O instinto e a inteligência ~
Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde
acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma
fatalidade distinta, um atributo exclusivo da matéria?
O instinto é a força oculta que instiga os seres
orgânicos a actos espontâneos e involuntários para a sua conservação. Nos
actos instintivos não há nem reflexão, nem combinação, nem premeditação.
É assim que a planta procurara o ar, se volta para a luz,
orienta as suas raízes para a água e para a Terra alimentadora; que a flor se
abre e se fecha alternadamente consoante a necessidade; que as plantas
trepadeiras se enrolam à volta do suporte ou se agarram com as gavinhas. É por
instinto que os animais são prevenidos quanto ao
que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações para os
climas propícios; que constroem, sem lições prévias, com mais ou menos arte,
consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura,
dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que
manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados;
que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e que estes procuram
o seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente o início da vida; é
por instinto que a criança faz os seus primeiros movimentos, que toma os
primeiros alimentos, que chora para exprimir as suas necessidades, que imita o
som da voz, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são
instintivos; são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se
afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das
pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para
respirar, etc.
A inteligência revela-se por actos voluntários,
reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das
circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.
Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela
reflexão, combinação, uma deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o
é.
O instinto é um guia seguro que nunca engana;
já a inteligência, pelo facto de ser livre, está por vezes sujeita ao erro.
Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente,
revela pelo menos uma causa inteligente essencialmente
previdente. Se admitirmos que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos
de admitir que a matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e
previdente do que a alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a
inteligência se engana.
Se considerarmos o instinto como uma inteligência rudimentar
como é que, em certos casos, é superior à inteligência reflectida? Que lhe
permite fazer coisas que a inteligência não pode produzir?
Se é atributo de um princípio espiritual especial, que
acontece a esse princípio? Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria
então anulado? Se os animais só são dotados de instinto, o seu futuro
não tem portanto saída; os seus sofrimentos não têm qualquer compensação. Não
estaria conforme com a justiça nem com a bondade de Deus (Capítulo II, n.º 19).
Segundo uma outra teoria, o instinto e a inteligência teriam
um só e igual princípio, chagado a um certo grau de desenvolvimento, este
princípio, que primeiro só teria possuído as qualidades do instinto, sofreria
uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.
Se assim fosse, no homem inteligente que perde a razão e já
só é guiado pelo instinto, a inteligência regressaria ao seu estado primitivo;
e quando recuperasse a razão o instinto tornar-se-ia de novo inteligência e
assim alternadamente em cada acesso, o que não é admissível.
De resto, a inteligência e o instinto mostram-se muitas
vezes simultaneamente no mesmo acto. No andamento, por exemplo, o movimento das
pernas é instintivo; o homem coloca um pé à frente do outro instintivamente,
sem pensar nisso; mas quando quer acelerar ou retardar o andamento, levantar um
pé ou voltar-se para evitar um obstáculo, há nisso cálculo, combinação; age
deliberadamente. O impulso involuntário do movimento é o acto
instintivo; a direcção
calculada do movimento é o acto inteligente. O animal carnívoro é
levado pelo instinto a alimentar-se de carne; mas as precauções que toma consoante
as circunstâncias para apanhar a presa, a sua previsão das
eventualidades, são actos da inteligência.
Outra hipótese que aliás se alia perfeitamente à ideia de unidade do princípio,
resulta do carácter essencialmente previdente do instinto, e estou de acordo
com o que o Espiritismo nos
ensina no que se refere às relações do mundo espiritual com o mundo corporal.
Sabemos agora que Espíritos não encarnados têm
por missão velar pelos encarnados de que são os protectores e os guias; que os
rodeiam com os seus eflúvios; que o homem age muitas vezes de forma inconsciente sob
a acção destes eflúvios.
Sabemos além disso que o instinto, que produz ele mesmo actos
inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres de razão fraca.
Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria um atributo nem da alma nem da
matéria; não pertenceria exclusivamente ao ser vivo, mas seria um efeito da
acção directa dos protectores invisíveis que compensariam a imperfeição da
inteligência provocando eles mesmos os actos inconscientes necessários à
conservação do ser. Seria como os suspensórios com a ajuda dos
quais sustentamos a criança que não sabe ainda andar. Mas, tal como suprimimos
gradualmente o uso dos suspensórios à medida que a criança se sustem sozinha,
os Espíritos protectores, à medida que estes se vão podendo orientar pela sua
própria inteligência, deixam os seus protegidos entregues a si mesmos.
Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência
rudimentar e incompleta, seria produto de uma inteligência estranha na plenitude
da sua força; inteligência protectora, suprindo as influências tanto de uma
inteligência mais jovem que influenciaria para fazer inconscientemente, para
seu bem, o que ela é ainda incapaz de fazer por si, como as de uma inteligência
madura, mas momentaneamente impedida do uso das suas faculdades, tal como
acontece no homem durante a infância e nos casos de idiotice ou de afecções
mentais.
