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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Léon Denis e o Cristianismo ~


Relações com os Espíritos dos Mortos

(II de II)

  S. Paulo não foi apenas assistido por Espíritos de luz, de que se fazia porta-voz e intérprete. (ii) Espíritos inferiores por vezes o atormentavam, e era-lhe necessário resistir às suas influências. (iii) É assim que, em todos os meios, para a educação do homem e desenvolvimento de sua razão, a luz e a sombra, a verdade e o erro se misturam. O mesmo acontece no domínio do Espiritualismo moderno, em que se encontram todas as ordens de manifestações, desde as comunicações do mais elevado carácter até aos fenómenos grosseiros produzidos por Espíritos atrasados. Mas estes também têm a sua utilidade, do ponto de vista dos elementos de observação e dos casos de identidade que fornecem à Ciência. 

  S. Paulo conhecia estas coisas. Assistido pela experiência, ele advertia os profetas, (iv) os seus irmãos, a fim de se conservarem em guarda contra tais ciladas. E acrescentava em consequência:

  “Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1 Coríntios, XIV, 32), isto é, é preciso não aceitar cegamente as instruções dos Espíritos, mas submetê-las ao exame da razão.

  No mesmo sentido, dizia S. João:

  “Caríssimos, não acrediteis em todos os espíritos, mas provai se os espíritos são de Deus.” (I Epístola, IV, 1)

  Os “Actos dos Apóstolos” fornecem numerosas indicações acerca das relações dos discípulos de Jesus com o mundo invisível. Aí se vê como, observando as instruções dos Espíritos, (v) os apóstolos adquirem maior amplitude de visão das coisas; chegaram a já não fazer distinções entre as carnes, a suprimir a barreira que separava dos gentios os judeus, a substituir a circuncisão pelo baptismo. (vi)

  As comunicações dos cristãos com os Espíritos dos mortos eram tão frequentes nos primeiros séculos, que circulavam instruções notórias entre eles a esse respeito.

  Hermes, discípulo dos apóstolos, da mesma maneira que São Paulo, manda saudar por seu lado na sua Epístola aos Romanos (XVI, 14), indicada, no seu “Livro do Pastor”, (vii) os meios de distinguir os Espíritos bons dos maus.

  Nas linhas seguintes, escritas há mil e oitocentos anos, julgar-se-ia ter a descrição fiel das sessões de evocação, tais como, em muitos centros, se praticam nos dias hoje:

  “O espírito que vem da parte de Deus é pacífico e humilde; afasta-se de toda a malícia e de todo o desejo vão deste mundo e paira acima de todos os homens. Não responde a todos os que o interrogam, nem às pessoas em particular, porque o espírito que vem de Deus não fala ao homem quando o homem quer, mas quando Deus o permite. Quando, pois, um homem que tem um espírito de Deus vem à assembleia dos fiéis, desde que se fez à prece, o espírito toma lugar nesse homem, que fala na assembleia como Deus o quer.” (É o médium (i) falante.)

  “Ao contrário, reconhecem-se, os espíritos terrestres, frívolos, sem sabedoria e sem força, no que se agita, se levanta e toma o primeiro lugar. É importuno, tagarela e não profetiza sem remuneração. Um profeta de Deus não procede assim.”

  Os Espíritos manifestavam, então, a sua presença de mil maneiras, quer tornando-se visíveis, (viii) ou produzindo a desagregação da matéria, como o fizeram para libertar Pedro das cadeias que o prendiam e retirá-lo da prisão, (ix) quer ainda provocando casos de levitação. (x) Estes fenómenos eram, às vezes, tão impressionantes que até os mágicos se sentiam abalados, ao ponto de se converterem. (xi)

  Penetrados deste espírito de caridade e abnegação, que lhes espalhava o Cristo, os primeiros cristãos viviam na mais íntima solidariedade. “Possuíam tudo em comum” e “eram queridos de todo o povo”. (xii)

  A revelação dos Espíritos continuou muito tempo para além do período apostólico. Durante os séculos II e III, os cristãos se dirigiam directamente às almas dos mortos para decidir dos pontos da doutrina.

  S. Gregório, o taumaturgo, bispo de Neo-Cesareia, diz “ter recebido de João Evangelista, numa visão, o símbolo da fé pregado por ele na sua igreja”. (xiii)

  Orígenes, esse sábio que S. Jerónimo considerava o grande mestre da Igreja, depois dos apóstolos, fala muitas vezes, nas suas obras, da manifestação dos mortos.

