A Força e a Matéria I Posição do Problema (IV)
A teoria mecânica, es-tabelecendo a pura necessidade
matemática nas acções e reacções que formam a vida do mundo, é incompleta, por
isso que suprime a causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma
força única, universal, sempre actual e formando a variedade dos seres pelas
suas metamorfoses, ajusta essa misteriosa universalidade a uma
força primordial.
Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral
dos nossos contraditores de um erro gramatical, atribuindo à matéria um poder
só cabível à força e pretendendo não passar esta de mero adjectivo
qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos
substantivos.
Examinemos agora, nesta mesma vista de conjunto, quais os
grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de
encontrar sob várias formas, no curso das nossas contraditas.
O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é
imaginarem que, pelo facto de existir Deus, importa atribuir-lhe uma
vontade caprichosa e não constante e imutável, na sua perfeição.
Ersted, por
exemplo, sábio escrutador do mundo físico, exprimiu sensatamente as relações de
Deus com a Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna,
cujos efeitos se manifestam nas leis da Natureza”.
O Dr. Büchner opõe a
esse conceito a seguinte especiosa objecção: – “Ninguém poderia compreender
como uma razão eterna, que governa, se conforme com leis imutáveis. Ou são as
leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que umas ao lado de outras
entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão eterna governasse,
supérfluas se tornariam as leis naturais e se, ao revés, governam as leis
imutáveis da Natureza, elas excluem toda a intervenção divina.” – “Se uma
personalidade governa a matéria num determinado sentido – opina Moleschott –
desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenómeno se torna partilha de
jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”
Havemos de convir que esta grave objecção é singularíssima.
É um raciocínio extravagante que cai pela
base. A nós nos parece, pelo contrário, que a inteligência notória nas leis da
Natureza demonstra, no mínimo, a inteligência da causa a que se devem essas
leis, que são, elas mesmas, precisamente a expressão imutável dessa
inteligência eterna.
E não será algo ridículo pretender que essa causa deixe de
existir, pelo motivo do íntimo acordo com essas mesmas leis?
Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua
virtuosidade é tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados
com a poesia da sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que
para lhe admitir existência era preciso que ela estivesse eventual e
arbitrariamente em desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de
raciocinar é tão falsa que os próprios autores que a utilizam são os primeiros
a reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e
ao facto de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e
de preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o
surto epidémico dependia mais de factores naturais, em parte conhecidos, e
poderia melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces.
Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa resposta
lhe acarretou a pecha de ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer
pudesse a Providência transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.”
Mas, que singular ideia faz essa gente de Deus que por si
criou! Um legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluços, a
subverter a ordem imutável que ele mesmo instituiu, a violar por suas próprias
mãos a actividade das forças naturais! – “Todo o milagre, se existisse – diz
também Cotta – provaria que a Criação não merece o respeito que lhe tributamos
e os místicos deveriam deduzir, da imperfeição do criado, a imperfeição do
Criador.”
Aí temos os adversários em contradição consigo mesmos,
quando, por um lado, não querem admitir uma razão eterna em concordância de
leis imutáveis, e por outro pensam connosco, que a ideia de imutabilidade ou,
pelo menos, a regularidade, se identifica muito melhor com a perfeição ideal do
ser desconhecido que denominamos Deus, do que a ideia de mutabilidade e
arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem impor-lhe.
Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e
que por igual ilude os nossos contraditores, é o de acreditarem que, para
existir Deus, importa colocá-lo fora do mundo.
Não vemos pretexto algum racional que possa justificar uma
tal necessidade. E antes do mais, que significa essa ideia de uma causa
soberana extramundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço
no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência?
Imaginais um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele
se não renova além? Será, então, possível traçar limites à extensão? Onde,
pois, imaginar Deus fora do mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer?
Mas, que é a matéria em si? – agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto,
impossível determinar uma semelhante posição. Deus não pode estar fora do
mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual é o sustentáculo e a vida.
Não fosse temer a pecha de panteísta e ajuntaríamos que Deus
é – a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece à
alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode ser infinito, em vão
se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto
sustentamos que Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do Universo –
adoramos Deus na Natureza.
Entretanto, os nossos adversários combatem insensatamente o
seu fantasma. “Não há considerar o Universo – diz Strauss – como ordenação
regrada por um Espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às forças
cósmicas e às suas relações.”
A essa razão, chamamo-la Deus, enquanto os modernos ateístas
aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não existindo fora do mundo,
é que Deus não existe.
“Tudo, – diz H. Tuttle – desde a tinha (perdoem a expressão)
que baila aos raios do Sol, à inteligência humana, que verte das massas
medulosas do cérebro, está submetido a princípios fixos. Logo, não existe
Deus.” Logo, existe – dizemos nós – “Livre é cada qual de franquear os limites
do mundo visível – pondera Büchner – e de procurar fora dele uma razão que
governa, uma potência absoluta, uma alma mundial, um Deus pessoal”, etc. Mas,
que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma – diz o mesmo literato –
nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-se um
facto que fizesse excepção e pudesse justificar a necessidade de uma força
absoluta, operando fora das coisas.”
“A força não impelida por um Deus, não é uma essência das
coisas isoladas do princípio material” – adverte Moleschott.
Ninguém terá visão tão limitada – afirma ele alhures – para
enxergar nas acções da Natureza outras forças não ligadas a um substrato
material. Uma força que planasse livremente acima da matéria seria uma
concepção absolutamente balda de sentido.
Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, à
guisa dos que outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado
arremetem moinhos de vento. Lídimos heróis de Cervantes, visto que, no fim de
contas, qual o filósofo que hoje propugna um Deus ou forças quaisquer fora da
Natureza?
Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em
cada uma de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por
ele banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na mesma
composição de cada corpo.
Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para
bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda nem sequer
objectiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que bater o
campo.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 4 de 6, 8º
fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)
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