inspiração medianímica.
Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira
Parte O Problema do Ser, IV – A personalidade integral, 5º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe),
de uma pintura atribuída a Josefina
Robirosa)
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