Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de março de 2019

o sentido da vida ~


Do Empirismo | à Ciência (II)

E chegamos, assim, ao ponto em que os podemos defrontar com a religião no próprio terreno da ciência, que lhe parecia antagónico. Do empirismo supersticioso até ao limiar da ciência, que longo percurso tivemos de fazer! Mas ainda não estamos livres das práticas empíricas. Estas, pelo contrário, continuam a exercer poderosa atracção sobre os próprios adeptos do Espiritismo.

Diz um velho ditado que o uso do cachimbo faz a boca torta. E muitos espíritas, não podendo deixar de aceitar os factos e as verdades com que tiveram de se defrontar, mas não tendo forças para sair prontamente dos hábitos adquiridos, procuram introduzir no Espiritismo práticas e sistemas alheios à natureza real da doutrina. O Espiritismo não é uma igreja, os centros e sedes de outras associações doutrinárias não são templos ritualistas, nem possuem sacerdotes para ministrar sacramentos, mas o espírita de boca torta não concebe um casamento sem a bênção da igreja ou um nascimento sem as águas lustrais do baptismo.

E então se apega ao médium, tábua de salvação para vivos e mortos e, apela ao mundo dos espíritos, que lhe envie – eterna simplicidade do povo! – um espírito de padre, para ministrar os sacramentos que ele se recusa a tomar na própria fonte de origem, aqui na Terra!

Mas ainda não é só. Alguns adeptos, inconformados com a simplicidade racional da doutrina, viciados ainda no transcendentalismo artificial das religiões ritualistas, procuram refúgio noutras concepções, que parecem mais vastas, mais profundas e mais ricas. É ainda a atracção do maravilhoso. Allan Kardec diz:

“O sobrenatural se esvai à luz da ciência, da filosofia e do raciocínio, como os deuses do paganismo desapareceram à luz do Cristianismo.”

Esses adeptos, porém, ainda não receberam luz suficiente das verdades espíritas e continuam fascinados pelo sobrenatural, maravilhoso.

Alegam então que a Teosofia não se restringe aos problemas da sobrevivência e da intercomunicação, indo muito mais longe, na interpretação da própria natureza de Deus e na explicação de mistérios que os espiritistas ainda ignoram por completo. Afirmam que os rosa-cruzes possuem uma visão mais dinâmica e profunda do Universo, que certas escolas esotéricas e mentalistas possuem fórmulas capazes de resolver mais prontamente, do que pelos meios espíritas, os graves problemas do psiquismo. E há os que preferem as fórmulas nebulosas de sincretismo religioso, formas híbridas de ritualismo e de sistemas sacramentais, como as correntes de Umbanda, em que as superstições afro-caboclas se misturam exuberantemente aos elementos do culto católico-romano. E há os que, ansiosos por descobrir “mistérios” que o Espiritismo não aceita, se apegam a interpretações confusas, como as do chamado Redentorismo, ou ao misticismo incoerente e artificioso de Roustaing.

A todos esses espíritas desprevenidos devemos lembrar que o esforço maior do Espiritismo é realizado no sentido de libertar o homem das suposições sem base, das explicações transcendentes, das superstições de tabus religiosos. O Espiritismo não deseja reforçar as tendências instintivas do homem para o maravilhoso, mas conduzi-lo com mão firme, segura e serenamente, para o conhecimento real das verdadeiras maravilhas do Universo, tanto as da natureza exterior quanto as do plano espiritual.

A imaginação humana é muito fértil e não é difícil, a qualquer homem dotado de grandes recursos de inteligência, arquitectar um sistema de explicações do Universo, desde as formas rudimentares da matéria até aos esplendores da natureza divina. Também do espaço, muitos sistemas dessa espécie podem ser-nos transmitidos por espíritos “esclarecidos”, a título de revelação. Mas Kardec já nos deu a lição, dos seus ensinamentos e do seu exemplo, no tocante a essas revelações do tipo roustainguista.

Há uma pauta segura para a avaliação das coisas, venham elas de cima ou aqui de baixo mesmo. Há uma linha de raciocínio que nos serve de guia seguro no labirinto das suposições e das teorias. E há o critério científico de observação, de comparação e de análise, que deve presidir ao trabalho do homem no terreno espiritual, como em qualquer outro. Por isso mesmo, no campo da religião, domínio aberto do empirismo e do maravilhoso, o Espiritismo nos oferece o antídoto da fé raciocinada, verdadeira vacina contra os exageros místicos e a chave de controlo para o desenvolvimento equilibrado da era da intuição, da qual se aproxima a humanidade.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do Empirismo à Ciência 2 de 2, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

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