Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Da sombra do dogma à luz da razão ~


O instinto e a inteligência ~

     Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma fatalidade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

   O instinto é a força oculta que instiga os seres orgânicos a actos espontâneos e involuntários para a sua conservação. Nos actos instintivos não há nem reflexão, nem combinação, nem premeditação.

   É assim que a planta procurara o ar, se volta para a luz, orienta as suas raízes para a água e para a Terra alimentadora; que a flor se abre e se fecha alternadamente consoante a necessidade; que as plantas trepadeiras se enrolam à volta do suporte ou se agarram com as gavinhas. É por instinto que os animais são prevenidos quanto ao que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações para os climas propícios; que constroem, sem lições prévias, com mais ou menos arte, consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura, dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados; que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e que estes procuram o seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente o início da vida; é por instinto que a criança faz os seus primeiros movimentos, que toma os primeiros alimentos, que chora para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são instintivos; são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para respirar, etc.

   A inteligência revela-se por actos voluntários, reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

   Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela reflexão, combinação, uma deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o é.

   O instinto é um guia seguro que nunca engana; já a inteligência, pelo facto de ser livre, está por vezes sujeita ao erro.

   Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente, revela pelo menos uma causa inteligente essencialmente previdente. Se admitirmos que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos de admitir que a matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e previdente do que a alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a inteligência se engana.

   Se considerarmos o instinto como uma inteligência rudimentar como é que, em certos casos, é superior à inteligência reflectida? Que lhe permite fazer coisas que a inteligência não pode produzir?

   Se é atributo de um princípio espiritual especial, que acontece a esse princípio? Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria então anulado? Se os animais só são dotados de instinto, o seu futuro não tem portanto saída; os seus sofrimentos não têm qualquer compensação. Não estaria conforme com a justiça nem com a bondade de Deus (Capítulo II, n.º 19).

   Segundo uma outra teoria, o instinto e a inteligência teriam um só e igual princípio, chagado a um certo grau de desenvolvimento, este princípio, que primeiro só teria possuído as qualidades do instinto, sofreria uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.

   Se assim fosse, no homem inteligente que perde a razão e já só é guiado pelo instinto, a inteligência regressaria ao seu estado primitivo; e quando recuperasse a razão o instinto tornar-se-ia de novo inteligência e assim alternadamente em cada acesso, o que não é admissível.

   De resto, a inteligência e o instinto mostram-se muitas vezes simultaneamente no mesmo acto. No andamento, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem coloca um pé à frente do outro instintivamente, sem pensar nisso; mas quando quer acelerar ou retardar o andamento, levantar um pé ou voltar-se para evitar um obstáculo, há nisso cálculo, combinação; age deliberadamente. O impulso involuntário do movimento é o acto instintivo; a direcção calculada do movimento é o acto inteligente. O animal carnívoro é levado pelo instinto a alimentar-se de carne; mas as precauções que toma consoante as circunstâncias para apanhar a presa, a sua previsão das eventualidades, são actos da inteligência.

   Outra hipótese que aliás se alia perfeitamente à ideia de unidade do princípio, resulta do carácter essencialmente previdente do instinto, e estou de acordo com o que o Espiritismo nos ensina no que se refere às relações do mundo espiritual com o mundo corporal.

   Sabemos agora que Espíritos não encarnados têm por missão velar pelos encarnados de que são os protectores e os guias; que os rodeiam com os seus eflúvios; que o homem age muitas vezes de forma inconsciente sob a acção destes eflúvios.

   Sabemos além disso que o instinto, que produz ele mesmo actos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres de razão fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria um atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria exclusivamente ao ser vivo, mas seria um efeito da acção directa dos protectores invisíveis que compensariam a imperfeição da inteligência provocando eles mesmos os actos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria como os suspensórios com a ajuda dos quais sustentamos a criança que não sabe ainda andar. Mas, tal como suprimimos gradualmente o uso dos suspensórios à medida que a criança se sustem sozinha, os Espíritos protectores, à medida que estes se vão podendo orientar pela sua própria inteligência, deixam os seus protegidos entregues a si mesmos.

   Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, seria produto de uma inteligência estranha na plenitude da sua força; inteligência protectora, suprindo as influências tanto de uma inteligência mais jovem que influenciaria para fazer inconscientemente, para seu bem, o que ela é ainda incapaz de fazer por si, como as de uma inteligência madura, mas momentaneamente impedida do uso das suas faculdades, tal como acontece no homem durante a infância e nos casos de idiotice ou de afecções mentais.

