Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Incitações…


I - As Religiões, A Doutrina Secreta
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   Pergunta-se algumas vezes se a religião é necessária. A religião (do latim religare, ligar, unir), bem compreendida, deveria ser um laço que prendesse os homens entre si, unindo-os por um mesmo pensamento ao princípio superior das coisas. Há na alma um sentimento natural que a arrasta para um ideal de perfeição em que se identificam o Bem e a Justiça. Este sentimento, o mais nobre que poderemos experimentar, se fosse esclarecido pela Ciência, fortificado pela razão, apoiado na liberdade de consciência, viria a ser o móbil de grandes e generosas acções; mas, manchado, falseado, materializado, tornou-se, muitas vezes, pelas inquietações da teocracia, um instrumento de dominação egoística.

   A religião é necessária e indestrutível porque se baseia na própria natureza do ser humano, do qual ela resume e exprime as aspirações elevadas. É, igualmente, a expressão das leis eternas e, sob este ponto de vista, tende a confundir-se com a filosofia, fazendo com que esta passe do domínio da teoria ao da execução, tornando-se vivaz e activa.

   Mas, para exercer uma influência salutar, para voltar a ser um incitante de progresso e elevação, a religião deve despojar-se dos disfarces com que se revestiu através dos séculos. Não são os seus elementos primordiais que devem desaparecer, mas, sim, as formas exteriores, os mitos obscuros, o culto, as cerimónias. Cumpre evitar confundir coisas tão dessemelhantes. A verdadeira religião é um sentimento; é no coração humano, e não nas formas ou manifestações exteriores, que está o melhor templo do Eterno. A verdadeira religião não poderia ser encerrada dentro de regras e ritos acanhados; não necessita de sacerdotes nem de fórmulas nem de imagens.

   Pouco se inquieta com simulacros e modos de adorar; só julga os dogmas por sua influência sobre o aperfeiçoamento das sociedades. Abraça todos os cultos, todos os sacerdócios, eleva-se bastante e diz-lhes: A Verdade ainda está muito acima!

   Entretanto, deve compreender-se que nem todos os homens se encontram em vias de atingir esses píncaros intelectuais. Eis por que a tolerância e a benevolência são coisas que se impõem. Se, por um lado, o dever nos convida a desprender os bons espíritos dos aspectos vulgares da religião, por outro, é preciso nos abstermos de lançar a pedra às almas sofredoras, lacrimosas, incapazes de assimilar noções abstractas, mas que encontram arrimo e conforto na sua cândida fé.

   Verifica-se, porém, que, de dia para dia, diminui o número dos crentes sinceros. A ideia de Deus, outrora simples e grande nas almas, foi desnaturada pelo temor do inferno e perdeu o seu poder. Na impossibilidade de se elevarem até ao absoluto, certos homens acreditaram ser necessário adaptar à sua forma e medida tudo o que queriam conceber. Foi assim que rebaixaram Deus ao nível deles próprios, atribuindo-lhe as suas paixões e fraquezas, amesquinhando a Natureza e o Universo, e, sob o prisma da ignorância, decompondo em cores diversas os argênteos raios da verdade. As claras noções da religião natural foram obscurecidas ao seu belo prazer. A ficção e a fantasia engendraram o erro e este, preso ao dogma, ergueu-se como um obstáculo no meio do caminho. A luz ficou velada para aqueles que se acreditavam os seus depositários e as trevas, com que pretendiam envolver os outros, fizeram-se em si próprios e ao seu redor. Os dogmas perverteram o critério religioso, e o interesse de casta falseou o senso moral. Daí um acervo de superstições, de abusos e práticas idólatras, cujo espectáculo lançou tantos homens na negação.

   A reacção, porém, anuncia-se. As religiões, imobilizadas nos seus dogmas como as múmias nas suas faixas, agora agonizam, abafadas nos seus invólucros materiais, enquanto tudo caminha e evolve em torno delas. Perderam quase toda a influência sobre os costumes, sobre a vida social, e estão destinadas a perecer. Mas, como todas as coisas, as religiões só morrem para renascer. A ideia que os homens fazem da Verdade modifica-se e dilata com o decorrer dos tempos. Eis por que as religiões, manifestações temporárias, vistas parciais da eterna Verdade, tendem a transformar-se desde que já tenham cumprido a sua tarefa, e não mais correspondam aos progressos e às necessidades da Humanidade. À medida que esta caminha, são precisas novas concepções, um ideal mais elevado, e isso só poderá ser encontrado nas descobertas da Ciência, nas intuições crescentes do pensamento.

