Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 9 de outubro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME

   O ofício fúnebre, terminado o longo velório, tem início na manhã cinzenta, quebrada por violentas descargas da tempestade que estruge, intérmina. Plangem sinos de finados e, por momentos, as atenções se concentram na

figura do Bispo, paramentado, que dá início ao réquiem. Diante do altar improvisado, a figura do Crucificado, em prata e ouro, imóvel, pregada em madeira preciosa da região, brilha ante o fulgor dos círios acesos em abundância. O coro, vindo especialmente da Catedral de Siena, entoa um cantochão. Incenso, mirra e nardo embalsamam o ambiente, de modo tocante.

   Em meio às exéquias, o Bispo pronuncia o sermão laudatório da personalidade do extinto, lamentando não lhe ter podido aplicar a extrema-unção, no termo da jornada carnal. Exora, todavia, socorro ao Senhor da Vida e da Morte, enquanto lhe encomenda o corpo, seguindo os tradicionais rituais da Igreja Romana. O sacrifício da missa de corpo presente prossegue. As vozes se alteiam ou murmuram, cantando. Soluços discretos irrompem dos sentimentos do povo humilde das redondezas, que ali se aglutina para render as últimas homenagens ao seu benfeitor. Nuvens de fumo se levantam, perfumadas, agitadas por turíbulos prateados e com brasas vivas.

   A pequena distância, oculta discretamente e enlutada, Lúcia, de joelhos, soluça, dominada por fortes emoções. Repassam pelo seu pensamento todos os lances da sua vida no palácio que a acolheu. Seus pais entregaram-na pequena à família da Senhora duquesa, a fim de que fosse preparada para dama de companhia. Ali recebera todo o carinho, cultivara os dotes do sentimento e suas mãos se exercitaram na arte dos bordados e tecelagens, em que se fizera mestra. Os gobelins por ela tecidos ao lado da Senhora Ângela enriqueciam diversas peças do imponente lar.

   À lembrança da benfeitora, porém, teve a impressão de que se lhe dilatavam as pupilas e estranhos sentimentos lhe assomaram ao espírito inquieto. Latejaram-lhe as artérias nas têmporas, suor glacial inundou-a e frequente tremor se lhe apossou das carnes. Teve a sensação de que ia morrer. Um vágado inesperado fê-la cair sobre as lajes de pedra. Servidores apressados conduziram-na, inconsciente, ao quarto de dormir, colocando-a sobre o leito fofo e macio. Odores fortes foram aplicados às narinas; resinas perfumadas foram friccionadas nos pulsos e na testa… Ofegante, de peito descompassado, continuou vencida pelos choques nervosos que a sacudiam. Chamado o médico, este aplicou, a muito custo, a ingestão de medicamento calmante, solicitando a todos que a deixassem assistida apenas por uma das suas amigas-camareiras, de modo a que pudesse repousar…

   Entrementes, ao experimentar a cabeça atordoada, e quando perdia o equilíbrio das próprias forças, sentiu-se flutuar no ar, fora do corpo, divagando, numa visão entre névoas claras, a veneranda figura da duquesa, que lhe alongava as mãos generosas, albergando-a no seio maternal. A forma diáfana recordava as telas clássicas da pintura renascentista, em que matronas em luz faziam evocar a Senhora de Nazaré, Mãe do Sublime Crucificado. As lágrimas brotaram-lhe abundantes e, vencida pela felicidade do reencontro inesperado, naquela esfera desconhecida, teve a impressão de que se libertara do pesado fardo da carne, demandando às gloriosas regiões celestes. Desejou falar, dizer todas as inquietudes e os anseios que lhe rebentavam no coração sensível, a saudade imensa e destruidora, os últimos acontecimentos e os presságios que a martirizavam… Não pôde fazê-lo. A expressão de quase angelitude da senhora terminou por apaziguar-lhe as tempestades interiores. O sorriso triste que lhe ornava a face e a inefável luz que se derramava de toda ela, envolta em auréola resplendente, tocaram o espírito da servidora fiel.