    Dizemos proverbialmente que há um Deus para as crianças, para os loucos e para os bêbados; este ditado é mais verdadeiro do que julgamos; este Deus não é outro se não o Espírito protector que vela pelo ser incapaz de se proteger pela sua própria razão.

   Por esta ordem de ideias, podemos ir mais longe. Esta teoria, por muito racional que seja, não explica todas as dificuldades da questão.

   Se observarmos os efeitos do instinto, começamos por notar uma unidade de ideias e de conjunto, uma segurança de resultados que deixa de existir quando o instinto é substituído pela inteligência livre; além disso, na adequação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie, reconhecemos uma profunda sabedoria. Esta unidade de ideias não poderia existir sem unidade de pensamentos, e a unidade de pensamentos é incompatível com a diversidade de aptidões individuais; só ela poderia produzir este conjunto tão perfeitamente harmonioso que se manifesta desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e uma precisão matemáticas, sem nunca falhar. A uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um facto característico que implica forçosamente a unidade da causa; se esta causa fosse inerente a cada individualidade haveria tantas variedades de instintos como há de indivíduos, desde a planta até ao homem. Um efeito geral, uniforme e constante; um efeito que acusa sabedoria e precaução deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa sábia e previdente, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material.

   Não encontrando nas criaturas, encarnadas ou não, as qualidades necessárias para produzirem um resultado assim, é necessário ir mais alto, isto é, até ao próprio Criador. Se nos limitamos à explicação que foi dada sobre a maneira como podemos conceber a acção providencial (Capítulo II, n.º 24); se imaginarmos todos os seres penetrados de fluído divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de ideias que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Esta solicitude é tanto mais activa quanto menos recursos o indivíduo possui em si e na sua inteligência; é por isso que se revela maior e mais absoluto nos animais e nos seres inferiores do que nos homens.

   Segundo esta teoria, compreendemos que o instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atraentes da matéria, encontra-se elevado e enobrecido. Devido às suas consequências, não podia ser deixado às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Através do organismo da mãe, Deus vela pelas suas criaturas que vão nascer.

   Esta teoria não destrói de modo nenhum o papel dos Espíritos protectores cujo concurso é um facto adquirido e provado pela experiência; mas é de notar que a acção destes é essencialmente individual, que se modifica consoante as qualidades próprias do protector e do protegido e que em sítio nenhum tem a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, na sua sabedoria, conduz ele mesmo os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de conduzir os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade dos seus actos. A missão dos espíritos protectores é um dever que aceitam voluntariamente e que é para eles um meio de evolução, consoante a forma como a cumprem.

   Todas estas formas de considerar o instinto são necessariamente hipotéticas e nenhuma tem um carácter de autoridade suficiente para ser dada como solução definitiva. A questão será certamente solucionada um dia, quando tivermos reunido os elementos de observação que ainda nos faltam; até lá, temos de nos limitar a submeter as várias opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que se faça luz; a solução que mais se aproxima da verdade será necessariamente aquela que corresponde melhor aos atributos de Deus, isto é, à soberana bondade e à soberana justiça (Capítulo II, n.º 19).

   Sendo o instinto o guia e as paixões a energia das almas no primeiro período do seu desenvolvimento, confundem-se às vezes nos seus afectos. Há no entanto entre estes dois princípios diferenças que é essencial considerarmos. O instinto é um guia seguro, sempre bom; numa determinada altura, pode tornar-se inútil, mas nunca prejudicial; enfraquece com a predominância da inteligência.

   As paixões, nos primeiros anos da alma, têm isto de comum com o instinto, no que os seres são para isso solicitados por uma força igualmente inconsciente. Nascem mais particularmente das necessidades do corpo e estão mais ligadas ao organismo do que o instinto. O que sobretudo as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais uniformes, pelo contrário, vemo-las variar de intensidade e de natureza consoante os indivíduos. São úteis como estimulante até à eclosão do sentido moral que, de um ser passivo, faz um racional; nesse momento, não só se tornam inúteis como são prejudiciais à evolução do Espírito, a que retardam a desmaterialização; enfraquecem com o desenvolvimento da razão.

   O homem que agisse constantemente por instinto poderia ser muito bom, mas deixaria a sua inteligência adormecer, seria como uma criança que não largasse os suspensórios e não soubesse servir-se dos seus membros. Quem não domina as suas paixões pode ser muito inteligente mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto anula-se por si; as paixões só se dominam com força de vontade.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – O instinto e a inteligência (de 11 a 19), 20º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

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