   Chegamos a uma época da História em que as religiões encanecidas aluem-se pelas suas bases, época em que se prepara uma renovação filosófica e social. O progresso material e intelectual desafia o progresso moral. Na profundeza das almas agita-se um mundo de aspirações, que faz esforços por tomar forma e aparecer à vida. O sentimento e a razão, essas duas grandes forças imperecíveis como o Espírito humano, de que são atributos, forças hostis até hoje e que perturbavam a sociedade com os seus conflitos, semeando por toda a parte a discórdia, a confusão e o ódio, tendem, finalmente, a se conciliarem. A religião deve perder o seu carácter dogmático e sacerdotal para tornar-se científica; a ciência libertar-se-à dos baixios materialistas para esclarecer-se com um raio divino. Surgirá uma doutrina, idealista nas suas tendências, positiva e experimental no seu método, apoiada sobre factos inegáveis. Sistemas opostos na aparência, filosofias contraditórias e inimigas, o Espiritismo e o Naturalismo, entre outras, acharão, afinal, um terreno de reconciliação. Síntese poderosa, ela abraçará e ligará todas as concepções variadas do mundo e da vida, raios dispersos, faces variadas da Verdade.

   Será a ressurreição, sob forma mais ampla e a todos acessível, dessa doutrina que o passado conheceu, será o aparecimento da religião natural que renascerá simples, sem cultos nem altares. Cada pai será sacerdote na sua família, ensinará e dará o exemplo. A religião passará para os actos, para o desejo ardente do bem; o holocausto será o sacrifício das nossas paixões, o aperfeiçoamento do Espírito humano. Tal é a doutrina superior, definitiva, universal, no seio da qual serão absorvidas, como os rios pelo oceano, todas as religiões passageiras, contraditórias, causas frequentes de dissidência e dilaceração para a Humanidade.


LÉON DENIS, Depois da Morte, Primeira Parte / Crenças e Negações (2 de 2), fragmento.
(imagem de contextualizaçaõ: Invocation, pintura de Lord Frederic Leighton 1830-1896)

2 comentários:

palavra luz disse...

Caríssimo lugar@azul,

Fui assaltado há dias por um projecto, ou pelo sonho de um projecto, que era o de fazer eu mesmo uma apresentação, certamente resumida, do espiritismo, tal como o conhecemos e como o apreciamos no nosso íntimo.

Qualquer coisa como uma conversa tida à sombra de qualquer refúgio aprazível, onde reinasse a paz, para ouvidos receptivos e benevolentes de alguém que estivesse à espera da mensagem.

Comecei imediatamente a escrever, já esteve publicado no meu (nosso...) "palavra luz", mas como é hábito, comecei com emendas e mais emendas, e acabei por suspender a publicação até que me sentisse plenamente satisfeito.

O parágrafo que me fez ter esse recuo é aquele que se encontra tratado neste texto - como sempre belíssimo e fortíssimo - de Léon Denis.

O meu curto parágrafo inicial começou a crescer primeiro, a levar cortes depois, umas vezes por ser demasiado contundente, outras por ser demasiado prolixo.

O que é curioso é que ao texto de Léon Denis não falta Força, no sentido de clarificar a verdade das coisas, mas a elevação confere-lhe uma autoridade que o coloca ao abrigo de qualquer remoque de amadores.

Já li uma, vou ler mais uma vez.

O que eu sinceramente acho é que o optimismo confiante que se desprende de certas concepções do desenvolvimento histórico de Léon Denis, são a projecção que me falta a mim, de uma visão magnificamente serena da capacidade intrinseca do homem de assimilar e adoptar as concepções mais lúcidas e positivas.

O meu impaciente pecado é pensar que já deveriamos entretanto ter avançado mais.

Fraternas saudações para todos.

Gilberto Ferreira disse...

Caríssimo “palavra luz”,

Na realidade nada fazemos sem o optimismo confiante que acaba por traduzir as nossas convicções íntimas e profundas.
Estou certo que esses valores moram no meu amigo, e outros igualmente valiosos e belos, honestamente, mas, estou igualmente certo, penso, que ainda é assaltado ocasionalmente pelo “impulso” que aqui e ali lhe ofusca o resultado final.
Repetindo-o: Qualquer coisa como uma conversa tida à sombra de qualquer refúgio aprazível, onde reinasse a paz mesmo. Sem haver lugar a outras considerações mais à frente. Desprendidamente.

Abraço fraterno,
Gilberto Ferreira