   – Confia, minha filha, – murmurou a visão espiritual, quase sorridente – e não desfaleças! Levanta o espírito abatido e ergue-te acima das vicissitudes do caminho. Lutar é sofrer, e ninguém conseguirá felicidade sem o largo património das lágrimas e renúncias…

   “Todos nascemos e morremos para renascer, rectificando numa existência as imperfeições noutra contraídas. O curso incessante das vidas forma o rio da santificação que desagua no oceano da Eternidade.

   “Pesados cúmulos se associam hoje sobre o tecto do nosso lar, exigindo-nos inomináveis agonias e demorados sofrimentos. É, todavia, necessário que nos submetamos aos desígnios divinos. Nenhum de nós está esquecido das Leis Excelsas. Embora nos encontremos aparentemente abandonados, fracos de forças, desempenhando árduas tarefas que nos exigem imensa colheita de dor, Espíritos angelicais e benfeitores, em nome do Soberano Pai, nos acompanham e ajudam. Não te desesperes nem te desgovernes emocionalmente.

   “Velhas dívidas do passado remoto, que recuam ao século XIII, nos atam indelevelmente uns aos outros, exigindo regaste. Não nos reencontramos por caprichos do Destino. O Destino, conforme todos apregoam, não existe. Ele seria a negação de Deus, das leis de mérito e débito. O que consideramos Destino é o resultado de muitas actividades que culminam num momento, para nós inesperado, mas que, para os arquitectos da Vida, está adredemente programado. Amores, adversários, felicidade e desdita são peças da rede da vida imperecível, atando e desatando suas teias incessantemente, até ao instante da libertação definitiva de todo o sofrer. E o repetir de amargas experiências são oportunidades de que desfrutamos para nos alçarmos às regiões da ventura, que não se podem definir nem descrever por enquanto, por limitação da linguagem humana e por impossibilidades de entendimento da humana capacidade.

   “Ainda não tive a ventura de acolher nos meus braços saudosos o companheiro, por enquanto em processo de libertação. Amarrado a injustificável angústia, que a nossa separação física momentaneamente causou, ele vinculou-se fortemente ao corpo transitório, esquecendo-se das paisagens fulgurantes da Imortalidade, de que nos falam as valiosas lições do Evangelho e que a Religião, embora velando-as com imagens pesadas e pouco reais, nos apresenta, indicando rumos.

   “A morte, por isso mesmo, não é o fim. E a vida, que dela se desenlaça, não migra para os ajustes imediatos sob a assistência severa do Senhor, que nos recebe para punir ou premiar. Cada um morre como viveu e viverá conforme foi recebido pela morte. Imprescindível, pois, viver de modo a poder enfrentar a vida que a todos nos aguarda, quando a cortina de sombras se levanta, deixando aparecer a madrugada da Imortalidade.”

   Uma pausa refrescante silenciou a mensageira espiritual.

   Lúcia, deslumbrada, continuou de olhar cintlilante, fixo na face de luz e ouro da Senhora di Bicci di M. O orvalho das lágrimas nos seus olhos pareciam brilhantes finos, engastados nos cílios negros e longos. Após o silêncio expressivo, o semblante da Senhora duquesa nublou-se rapidamente, e ela falou, como se antecipasse no tempo e no espaço os acontecimentos de dor e luto que logo mais adviriam, convocando a moça ao testemunho...
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 1 de 4). Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence) 

1 comentário:

palavra luz disse...

Caríssimo lugar@zul,

Mais uma vez, admirador atento deste espaço do invisível, me deixo ir na corrente literária, mas fortemente ilustrativa das perspectivas do Além, da eloquência de Victor Hugo /espírito).

Noto com muito interesse a inserção subtil, com o bom gosto que é peça inerente deste apreciável lugar, de notações de referênciação artística das imagens aqui publicadas.

Um bom Domingo a todos, com as mais fraternas saudações