Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Golpe de Vista Histórico


Os primeiros cristãos ~

   Foi à obrigação lógica de explicar a acção da alma sobre o invólucro físico que cederam os primeiros cristãos, acreditando na existência de uma substância mediadora. Aliás, não se compreende que o espírito seja puramente imaterial, porquanto, então, nenhum ponto de contacto teria com a matéria física e não poderia existir, desde que deixasse de estar individualizado num corpo terrestre.

   No conjunto das coisas, o indivíduo é sempre determinado pelas suas relações com outros seres; no espaço, pela forma corpórea; no tempo, pela memória.
   O grande apóstolo S. Paulo fala várias vezes de um corpo espiritual, imponderável, incorruptível, e Orígenes, em seus Comentários sobre o Novo Testamento, afirma que esse corpo, dotado de uma virtude plástica, acompanha a alma em todas as suas existências e em todas as suas peregrinações, para penetrar e enformar os corpos mais ou menos grosseiros e materiais que ela reveste e que lhe são necessários no exercício de suas diversas vidas.
   Eis aqui, segundo Pezzani, as opiniões de alguns Pais da Igreja sobre essa questão.
   Orígenes e os Pais alexandrinos, que sustentavam um a certeza, os outros a possibilidade de novas provas após a provação terrena, propunham a si mesmos a questão de saber qual o corpo que ressuscitaria no juízo final. Resolveram-na, atribuindo a ressurreição apenas ao corpo espiritual, como o fizeram S. Paulo e, mais tarde, o próprio Santo Agostinho, figurando como incorruptíveis, finos, ténues e soberanamente ágeis os corpos dos eleitos.
   Então, uma vez que esse corpo espiritual, companheiro inseparável da alma, representava, pela sua substância quintessenciada, todos os outros envoltórios grosseiros, que a alma pudera ter revestido temporariamente e que entregara ao apodrecimento e aos vermes nos mundos por onde passara; uma vez que esse corpo havia impregnado de sua energia todas as matérias para um uso limitado e transitório, o dogma da ressurreição da carne substancial recebia, dessa concepção sublime, brilhante confirmação. Concebido desse modo, o corpo espiritual representava todos os outros que somente mereciam o nome de corpo pela sua adjunção ao princípio vivificante da carne real, isto é, ao que os espíritas denominaram perispírito.
   Diz Tertuliano que os anjos têm um corpo que lhes é próprio e que, como lhes é possível transfigurá-lo em carne humana, eles podem, por um certo tempo, fazer-se visíveis aos homens e comunicar-se com estes visivelmente. Da mesma maneira fala S. Basílio. Se bem haja ele dito algures que os anjos carecem de corpo, no tratado que escreveu sobre o Espírito Santo, avança que os anjos se tornam visíveis pela espécie de corpo que possuem, aparecendo aos que de tal coisa são dignos.
   Nada há na criação, ensina Santo Hilário, que não seja corporal, quer se trate de coisas visíveis, quer de coisas invisíveis. As próprias almas, estejam ou não ligadas a um corpo, têm uma substância corpórea inerente à natureza delas, pela razão de que é necessário que toda coisa esteja nalguma coisa. Só Deus sendo incorpóreo, segundo S. Cirilo de Alexandria, só ele não pode estar circunscrito, enquanto que todas as criaturas o podem, ainda que seus corpos não se assemelhem aos nossos. Mesmo que os demónios sejam chamados animais aéreos, como lhes chama Apuleio, sê-lo-ão no sentido em que falava o grande bispo de Hipona, porque eles têm natureza corpórea, sendo uns e outros da mesma essência.
   S. Gregório, por seu lado, chama ao anjo um animal racional e S. Bernardo nos dirige estas palavras: “Unicamente a Deus atribuamos a imortalidade, bem como a imaterialidade, porquanto só a sua natureza não precisa, nem para si mesma, nem para outrem, do auxílio de um instrumento corpóreo”. Essa era também, de certo modo, a opinião do grande Ambrósio de Milão, que a expunha nestes termos:
   “Não imaginemos haja algum ser isento de matéria na sua composição, excepto, única e exclusivamente, a substância da adorável Trindade.” 
   O mestre das sentenças, Pedro Lombardo, deixava em aberto a questão; esposava, contudo, esta opinião de Santo Agostinho:
   “Os anjos devem ter um corpo, ao qual, entretanto, não se acham sujeitos, corpo que eles, ao contrário, governam, por lhes estar submetido, transformando-o e imprimindo-lhe as formas que lhe queiram dar, para torná-lo apropriado aos actos deles.”