  Na sua controvérsia com Celso, diz ele:

  “Não duvido de que Celso escarneça de mim; as zombarias, porém, não me impedirão de dizer que muitas pessoas têm abraçado o Cristianismo a seu pesar, tendo sido de tal modo o seu coração repentinamente transformado por algum espírito, quer numa aparição, quer em sonho, que, em lugar da aversão que nutriam pela nossa fé, adoptaram-na com amor até ao ponto de morrer por ela. Tomo Deus por testemunha da verdade do que digo; Ele sabe que eu não pretendo recomendar a doutrina de Jesus-Cristo por meio de histórias fabulosas, mas com a verdade de factos incontestáveis”. (xiv)

  O imperador Constantino era pessoalmente dotado de faculdades mediúnicas e sujeito à influência dos Espíritos. Os principais sucessos de sua vida – a sua conversão ao Cristianismo, a fundação de Bizâncio, etc. – assinalam-se por intervenções ocultas, de que se pode ter a prova nos seguintes factos que vamos buscar à narrativa do Sr. Albert de Broglie, imparcial e austero historiador, pouco inclinado ao misticismo: (xv)

  “Quando planeava apoderar-se de Roma, um impulso interior o induziu a se recomendar a algum poder sobrenatural e invocar a protecção divina, com apoio das forças humanas. Grande era, porém, o embaraço para um piedoso romano dessa época... A si mesmo ansiosamente perguntava a que Deus iria implorar a assistência. Caiu, então, em absorta meditação das vicissitudes políticas de que fora testemunha.”

  Reconhece que depositar confiança na multidão dos deuses traz infelicidade, ao passo que o seu pai Constâncio, secreto adorador do Deus único, terminara os seus dias em paz.

  “Constantino decidiu-se a suplicar ao Deus de seu pai que tivesse mão forte na sua empresa”.

  “Como resposta a essa prece teve umas visões maravilhosas, que ele próprio referia, muitos anos depois, ao historiador Eusébio, afirmando-a sob juramento e com as seguintes particularidades: Uma tarde, marchando à frente das tropas, divisou no céu, acima do sol que já declinava para o ocaso, uma cruz luminosa com esta inscrição: Com este sinal vencerás. Todo o seu exército e muitos espectadores que o rodeavam viram como ele, estupefactos, este prodígio. Ficou intrigado com o que poderia significar essa aparição. A noite o surpreendeu ainda na mesma perplexidade. Durante o sono, porém, o próprio Cristo lhe apareceu com a cruz com que fora visto no céu e lhe ordenou que mandasse fazer, por aquele modelo, um estandarte de guerra que lhe serviria de protecção nos combates. Ao alvorecer, Constantino levantou-se e transmitiu aos confidentes a revelação. Logo foram chamados ourives e o Imperador lhes deu instruções para que a cruz misteriosa fosse reproduzida em ouro e pedras preciosas.”

  Mais adiante, acerca da escolha de Bizâncio para capital do Império, refere o mesmo autor: Quando os olhos de Constantino se detiveram em Bizâncio, já não a apresentavam senão destroços de uma grande cidade. Na escolha que fez, acreditava ele não estar desamparado da intervenção divina. Dizia-se que, por uma confidência miraculosa, fora informado de que em Roma não estaria em segurança o Império. Relativamente a essa escolha, falava-se também de um sonho, etc. Filostórgio refere que:

  ...na ocasião em que ele (Constantino) traçava com a espada em punho o novo recinto da cidade, os que o acompanhavam vendo que ele se adiantava sempre, de modo a abranger uma área imensa, perguntaram-lhe respeitosamente até onde pretendia ir. – Até ao lugar em que pare quem vai adiante de mim – respondeu. (xvi)

  É provável que, sem o saber, Constantino padecesse da influência dos invisíveis, em tudo o que devia favorecer o estabelecimento da nova religião, em detrimento muitas vezes do bem do Estado e dos seus próprios interesses. O seu carácter, a sua vida íntima, não sofreram com isso nenhuma modificação. Constantino manteve-se sempre cruel e astucioso, refractário à moral evangélica, o que demonstra ter sido, em tudo, um instrumento nas mãos das eminentes Entidades cuja missão era fazer triunfar o Cristianismo.