Dizemos proverbialmente que há um Deus para as crianças, para os loucos e para os bêbados; este ditado é mais verdadeiro do que julgamos; este Deus não é outro se não o Espírito protector que vela pelo ser incapaz de se proteger pela sua própria razão.
Por esta ordem de ideias, podemos ir mais longe. Esta
teoria, por muito racional que seja, não explica todas as dificuldades da
questão.
Se observarmos os efeitos do instinto, começamos por notar
uma unidade de ideias e de conjunto, uma segurança de resultados que deixa de
existir quando o instinto é substituído pela inteligência livre; além disso, na
adequação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às
necessidades de cada espécie, reconhecemos uma profunda sabedoria. Esta
unidade de ideias não poderia existir sem unidade de pensamentos, e a unidade
de pensamentos é incompatível com a diversidade de
aptidões individuais; só ela poderia produzir este conjunto tão perfeitamente
harmonioso que se manifesta desde a origem dos tempos e em todos os climas, com
uma regularidade e uma precisão matemáticas, sem nunca falhar. A
uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um facto característico
que implica forçosamente a unidade da causa;
se esta causa fosse inerente a cada individualidade haveria tantas variedades
de instintos como há de indivíduos, desde a planta até ao homem. Um efeito
geral, uniforme e constante; um efeito que acusa sabedoria e precaução deve ter
uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa sábia e previdente, sendo
necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material.
Não encontrando nas criaturas, encarnadas ou
não, as qualidades necessárias para produzirem um resultado assim, é necessário
ir mais alto, isto é, até ao próprio Criador. Se nos limitamos à explicação que
foi dada sobre a maneira como podemos conceber a acção providencial (Capítulo
II, n.º 24); se imaginarmos todos os seres penetrados de fluído divino,
soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a
unidade de ideias que presidem a todos os movimentos instintivos para
o bem de cada indivíduo. Esta solicitude é tanto mais activa quanto menos
recursos o indivíduo possui em si e na sua inteligência; é por isso que se
revela maior e mais absoluto nos animais e nos seres inferiores do que nos
homens.
Segundo esta teoria, compreendemos que o instinto seja um guia
sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o
materialismo rebaixa ao nível das forças atraentes da matéria, encontra-se
elevado e enobrecido. Devido às suas consequências, não podia ser deixado às
eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Através
do organismo da mãe, Deus vela pelas suas criaturas que vão nascer.
Esta teoria não destrói de modo nenhum o papel dos
Espíritos protectores cujo concurso é um facto adquirido e provado
pela experiência; mas é de notar que a acção destes é essencialmente individual, que se
modifica consoante as qualidades próprias do protector e do protegido e
que em sítio nenhum tem a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, na
sua sabedoria, conduz ele mesmo os cegos, mas confia a inteligências
livres o cuidado de conduzir os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade dos
seus actos. A missão dos espíritos protectores é um dever que aceitam
voluntariamente e que é para eles um meio de evolução, consoante a forma como a
cumprem.
Todas estas formas de considerar o instinto são
necessariamente hipotéticas e nenhuma tem um carácter de autoridade suficiente
para ser dada como solução definitiva. A questão será certamente
solucionada um dia, quando tivermos reunido os elementos de observação que
ainda nos faltam; até
lá, temos de nos limitar a submeter as várias opiniões ao cadinho da razão e da
lógica e esperar que se faça luz; a solução que mais se aproxima da
verdade será necessariamente aquela que corresponde melhor aos atributos de
Deus, isto é, à soberana bondade e à soberana justiça (Capítulo II, n.º 19).
Sendo o instinto o guia e as paixões a energia das almas
no primeiro período do seu desenvolvimento, confundem-se às vezes nos seus
afectos. Há no entanto entre estes dois princípios diferenças que é essencial
considerarmos. O instinto é um guia seguro, sempre bom; numa determinada
altura, pode tornar-se inútil, mas nunca prejudicial; enfraquece com
a predominância da inteligência.
As paixões, nos primeiros anos da alma, têm isto de comum
com o instinto, no que os seres são para isso solicitados por uma força
igualmente inconsciente. Nascem mais particularmente das necessidades do corpo
e estão mais ligadas ao organismo do que o instinto. O que sobretudo as
distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último,
efeitos gerais uniformes, pelo contrário, vemo-las variar de intensidade e de
natureza consoante os indivíduos. São úteis como estimulante até à eclosão
do sentido moral que, de um ser passivo, faz um racional; nesse
momento, não só se tornam inúteis como são prejudiciais à evolução do Espírito,
a que retardam a desmaterialização; enfraquecem com o desenvolvimento da razão.
O homem que agisse constantemente por instinto poderia ser
muito bom, mas deixaria a sua inteligência adormecer, seria como
uma criança que não largasse os suspensórios e não soubesse servir-se dos seus
membros. Quem não domina as
suas paixões pode ser muito inteligente mas, ao mesmo tempo, muito mau. O
instinto anula-se por si; as paixões só se dominam com força de vontade.
/...
ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as
Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – O instinto e a
inteligência (de 11 a 19), 20º fragmento da obra. Tradução portuguesa de
Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e
os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).
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