Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de outubro de 2011

Deus e o mar...


   – A Natureza estava atenta ao derradeiro adeus, que o príncipe da luz enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono para sumir-se no horizonte líquido. Calma e concentrada, ela assistia à prece universal dos seres, pois que eles a fazem – a santa prece do reconhecimento – ao receberem os últimos olhares do Sol. E todos, desde a flébil e solitária medusa e a estrela-do-mar policroma, até os gafanhotos saltitantes e os alcíones de neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, então, um como incenso a subir das vagas e dos montes, parecendo que os ruídos temperados da plaga, a brisa que soprava do continente, a atmosfera embalsamada, a luz palescente na serenidade do céu azul, o refrigério crepuscular e tudo o mais vinha, naquele sítio, consciência de vida, comungando contrita e amorosamente da adoração universal.

   Mentalmente, nesse holocausto da Terra, eu sentia as recíprocas atracções dos mundos; não apenas as que alternativamente afastam e aproximam nosso orbe do foco solar, como as de todos os astros que gravitam na imensidão dos céus.

   Acima de minha cabeça desdobravam-se as sublimes harmonias e as gigantescas translacções dos corpos celestes! A Terra era qual átomo flutuante no infinito! Deste átomo, porém, a todos os sóis do espaço, àqueles cuja luz leva milhões de anos para chegar até nós, aos que jazem desconhecidos para além da nossa visibilidade, eu sentia um laço invisível abrangendo, num só halo vivificante, todos os universos e todas as almas.

   E a prece celestial, grandiosa, imensurável, tinha a sua repercussão, a sua estrofe, a sua representação visível naquela vida terrena que palpitava em torno de mim, no rugido do mar, no perfume das selvas, no canto das aves, na melodia confusa dos insectos, no conjunto emocionante do cenário e, sobretudo, na luminosa tonalidade daquele extraordinário crepúsculo!

   Fitava-o embevecido, sim... mas sentia-me tão pequeno no meio de tantas graças e grandezas, que acabei por entristecer-me. Senti como que esvanecer-se a minha personalidade diante da imensidade da Natureza.

   Não me tardou a impressão de já não poder falar, nem pensar.

   – O vasto mar fugia para o infinito. – Eu não mais existia, meus olhos se velavam... E, como as faces se me inundavam de pranto, sem que me pudesse explicar porque chorava, ajoelhei-me e, prosternado ante o céu, confundi minha fronte com as ervas... – o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.


CAMILLE FLAMMARION, Deus na Natureza, Tomo V – DEUS (3 de 4 fragmento)
(imagem: pintura de Hans Zatzka)

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