  Sobre a questão que nos ocupa, o célebre bispo de Hipona, Santo Agostinho, não é menos afirmativo. Nas suas “Confissões” (xvii), alude aos infrutíferos esforços empenhados em deixar a vida desregrada que levava. Um dia em que rogava com fervor a Deus que o iluminasse, ouviu subitamente uma voz que repetidas vezes lhe dizia: Tolle, lege (toma, lê). Tendo-se certificado de que estas palavras não provinham de um ser vivo, ficou convencido de ser uma ordem divina, que lhe determinava abrisse as santas Escrituras e lesse a primeira passagem que sob os olhos lhe caísse. Foram exortações de S. Paulo sobre a pureza dos costumes, o que ele leu.

  Nas suas cartas menciona o mesmo autor “aparições de mortos”, indo e vindo da sua morada habitual – fazendo predições que os acontecimentos vêm mais tarde confirmar. (xviii)

  O seu tratado De cura pro mortuis, fala das manifestações dos mortos, nestes termos:

  “Os espíritos dos mortos podem ser enviados aos vivos, podem desvendar-lhes o futuro, cujo conhecimento adquiriram, quer por outros espíritos, quer pelos anjos, quer por uma revelação divina.” (xix)

  Na sua Cidade de Deus, a propósito do corpo lúcido, etéreo, aromal, que é o perispírito dos espíritas, trata das operações teúrgicas, que o tornam apropriado a comunicar com os Espíritos e os anjos e obter visões.

  S. Clemente de AlexandriaS. Gregório de Nissa no seu Discurso catequético, o próprio S. Jerónimo na sua famosa controvérsia com Vigilantius, o gaulês, pronunciam-se no mesmo sentido.

  S. Tomás de Aquino, o anjo da escola, no-lo diz o abade Poussin, professor no Seminário de Nice, na sua obra O Espiritismo perante a Igreja (1866), “comunicava-se com os habitantes do outro mundo, com mortos que o informavam do estado das almas pelas quais ele se interessava, com santos que o confortavam e lhe patenteavam os tesouros da ciência divina”. (xx)

  A Igreja, pela organização dos concílios, entendeu dever condenar as práticas espíritas, quando, de democrática e popular que era na sua origem, se tornou despótica e autoritária. Quis ser a única a possuir o privilégio das comunicações ocultas e o direito de as interpretar. Todos os leigos, está provado que mantinham relações com os mortos, foram perseguidos como feiticeiros e queimados.

  Mas este monopólio das relações com o mundo invisível, apesar dos seus julgamentos e condenações, apesar das execuções em massa, a Igreja nunca o pôde obter. Ao contrário, a partir deste momento, as mais brilhantes manifestações se produzem fora dela. A fonte das inspirações superiores, fechada para os eclesiásticos, permanece aberta para os hereges. A História atesta-o. Aí estão as vozes de Joana d'Arc, os génios familiares de Tasso e de Girolamo Cardano, os fenómenos macabros da Idade Média, produzidos por Espíritos de categoria inferior; os convulsionários de S. Médard, depois os pequenos profetas inspirados de Cavennes, Swedenborg e a sua escola. Mil outros factos ainda formam uma ininterrupta cadeia, que, desde as manifestações da mais remota antiguidade, nos conduz ao moderno Espiritualismo.

  Entretanto, em época recente, no seio da Igreja, alguns pensadores, raros, investigavam ainda o problema do invisível. Sob o título Da distinção dos Espíritos, o cardeal Bona, esse Fénelon de Itália, consagrava uma obra ao estudo das diversas categorias de Espíritos que podem manifestar-se aos homens.

  “Motivo de estranheza – diz ele – é que se pudessem encontrar homens de bom senso que tenham ousado negar em absoluto as aparições e comunicações das almas com os vivos, ou atribuí-las ao extravio da imaginação, ou ainda ao artifício dos demónios.”

  Esse cardeal não previa os anátemas dos padres católicos contra o Espiritismo. (xxi)

  Forçoso é, portanto, reconhecê-lo: os dignitários da Igreja que, do alto de sua cátedra, têm anatematizado as práticas espíritas, desnortearam completamente. Não compreendem que as manifestações das almas são uma das bases do Cristianismo, que o movimento espírita é a reprodução do movimento cristão na sua origem. Não se lembram de que negar a comunicação com os mortos, ou mesmo atribuí-la à intervenção dos demónios, é se porem em contradição com os padres da Igreja e com os próprios apóstolos. Já os sacerdotes de Jerusalém acusavam Jesus de agir sob a influência de Belzebu. A teoria do demónio fez a sua época; agora já não é admissível.