- A escola neoplatónica

   A escola neoplatónica de Alexandria foi notável de mais de um ponto de vista. Tentou a fusão dos filósofos do Oriente com a dos gregos e, dos trabalhos de Proclo, Plotino, Porfírio, Jâmblico, ideias novas surgiram sobre grande número de questões. Sem dúvida, a esses pesquisadores se pode censurar uma tendência por demais excessiva para a misticidade; entretanto, mais do que quaisquer outros eles se aproximaram da verdade que hoje experimentalmente conhecemos.
   As vidas sucessivas e o perispírito faziam parte do ensino deles. Em Plotino, como em Platão, à separação da alma e do corpo se achava ligada a ideia da metempsicose, ou metensomatose (pluralidade das vidas corpóreas).
   “Perguntamos: qual é, nos animais, o princípio que os anima? Se é verdade, como dizem, que os corpos dos animais encerram almas humanas que pecaram, a parte dessas almas susceptível de separar-se não pertence intrinsecamente a tais corpos; assistindo-as, essa parte, a bem dizer, não lhes está presente. Neles, a sensação é comum à imagem da alma e ao corpo, mas, ao corpo, enquanto organizado e modelado pela imagem da alma. Quanto aos animais em cujos corpos não se haja introduzido uma alma humana, esses são engendrados por uma iluminação da alma universal.” 
   A passagem da alma humana pelos corpos dos seres inferiores é aqui apresentada sob forma dubitativa. Sabemos agora que nenhum recuo é possível na senda eterna do tornar-se, porquanto nenhum progresso seria real, se pudéssemos perder o que tenhamos adquirido pelo nosso esforço pessoal. A alma que chegou a vencer um vício, dele se libertou para sempre; é isso o que assegura a perfectibilidade do espírito e garante a felicidade futura para o ser que soube libertar-se das más paixões inerentes ao seu estado inferior. Plotino afirma claramente a reencarnação, isto é, a passagem da alma de um corpo humano para outros corpos.
   “É crença universalmente admitida que a alma comete faltas, que as expia, que sofre punição nos infernos e passa em seguida por novos corpos.
   Quando nos achamos na multiplicidade que o Universo encerra, somos punidos pelo nosso próprio desvio e pela sequência de uma sorte menos feliz.
   Os deuses dão a cada um a sorte que lhe convém, de harmonia com seus antecedentes, em suas sucessivas existências.” 
   Profundamente justo e verdadeiro é isto, porquanto, em nossas múltiplas vidas, defrontamos com dificuldades que temos de transpor, para chegarmos ao nosso melhoramento moral ou intelectual. Falso, porém, seria esse princípio, se o aplicássemos às condições sociais, porque, então, o rico teria merecido sê-lo e o pobre se acharia aqui em punição, o que é contrário ao que se observa quotidianamente, pois podemos comprovar que a virtude não constitui apanágio especial de nenhuma classe da sociedade.
   “Há, para a alma – diz Porfírio –, duas maneiras de ser em um corpo: verifica-se uma delas quando a alma, já se encontrando num corpo celeste, sofre uma metamorfose, isto é, quando passa de um corpo aéreo ou ígneo a um corpo terrestre, migração a que de ordinário se chama metensomatose, porque não se vê donde vem a alma; a outra maneira se verifica quando a alma passa do estado incorpóreo a um corpo, seja qual for, e entra assim, pela primeira vez, em comunhão com o corpo. As almas descem do mundo inteligível ao primeiro céu; aí, tomam um corpo (espiritual) e, em virtude mesmo desse corpo, passam para corpos terrestres, segundo se distanciam mais ou menos do mundo inteligível.”
Esta doutrina Porfírio desenvolveu-a longamente em sua Teoria dos Inteligíveis, onde assim se exprime:
   “Quando a alma sai do corpo sólido, não se separa do espírito que recebeu das esferas celestes.”
   A mesma idéia se nos depara nos escritos de Proclo, que chama a esse espírito o veículo da alma.
   De um estudo atento dessas doutrinas resulta que os neoplatónicos sentiram a necessidade de um invólucro subtil para a alma, em o qual se registam, se incorporam os estados do espírito. É, com efeito, indispensável que o espírito, através de suas vidas sucessivas, conserve os progressos que realizou, sem o que, a cada encarnação, ele se acharia como na primeira e recomeçaria perpetuamente a mesma vida.


GABRIEL DELANNE, A Alma é Imortal, Primeira parte A observação, Capítulo I Golpe de vista histórico – As crenças antigas, fragmento.
(imagem: Madonna with the Christ Child and Saint John the Baptist - 1863, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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