  A verdade é que o Espiritismo se encontra hoje por toda a parte, não como superstição, mas como lei fundamental da Natureza.

  Existiram sempre relações entre os homens e os Espíritos, com maior ou menor intensidade. Por este meio, continua a revelação e se propaga no mundo. Flui, através dos tempos, uma grande corrente de energia espiritual cuja fonte é o mundo invisível. Por vezes, esta corrente se ocultou na penumbra; foi encontrar-se dissimulada sob a abóbada dos templos da Índia e do Egipto, nos misteriosos santuários da Gália e da Grécia; onde só foi conhecida dos iniciados e dos sábios. Mas, também às vezes, em épocas determinadas pela vontade de Deus, surge dos lugares ocultos, reaparece em pleno dia, à vista de todos; vem oferecer à Humanidade esses tesouros, essas magnificências esquecidas, que a vêm embelezar, enriquecer, regenerar.

  É assim que as verdades superiores se revelam através dos séculos, para facilitar e estimular a evolução dos seres. Com o concurso de médiuns poderosos, se patenteiam entre nós, pela intervenção dos Espíritos geniais, que viveram na Terra e que nela sofreram pela Justiça e pelo Bem. Estes Espíritos de escol foram restituídos à vida do espaço, mas não cessaram de velar pela Humanidade e com ela se corresponder.

  Em certos momentos da História, um sopro do Alto perpassa pelo mundo; as brumas que envolviam o pensamento humano dissipam-se; as superstições, as dúvidas, as quimeras se desvanecem; as grandes leis do destino revelam-se e a verdade reaparece.

  Felizes, então, os que a sabem reconhecer e agasalhar!

/…
(ii) Apocalipse, XIX, 10.
(iii) Idem.
(iv) Denominavam-se então os médiuns profetas.
(v) Na versão grega dos Evangelhos e dos Actos, a palavra espírito está muitas vezes isolada. S. Jerónimo acrescentou-lhe a de santo; e foram os tradutores franceses da Vulgata que daí fizeram o Espírito-Santo, (Ver Bellemare "Espírita e Cristão", págs. 270 e segs.
(vi) Actos dos Apóstolos, X, 10-16, 28, 29, 44-48; XVI, 6-10; XXI, 4; Ep. Romanos - XIV, 14,1 Cor. - XII e XIV. - Ver nota complementar nº 6 ( link para aceder à nota).
(vii) Este "Livro do Pastor" era lido nas igrejas, como o são actualmente os Evangelhos e as Epístolas, até ao século V. São Clemente de Alexandria e Orígenes a ele se referem com respeito. Figura no mais antigo catálogo dos livros canónicos recebidos pela Igreja Romana e foi publicado por Caio em 220.
(viii) Actos, XII, 55, 56; IX, 10, 12; XVI, 9 etc.
(ix) Actos, XII, 7-10. Ver também v. 19 e XVI, 26.
(x) Ibid., VIII, 39, 40.
(xi) Actos, VIII. 9-13.
(xii) Ibid., II, 44-47; IV, 32-36.
(xiii) Resumo da história eclesiástica, pelo abade Racine. São Gregório de Nissa, na sua Vida de São Gregório, o taumaturgo, refere essa visão. Ver Obras de São Gregório de Nissa, edição de 1638, t. III, págs. 545 e 546.
(xiv) Orígenes, edição beneditina de 1733, t. I, págs. 361 e 362.
(xv) Alb. de Broglie, A Igreja e o Império romano no século quarto, t. I, págs. 214 e seguintes.
(xvi) Filostórgio, II, 9. Ver A Igreja e o Império Romano no século quarto, por Alb de Broglie, t. II, pá.g. 153.
(xvii) Confissões, livro. VIII, cap. XII.
(xviii) Carta a Evodius. Ep. CLIX. edição dos Beneditinos, t. 11, col. 562, e De cura pro mortuis, t. VI, col. 523.
(xix) De cura pro mortuis, edição beneditina, t. VI, col. 527.
(xx) Lê-se na Suma (1, qu. 89, 8 2.m): “o espírito (anima separata) pode aparecer aos vivos”.
(xxi) Ver nota complementar nº 6 ( link para aceder à nota).


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Relações com os Espíritos dos Mortos, 5 (II de II), 7º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

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